2/24/2020

Camilo Castelo Branco: O Homem (Resenha Biográfica)



Camilo Castelo Branco: O Homem
No período de glória literária, em 1886, é assim retratado fisicamente por um dos seus biógrafos: É de estatura média, magro como um retrós, de uma tez embaciada, puxando um pouco para terrosa, onde se esbate a coloração mórbida dos anêmicos e dos que vivem peremptoriamente pelo cérebro.
Ainda agora lhe aparece no rosto, e bem visível, o crivo duma varíola assanhada, de que sofreu em criança, penso eu. Debrua-lhe o lábio superior um bigode estofado, cujos longos cabelos se espatulam rudemente sobre o lábio inferior, comunicando-lhe à fisionomia uma certa feição vigorosa e duma distinção aristocrática. Na fronte um pequeno punhado de cabelos parece querer-lhe voar da cabeça, como a ondulação ascendente duma labareda. Os olhos do autor dos Críticos do Cancioneiro julgara alguém que devem ser para aí um par de carbúnculos à flor da carne. São uns olhos tão humanos e mansos como outros quaisquer, onde se retratam tão fielmente como nos do leitor, como nos dos restantes filhos de Eva, os sentimentos alternativamente doces, amoráveis ou veementes do nosso coração. Todavia há neles três expressões habituais, sobretudo a última: o respeito, a bondade, e a ironia mordaz.
Moralmente, as feições mais flagrantes que como quer envolviam todo o seu caráter, eram o extremo subjetivismo e a veia cômica dentro dos quais ele exercia toda a sua atividade psíquica. As funções espirituais eram todas sobrepujadas pelo sentimento que, como é de prever, perturbava o regular exercício das outras. Sentimento amoroso, sentimento do ódio, saudade, despeito e ofensa, amizade, fé e devoção, todas essas variantes sentimentais ele percorreu com uma intensidade, que atinge por vezes a violência da paixão. E foi um grande apaixonado. Apaixonado ao ceder a esses amores, que constituem a galeria, colecionada pelo Sr. Alberto Pimentel no livro Os Amores de Camilo; apaixonado no tédio pronto, que se lhes seguia; apaixonado na amizade, como no caso de Vieira de Castro; apaixonado no ataque, como em todas as suas polêmicas. Deprimiu e encomiou grandemente, e quase sempre sem razão no juízo condenatório como no laudatório. Aqueles, contra os quais fulminou uma apreciação de somenos, vieram a culminar; outros, a quem deu todo o alento dum confessado entusiasmo admirativo, esqueceram na sombra da mediocridade.
Logicamente se deduz que um homem escravo duma tão violenta sentimentalidade, devia ter uma vontade tíbia, indecisa, e assim era. Era um doente da vontade. Umas vezes ficava-se apático, insensível ao estímulo externo, ávido de conchego caseiro; outras vezes cedia abruptamente ao estímulo, com tal decisão e impulsividade que se produzia uma desproporção entre a causa e o efeito, mas logo que se perdia e apagava a última das repercussões cerebrais dessa excitação, Camilo recaía na apatia, na abulia. Resistindo às solicitações da sua curiosidade, aos conselhos dos amigos, nunca saiu de viagem ao estrangeiro, mas para fugir aos pinheiros gementes de São Miguel de Seide, sai para a Povoa de Varzim... e a meio do caminho retrocede. Obras longamente planeadas nunca apareceram; outras concebidas num momento, em quinze dias surgiam.
Tendo conhecido Ana Plácido, longos anos, deixou lavrar a sua inclinação, distraindo-se com outros devaneios amorosos, até que tornando-se paixão, esse sentimento atinge um poder determinante que o impele às consequências extremas. Pouco tempo depois, com o escândalo, chegava o tédio, que era também uma cruel ingratidão.
Não viajava pelo estrangeiro, mas obedecendo a um irresistível e mórbido deambulismo percorreu as províncias do norte, pormenorizadamente, aldeia por aldeia, casal a casal.
Houve um momento, em que Camilo sentiu a necessidade de crer, e o D. Juan protagonista de muitas aventuras, que estarreciam os burgueses portuenses lançou-se, a despeito da opinião de todos, na contemplação religiosa, exaltadamente; frequentou o seminário, fez jornalismo religioso e polêmica religiosa e chegou a requerer ordens menores, que uma reviravolta a tempo o inibiu de receber.
A inteligência, dominada pelo sentimento, não observava o que se não coadunasse ao modo de ser desse sentimento; fugia da natureza objetiva, dobrava-se subalternamente e ia arquitetar justificação para os sentimentos, explicação, dispersando-nos pela obra — reflexo fiel do caráter de Camilo — um sistema completo do sentimento do amor, na forma camiliana, uma concepção da vida, muito restrita, mas organizada. Quando frequentou as aulas da Academia Politécnica e Escola Medica, sentiu que a sua inteligência se não comprazia no estudo das ciências naturais. A memória é que era vivíssima e poderoso auxiliar para a construção da sua obra; as reminiscências biográficas são sempre vivíssimas e de relativa exatidão, e as leituras conservam-lhe no espírito um armazém de materiais, prontos ao primeiro chamamento. Como erudito e genealogista claramente o mostrou.
A música era para ele o mais suportável dos ruídos.
A veia cômica, poder de satirizar por meio duma desleal interpretação das opiniões alheias, dum trocadilho de palavras ou pela pintura caricatural, junta com a violência de sentimento, que punha nos seus atos, compeliu-o a ataques literários ou a defender se pôr forma que equivalia a agredir primeiramente.
Com tais particularidades morais: extrema subjetividade, pouca observação, grande memória e poder satírico, Camilo havia de produzir uma obra irregularíssima, como irregularíssimo no seu funcionamento era o espírito que a concebia. Da leitura continua, do gosto de antiquário, forma mesquinha do espírito histórico da época, e da memória, nasceu o estilo, o escritor; do homem sentimental o romancista do amor: do satírico o polemista.
Não foi o seu caráter, como cremos que nunca o são os caráteres sentimentais, duma elevada moralidade. O impulsionismo sentimental levou-o a praticar atos que não estavam dentro das sanções da moral comum. O abandono da sua primeira mulher e da filhinha, que tinham ocupado no seu coração um tão pequeno lugar, que ocultou sempre esse casamento; a aventura com D. Ana Plácido; o conservar junto de si o filho daquela senhora. Manuel; o entrar afoitamente no gozo das propriedades de Pinheiro Alves, o marido de D. Ana Plácido; e o rapto de uma donzela rica, apelidada a tricentenária, por se avaliar em trezentos contos de reis a sua fortuna, para a casar com um marido dissipador e tresloucado, seu filho Nuno: a sua duplicidade literária, encomiando Eça de Queirós em público, ao mesmo tempo que o atacava em cartas particulares, são mostras mais do que suficientes de que nem sempre a correção moral foi o mais procurado escopo da sua vida.
Incrustado na sua concepção literária, não podia compreender o realismo, e não compreendeu.

FIDELINO DE FIGUEIREDO
História da Literatura Romântica Portuguesa (1913)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).

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