CAMILO
CASTELO BRANCO: A EVOLUÇÃO LITERÁRIA
PRIMEIRA FASE: (1845-1851)
Quando, em 1851, Camilo publicou o seu primeiro
romance, O Anátema, não era um
neófito literário, seria — e cremos que o fosse — um obscuro. Já desde 1845
pequenos ensaios satíricos e dramáticos tinham manifestado a sua inclinação
literária. Até que se estreasse no romance, publicara Pundonores desagravados (1845), O
Juízo Final (1845), Agostinho de Ceuta (drama histórico, 1847), Maria, não me mates que sou tua mãe!
(narrativa de um crime sensacional desse tempo), A Marrara (poemeto satírico, 1848), o Marquês de Torres Novas (drama histórico, 1849), O Caleche (panfleto de alusão política,
1849), O Clero e o Sr. Alexandre
Herculano (1850), interferência na polêmica de Ourique, e Inspirações (poesias líricas, 1851).
Vê-se assim que o futuro ridiculizador, o futuro polemista, o poeta e o
romancista, o polígrafo, embrionariamente, se continham já no escritor tão
diversamente afirmado. Pela hesitação evidente entre os gêneros e pela incerteza
que caracteriza estas produções, os anos que vão de 1845 a 1851 podem
considerar-se como formando a primeira fase da sua evolução literária. Dava a
sua contribuição para o drama histórico e afirmava-se temporariamente satírico.
Mas de todas estas produções menores uma destaca com particular significação, a
narrativa dum matricídio, Maria, não me
mates que soa tua mão!
Uma rapariga, que recebia em sua casa o namorado,
foi por ele seduzida. Tendo a mãe, ameaçado o sedutor de se queixar dele à
polícia, combinaram ambos o assassínio da velha. Encarregou-se do nefando crime
a filha, que a matou à facada. Vendo crescer para ela a sua própria filha, a
velha soltara a exclamação que deu o título à narrativa. Camilo contou o crime,
simplesmente contou e com esse folheto alcançou o seu primeiro êxito literário;
ganhou os primeiros dinheiros.
Que significa este minúsculo folheto na sua obra?
Significa que então praticou Camilo o que seria processo de toda a sua vida
literária. Viu a vida contemporânea e escolheu delia o assunto, que estava de
acordo com as suas inclinações pessoais e com o gosto da época. Poucas vezes
será tão verdadeira a definição de arte, proposta por Zola: l'art est un coin de la nature vu a travers
un temperament. Não se retirava ele para o passado para fazer romance
histórico; olhava em redor de si e escolhia. A vida tumultuosa da época mais
amoruda da alma humana e do meio mais amorudo, que ainda teve Portugal, o meio
portuense durante o romantismo, proporcionar-lhe-ia basta matéria. Toda a vida
assim fez: escolher os grandes amores, as grandes desgraças, as grandes
perversidades e, complacentemente, constituir-se em voluntário cronista dos
grandes amantes, dos grandes infelizes, dos grandes casos. Também os realistas
observariam, mas além de observarem desinteressadamente, sem preferência, sem
escolha, observavam também integralmente,
queriam a vida toda, e não só o amor, parcela sua, posto que grande e
dominante, por vezes.
***
SEGUNDA FASE: 1851-1879
Foi o Anátema
o seu primeiro romance, obra hoje ilegível para os que não têm profissão de
críticos, duma composição compacta, dum estilo incaracterístico — se estilo se
pôde chamar à linguagem só negativamente qualificada de alguns atributos — .
Reunia esse romance as duas tendências, a histórica e a romanesca, sem
afirmação digna de nota em qualquer delias.
Mas já em 1854, Os
Mistérios de Lisboa decidem o
predomínio da segunda tendência sobre a primeira. Efetivamente pequena e sem
novidade seria a contribuição de Camilo para o romance histórico. Os três
volumes dos Mistérios são uma franca
opção pelo gosto de Eugênio Sue, o estimado autor dos Mistérios de Paris com todos os requisitos da imitação. A ação é
dum complicado enredo, complicação procurada; há amores exaltados,
perseguidores e vítimas, longas alocuções sentimentais e autobiográficas,
bruscas e inesperadas mudanças promovidas pelo acaso, esse tão valioso bordão
dos autores do gênero. Para nenhum requisito faltar, há também o brinco de
atribuir a paternidade da obra a uma origem misteriosa, que avivando para ela a
curiosidade, a punha a cobro da suspeição de inventada pelo autor. Fora Garrett
quem inaugurara este fingimento literário, ao atribuir a paternidade da Lírica a essa figura extravagante de
João Mínimo.
Diz Camilo: “Este romance não é um romance; é um
diário de sofrimentos, verídico, autêntico e justificado”. E transcreve a
seguir uma carta que supõe recebida do Rio de Janeiro, em tudo correspondente
ao prefácio da Lírica de João Mínimo.
No mesmo gosto escrevera os Mistérios de
Coimbra, que não completou e de que inutilizou sem publicar a parte
escrita.
O Livro Negro
do Padre Diniz (1855) continua os Mistérios.
E em tudo uma continuação. O Padre Diniz é uma figura obrigada nos romances
desse gosto; é o anjo tutelar, a bondosa personagem, cuja interferência vem
resolver difíceis situações. O Livro
Negro simula ser um livro de memórias do padre que Camilo publica dando-lhe
forma de romance: “O Livro Negro não
foi escrito para ser publicado, e muito menos em forma de romance. O grande homem
que rubricara com lágrimas essas páginas, não as escrevia para nós profanos que
lhas não compreendemos”.
A Filha do
Arcediago (1855) é a primeira obra em que toma assunto do meio portuense,
em que tantos havia de haurir. Mas a ação passa-se ainda numa época um pouco
recuada (1815). O elemento romanesco é bastante reduzido, cedendo perante o
desenvolvimento da narrativa serena de fatos comuns, episódios da vida burguesa
dessa época; pode dizer-se que só representa o romanesco a personagem Augusto
Leite, que é sucessivamente estudante cábula, boêmio, D. Juan, assassino,
fidalgo português em Espanha, espanhol em França, frade e grande influente
político quando volta a Espanha. Em compensação, um elemento novo contem, o
cômico. Pela primeira vez, a dentro do romance, Camilo se ri das suas
personagens. O elemento cômico é neste seu terceiro romance representado pelo
comerciante Antônio José da Silva, por sua irmã e pelo lorpa estudante de
latim, vizinho fronteiro. Mas duma maneira menos pormenorizada, a pintura de
ridículo estende-se a toda a rua das Flores, ao comercio rotineiro e à mora],
às opiniões e à ignorância da classe. Quanto à composição tem o romance uma
particularidade. Um dos capítulos foi suprido por um ato cômico, o que
testemunha como Camilo não possuía ainda bem o espírito do romance, ao qual
totalmente repugna a essência do teatro. Fez por isso, uma obra de extravagante
estrutura. Continuou-se esse romance por outro, A neta do Arcediago (1856), mais aproximado na época.
A primeira obra de vulto publicou-a em 1856, Onde está a Felicidade?, que se continua
por Um homem de brios e Memórias de Guilherme do Amaral.
Augusta, a protagonista do primeiro, é quem inaugura a longa galeria de
amorosas, que na sua obra desfilam, todas elas, como Augusta, representando a
concepção camiliana da mulher; na generalidade, mulher, cuja vida se preenche
com um grande amor, que lhe sutiliza o espírito, dando-lhe uma grande agudeza e
perspicácia para a inteligência dos sentimentos e uma superior resignação para
o sofrimento. Augusta, formosa e de alma tão delicada, que repugnava o convívio
com um primo artífice, vivia esquecida na sua quase miséria; um grande amor a
eleva e transforma na espirituosa e sutil Augusta do Caudal, que fazia a
admiração do escritor visita da casa, no qual Camilo se retratou. E quando a
volubilidade de Amaral a esquece, abandona o viver cômodo do palacete do
amante, enverga os velhos trajes de costureira de suspensórios, e regressa à
rua dos Armênios, chorando a ruína do seu grande amor.
O achado — que não deixa de ter seus ressaibos de romanesco e de acaso, por ser explicável pela narrativa do prefácio — o achado de
um tesouro enterrado no pavimento da casa, bruscamente transforma a fortuna de
Augusta, que casada com seu primo, se torna a rica e melancólica baronesa de
Amares. Esta personagem de Augusta não tem realidade, a palpável realidade da
vida quotidiana, mas tem verdade, se por verdade tomarmos o conceito relativo
de coerência. Num mundo ideal, arquitetado e colorido pela imaginação dum
romancista tão subjetivo, como Camilo, ela existe; os seus atos são conformes
às determinações morais, é reta a sua linha de conduta, e harmonizam-se todas
as partes do seu caráter. Ela destaca à evidência de todas as personagens
femininas até então evocadas pelo escritor, todas incaracterizadas. Por isso e
pela grande e desgraçada história de amor, em que foi protagonista, é Augusta a
primeira enamorada da obra de Camilo, que entra na tradição.
Guilherme do Amaral é o ideal do homem culto, de
então, prematuramente cansado da vida que só conhece por via literária,
inteligente e dissimulado, impulsivamente sentimental, capaz duma nobreza e
duma vilania, inocente nesta como simples naquela, porque a uma e outra o
impelia um sentimento sincero que até certo ponto limitava a sua
responsabilidade, joguete da mulher fatal quando o seu olhar magico o
penetrasse e dominasse.
A mulher fatal, a alma desgarrada que viria
afirmar-se a outra, completando o par disperso, a mulher irresistível, eis
outra concepção sentimental de Camilo, que também aparece no romance Onde está a felicidade? mas ainda
incompletamente exposta. Frequente é nos seus romances a expressão mulher
fatal, que, pode bem dizer-se, é uma expressão de autor, e é também esse o
título dum romance publicado em 1870.
Chegara Camilo à sua maturidade artística,
encontrara a sua maneira própria. Algumas personagens de natureza
hipersentimental; algumas cujas opiniões, gostos e ademanes rocem pela
banalidade e grosseria e possuam um todo caricatural; uma intriga amorosa
localizada no Porto e arredores e preferentemente decorrida na classe média, na
burguesia rica, e Camilo organizará um romance. Assim, fazendo a apologia do
sofrimento amoroso e caricaturando, aguardando as sugestões acidentais de cada
momento, a obra de Camilo, vasta como é, não tem a variedade proporcional,
antes contém repetições insistentes, e reparáveis na obra de arte, em que todos
desejamos ver unidade, harmonia, precisão e consistência estrutural e ideal. E
isto é tão verdadeiro da fase literária, que estamos apreciando, como do
conjunto da obra. Nesta segunda fase, Camilo é o cronista das desgraças
amorosas do meio portuense; e vê-o, unilateralmente, só os que amam e os que
por amarem muito sofrem. História prolixamente um período psicológico, mas não
o faz integralmente; a sociedade portuense apenas nos é revelada na sua vida
amorosa, e no caráter dos brasileiros de torna-viagem, agitando-se no velho
Porto, de enredada topografia. Na pintura dessa sociedade não visava a
reproduzir-nos a realidade táctil, efetuando o ideal da arte, imitar e
espiritualizar a realidade. O que lia de real, de local, de cronológico é uma
consequência, não foi um fim procurado. Como era do seu tempo e vivia no Porto,
desse tempo e desse meio extraiu a matéria literária, de modo que foi um
passivo representante do seu tempo e do gosto coevo. E foi essa identidade que
fez o êxito extraordinário da sua obra.
Se Onde está
a felicidade? foi o primeiro romance de valia, o Amor de Perdição foi a
primeira das suas obras destinadas a permanecerem no espolio literário do
romantismo. A consagração foi, em parte, devida ao assunto, de natureza
sobremaneira comovedora, a história duns amores fatais, mas deveu-se também à
fatura da obra. Ordenada duma maneira concisa, com sacrifício de todos os
episódios, que diretamente se não incorporassem no seguimento geral do assunto,
a obra tem, como as tragédias, um progressivo, quase precipitado
desenvolvimento em direitura ao desfecho final, preparado habilmente por uma
íntima convergência de efeitos; máxima exaltação sentimental, narração sumária
e seguida, os caráteres muito extremados a provocarem conflito e aventuras
romanescas. Viu Camilo esse mérito, ao escrever o seguinte período: “E grande
parte neste favorável, embora insustentável juízo, a rapidez das peripécias, a
derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo; a ausência de
divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e desartifício das locuções”.
O Amor de
Perdição é a obra prima dessa forma do romance romanesco e sentimental,
porque não contem nada, episodio, divagação, personagem que se não compreenda
nesta forma. Este romance como que depurou o gênero de outro elemento estranho.
E na história dos gêneros literários, o autor que cria é, na maior parte dos
casos, um depurador e um condensador; depura o gênero do que lhe é estranho e
condensa nele tudo que legitimamente lhe pertence. Camões depurou e condensou a
epopeia moderna, Corneille a tragédia, Molière a comédia. Em proporções
menores, foi isso que fez Camilo no Amor
de Perdição. Não lhe peçamos psicologia, verdade moral, costumes, porque o
romance não teve o propósito de conter esses requisitos, nem o gosto do público
os reclamava. Seria fazer isso colocarmo-nos num ponto de vista absolutamente díspar
do autor e do público. Um e outro só queriam a quinta essência do sentimento,
do lirismo passional. E como este requeria o maravilhoso do enredo aliaram-se
ambos intimamente. É forçoso confessar que, poucas vezes, as solicitações do
público estimularam tão fortemente um autor. E que Camilo estava totalmente
identificado com o público, para que escrevia e com o meio literário de que
recebia as sugestões. Esse público e esse meio literário — os seus amigos de
boêmia e os seus confrades literários — os caracterizou Ramalho Ortigão muito
incisivamente no Estudo Crítico, que
antecede o romance, e que de algum modo corrobora os nossos assertos: “Para
todos estes homens, moços, aparentemente fortes, aparentemente despreocupados,
violentos, desabridos, uma só coisa grave, irredutível, sagrada, parecia
existir na vida. Era o amor. De tudo mais zombavam. Havia um desprezo convicto
e geral pela fortuna, pelo dinheiro, pela consideração social, pelo próprio
trabalho, e até pela saúde. A mulher, porém, a mulher sensível, a mulher amante
e amada, a simples mulher romanesca, era um ídolo para cada imaginação, tinha
em cada coração um culto, — culto pasmosamente ingênuo e cândido, resistindo a
todas as provações do ridículo: ao namoro da rua pela hora portuense do despregar da agulha, ao namoro da igreja
durante a Semana Santa ou na missa da 1 hora aos domingos, à carta clandestina
com erros de ortografia, à recitação ao piano, ao anel de cabelo, ao bordado a
miçanga!
Ao Amor de Perdição outros romances se seguem. Um
deles, o Amor de Salvação,
manifestamente tem o propósito de especular com o paralelismo do título. Mais
duma vez Camilo especulou, já continuando a intriga dum romance para outro, já
adotando títulos em antítese, Onde está a
felicidade? continua-se pelo Homem de
Brios, este pelas Memorias de
Guilherme do Amoral: Os Mistérios de
Lisboa; continuam-se pelo Livro Negro
do Padre Diniz; a Filha do Arcediago
pela Neta do Arcediago; o Regicida pela Filha do Regicida e pela Caveira
da Mártir; Eusébio Macário pela
Corja; e quanto a títulos, aproximemos os seguintes: Mistérios de Lisboa, Mistérios
de Coimbra e Mistérios de Fafe, Amor de Perdição e Amor de Salvação, Estrelas
funestas e Estrelas propícias. Preceitos do coração e Preceito da Consciência.
Até 1879 segue Camilo a sua carreira literária
irregularmente, com uma produtividade muito desigual, romances romanescos,
romances históricos, teatro e variedades. Mas os romances não acusam todos
progressos sobre os antecedentes, como se veria numa análise minuciosa e individuada,
obra a obra.
Um romance A
Queda de um Anjo, de 1866, fere uma nota original. E uma forma particular
do romance camiliano, porque é exclusivamente satírico, porque o lirismo que
contem é um instrumento adequado ao intuito que domina toda a obra e porque,
permita-se este dizer, é um romance de intenção.
Calisto Elói, morgado de Agra de Freimas, pela sua
organização moral, pelas suas ideias e predileções, pelos seus hábitos, pelo
viver de que se rodeia, é efetivamente um homem do século XV, um anacronismo
como quer Camilo, mas pelo seu alheamento da vida, pelo desdém do exercício
sensorial, da indução vulgar, pelo seu recolhimento livresco é também o eterno
intelectual que concebe da vida e do mundo só a pequena parte que o livro lhe
denuncia, e que exercita do espírito só a pequena parcela que é a inteligência.
O protagonista é um deslocado, é Calisto Elói, mas é também um pouco o Fausto.
Vindo a Lisboa, como deputado, o meio transforma-o; e esta transformação é um
caso da influência do meio, precipitando um anjo, mas é também a revelação da
verdadeira vida a quem nunca a exercitara, é também o gostar do sentimento do
amor, da conformação com o seu tempo e com o seu meio, por quem não supunha na
vida do coração tão amplos limites. De forma que Calisto Elói é uma forma
satírica, romântica, camiliana acima de tudo, do eterno tema do conflito entre
a vida ideal e a real, da tardia opção pela segunda. E à longa lista de
expressões literárias do tema chamado do Fausto
— porque foi a versão alemã que se internacionalizou — há a acrescentar a de
Camilo, pelo romance satírico.
Esta nossa opinião não supõe que Camilo
deliberadamente escrevesse o romance com tal propósito, significa apenas que,
quanto a nós, escreveu um romance que pode considerar-se, ainda que por
coincidência, uma nova expressão desse velho tema.
Quando, em 1862, por motivo da aventura amorosa com
D. Ana Augusta Plácido, se retirou do Porto, o cenário da obra de Camilo
variou. Só na primeira infância e adolescência, vivera na aldeia; ao viver aldeão
regressava de novo e dele ia extrair os seus motivos literários. As Novelas do Minho distinguem-se da vasta
obra precedente pelo campo de ação, o Minho pitoresco e o viver aldeão, e pelo
estilo másculo, duma segurança admirável, variado e próprio. Mas; ao contrário
de Júlio Diniz e de todos os autores que fizeram romance campesino, Camilo
mantinha um grande pessimismo sobre a moralidade das aldeias e toma portanto
uma atitude muito diferente da daqueles; em vez de apologia, faz crônica da
criminalidade, dos ruins sentimentos, dos baixos instintos, da grossaria dos
campônios, faz como que uma demonstração da sua opinião. Na dedicatória da
novela O Comendador, a D. Antônio da
Costa, falando do livro o Minho, diz
o romancista: “O Minho lucra muito, visto assim de passagem, na imperial da
diligência, lá muito no galarim do tejadilho, onde as moscas não se além a
ferroar-nos a testa e a sevandijarmos os beiços convulsos de lirismo.
Viu vossa excelência perfeitamente o Minho por
fora...
Mas o que D. Antônio da Costa não teve tempo de ver
e apalpar foi o miolo, a medula, as entranhas românticas do Minho; quero dizer
— os costumes, o viver que por aqui palpita no povoado destes arvoredos onde
assobia o melro e a filomela trila.
Ah! meu amigo! Romances, tecidos de casos cândidos
e inocentes, apenas os fazem por aqui os pássaros em abril, quando urdem e
afofam os seus ninhos. O restante dos animais não ovíparos vista-mos vossa
excelência no Catarro ou no estabelecimento da famosa senhora Cecília
Fernandes, da Travessa de Santa Justa, que eu lhos farei representar ao vivo no
próprio coração do Minho — entre Fafião e São João do Calendário — as cenas
contemporâneas da fina Baixa e
piores.
A peste, que infecionou os costumes destas aldeias,
não sei decidir se veio das cidades paia aqui, se foi daqui para lá.
É neste pessimismo sobre a vida rústica que Camilo
se aparta dos demais romancistas e contistas, que sobre a vida do campo
arquitetaram os seus romances.
Nas Novelas
do Minho há pormenor descritivo, amplificação, para empregar o termo
clássico, que em absoluto faltava nos romances antecedentes. A muito citada
descrição do incêndio do Retrato de Ricardina não tem a autonomia de peça
artisticamente trabalhada, que manifestasse o intento de descrever o incêndio, antes
está tão entrelaçada subsidiariamente no desenvolvimento da intriga, que é
incompleta. O que ela tem é vários toques dispersos dum flagrante
impressionismo, que fazem esse trecho caraterístico no romance. Não hesitamos
em dizer que se o incêndio não estivesse intimamente ligado a um episódio
principal da intriga, Camilo apenas o citaria. Porém as Novelas do Minho já tem a descrição minuciosa, com capricho
literário, Camilo compraz-se em desenvolver, em amplificar fatos, que noutros
romances, apontaria sem lhes desdobrar o conteúdo fecundo de beleza literária.
Até às Novelas, excetuando raros
casos, como o do incêndio do Retrato de Ricardina, Camilo compõe os seus
romances, principalmente, com diálogos e com a narrativa, em seu próprio nome,
a que ele intercala divagações, comentários, conversa com o leitor. A descrição
surge nas Novelas, e ainda em proporções reduzidas.
São exemplos o despertar do abade no Comendador e a morte de Josefa na Maria Moisés, páginas que patenteiam a
completa maturidade do escritor.
Retratos também os não fizera; esboçava a biografia
das personagens, mas nunca nos contara com individuação, personagem a
personagem, os seus gostos, as suas opiniões, a sua constituição moral. Fê-lo
pela primeira vez na novela, Gracejos que
matam.
Se com estas divergências da maneira literária, que
longamente exercitara durante esta fase, as Novelas
do Minho são como os romances, seus antecessores, romances romanescos, pelo
maravilhoso da ação e pela exaltação sentimental, forçoso é reconhecer que
acusam um evidente evoluir. Camilo condescendia nos seus processos, e iria
ceder, como veremos.
***
TERCEIRA FASE: 1879-1890
Decorre esta já em pleno triunfo do realismo,
quando o êxito dos romances de Eça de Queirós e o acolhimento caloroso dum
público de gosto modernizado provocaram veemente protesto na imprensa.
Os que publicamente optavam pelo idealismo tomavam
para modelo e para estandarte o nome de Camilo, com ele esgrimiam contra os
partidários de Eça de Queirós.
Mais de uma vez, Camilo declarou que não tinha
animosidade contra a nova escola literária, citando com aplauso o nome do seu
chefe Eça, dos sequazes Lourenço Pinto e Sr. Teixeira de Queirós, a quem
dedicou uma das Novelas do Minho,
invocando a sua qualidade de autor da Comédia
ao Campo, como para evidenciar que fora o título de autor dos romances
dessa série, que fizera nascer o seu apreço. Mas não era sincero nessas
declarações, porque outros depoimentos contrários possuímos e bem mais
fidedignos porque não eram francos e declarados ou não eram públicos. A
confirmar a presunção de serem estes os mais plausíveis está o seu caráter, tal
como nós o concebemos, fundamentando-nos em fatos, despreocupadamente de
qualquer preconceito.
No parágrafo final da novela o Degredado, escreveu: “Vossa excelência já sabe que eu — o
verdadeiro cultor do romance plangente neste país onde a literatura se esta
refazendo com fermentação de cores várias e jogralidades vasconsas...”
E ao fechar Maria
Moisés, dedicada a Tomás Ribeiro, um dos retardatários idealistas: “Tomás
Ribeiro, com o teu coração, se tens nele uma lágrima, imagina este quadro e
descreve-o se podes, que eu não posso, nem quero porque o último feitio das
novelas é não pintar, com o colorido gótico das românticos, os quadros
comoventes que rutilam na alma a faísca do entusiasmo. Agora somente se pintam
as gangrenas com as cores roxas, e com as cores verdes das podridões modernas.
Nos literatos o que predomina é o verde, e nas literaturas é o podre”.
Também nalgumas cartas particulares há trechos, que
são muito concludentes: “Tenho gostado muito do seu modo de desmantelar o
pseudo-realismo do estilo à Eça. Parece-me que você continua a pacifica
destruição que eu comecei, e dou-lhe a minha palavra de honra que desmantela
pelo ridículo a escola”...
No prefácio da 2ª edição de Eusébio Macário reproduz uma definição da nova escola atribuída a
outrem, que a amesquinha com evidente desdém: “É a tua velha escola com uma
adjetivação de casta estrangeira, e uma profusão de ciência compreendida na Introdução aos três reinos. Além disso
tens de pôr a fisiologia onde os românticos punham a sentimentalidade: derivar
a moral das bossas, e subordinar à fatalidade o que, pelos velhos processos, se
imputava à educação e à responsabilidade”.
Mas quando não bastassem as suas próprias palavras,
os seus atos confirmavam a nossa presunção da sua animosidade contra o
realismo. Com o conceito acerca da nova escola, que acima reproduzimos,
conceito duma estreiteza mesquinha, porque era parcialíssimo, Camilo quis
demonstrar a inanidade do novo gosto literário e fez a caricatura do realismo
no Eusébio Macário e na Corja, continuação daquele. E evidente o
intuito de sátira. A história natural e
social de uma família no tempo dos Cabrais (parodia à rubrica que encima os
romances de Zola: Histoire naturelle et
sociale d'une famille sous te second empire) que se contem nesses dois
romances é a revelação do seu propósito.
A respeito de Eusébio Macário escreveu: “O Eusébio Macário foi uma disenteria de
todo o meu gênio. Derramou-se-me o cérebro naquela dejeção, e não sou capaz de
dar nem melhor nem pior que aquilo”. E sobre a Corja reproduziu sem protestar a estranha opinião de seu filho
Jorge.
Como fez Camilo a sua sátira ao realismo? Imitando
exageradamente os caráteres que mais sobressaíam na interpretação de Zola.
Suprimiu os costumados antelóquios com o leitor e as digressões, que usava
interpolar; era a impessoalidade exigida pela escola. Não abriu os romances
como costumava fazer anteriormente, pelo princípio da ação, frequentemente com
uma exata minúcia cronológica, como a demonstrar que a narrativa da intriga é o
principal objeto da obra. No Eusébio
e na Corja abriu por uma descrição,
no primeiro, por um quadro familiar, no segundo. Mas, como os realistas
acumulavam os atributos nas suas descrições, Camilo exagerou essa acumulação,
na descrição do relógio da botica de Eusébio e na enumeração, que se lhe segue,
sem ligação sintática, como faziam os realistas. “Moscas zumbiam com asas
lampejantes em giros idiotas; gatos agachados como velhos sicários pinchavam
com muitas perfídias à caça dos pássaros nas densas verduras, desbotadas, dos
arvoredos; carros chiavam nas terras baixas, barrentas, com grandes gretas das
calcinações do grande sol: os lentos bois nostálgicos vergastavam com as caudas
ásperas os moscardos, que os atacavam dentre os tapumes com grandes sedes
impetuosas de frescores de sangue. Havia molezas e estonteamentos abafadiços no
recheio de sensualidades mordentes”.
E na Corja
o grupo de Eufêmia a catar o padre e uma insistência proposital no pormenor
imundo.
Supunha Camilo que era qualidade principal do
realismo conceber a sociedade como uma infrene multidão de sensuais hipócritas
e viciosos de todo o gênero, a agitarem-se num passivo domínio dos instintos, a
fatalidade que entrava na definição
atrás citada. Por isso pôs nos dois romances muita imundície física e moral,
constituindo uma sociedade absolutamente ideal pelo descaramento.
Esta intenção de sátira prejudicou grandemente os
romances, dando-lhe o caráter de caricatura. E com esta significação, que os
devemos considerar, tomando-os como a mais importante manifestação do seu poder
satirizador, a sua habilidade de imitação caricatural. Caricaturar é desenhar
alterando as relações das partes, de forma a sobressaírem exageradamente os
traços principais por mais diferenciais. E isso com superior mestria fez
Camilo.
Assim considerados, o Eusébio Macário e a Corja,
não valendo como romances realistas, valem por outras belezas, o estilo duma
energia lapidar, infinitamente variado e por descrições flagrantes, das quais é
a célebre morte do lobo, que não é uma descrição conjectural, como faziam os
românticos, mas muito real, baseada em sensações diretas.
Entretanto Camilo tornara-se um erudito e começara
as suas investigações biográficas e históricas. Aos romances acima referidos já
vinham apensos alguns estudos históricos. Mas o romance, principalíssima parte
da sua atividade literária, não o abandonou. Antes, prosseguindo, publicava em
1882, A Brasileira de Prazins, em que
alguma coisa aproveitava do realismo.
O estilo continua o da Corja, mas a índole da obra é diferente, já não obedece a um
intento de sátira: é um romance, à maneira camiliana, com grandes defeitos e
grandes belezas. Dos defeitos o máximo é a irregularidade da composição,
intrometida de peripécias.
Tem o romance por objeto a história duma louca,
filha e neta de loucas. Não é este assunto já, por si, um assunto admitido no
âmbito dos temas literários por via do naturalismo? A etiologia da louca — permita-se
o termo da escola — é interrompida na sua sequência, porque o autor lhe
intrometeu a longa narrativa da aventura do falso D. Miguel, que em 1845,
apareceu na Povoa de Lanhoso. Também na Relíquia,
de Eça de Queirós, o sonho duma personagem ocupa grande parte da obra e
constitui mesmo, pode-se dizer, uma obra distinta.
Conservou do realismo outros caráteres: a descrição
com acumulação de pormenores; os retratos minuciosos, desde o vestuário às
particularidades morais de que são exemplos os retratos dos padres da missão
jesuítica; os documentos, tão preconizados pelos teóricos do naturalismo; a
atitude de ceticismo para com as personagens: e até o fecho do capítulo final
por uma exclamação é imitado do gosto realista.
Da sua antiga maneira romântica conservou a
explicação da origem da obra. Entre as páginas dum velho livro, comprado com
outros a uma aldeã aparecera um bilhete amoroso. A sua curiosidade levou-o a
investigar a história desses amores, que narrados em composição de romance,
formaram o fundo da Brasileira de
Prazins.
Este romance é, por certo, o melhor da sua longa
produtividade. Tem vigor na sua construção e verdade no episódio amoroso, que
nos conta. Mas este êxito deveu-o Camilo ao uso moderado e mais inteligente que
nele fez dos processos do realismo. E tanto assim é que algumas das suas
melhores páginas são a execução plena do naturalismo, quanto às descrições.
Camilo, anteriormente à influência do realismo, não escreveria as páginas da
morte do lobo e do Melro. E estas páginas, celebres pela sua perfeição e
beleza, que são senão belos exemplos do poder descritivo do realismo
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FIDELINO DE FIGUEIREDO
História da Literatura Romântica Portuguesa (1913)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
FIDELINO DE FIGUEIREDO
História da Literatura Romântica Portuguesa (1913)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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