O
CORTIÇO: GÊNESE E ACEITAÇÃO DA OBRA
O Cortiço, contrariando-se a discrepância existente com relação
à apreciação crítica dos demais romances, assim como das obras completas do
autor, é qualificado com quase plena unanimidade pela crítica literária
brasileira como a principal obra de Azevedo. As manifestações expressas a respeito
externam, no fundo, o mesmo pensamento e, partindo-se de "o melhor romance
de Aluísio Azevedo", entremeando-se com "o livro mais verdadeiro de
Aluísio Azevedo" e "a sua obra-prima", chegam a pronunciar que é
"a obra que lhe dá lugar definitivo na novelística brasileira" e
"um grande livro, dos maiores da literatura brasileira". Raul de
Azevedo, finalmente, destaca das demais produções do autor esta obra,
incluindo-a na "galeria dos dez ou doze romances brasileiros imortalizados"
e, com isto, apelando para o seu caráter de um clássico da literatura do
Brasil.
Azevedo
realizou em 1884 os primeiros esboços para O
Cortiço, quando, junto com Pardal Mallet, saiu fazendo passeios pelo Rio em
trajes bastante populares, para estudar a vida das camadas inferiores do povo,
mormente dos trabalhadores das pedreiras e das lavadeiras, e retê-la em notas
como documentos. Um ano mais tarde o título da obra, ao lado de quatro outras
que não deveriam ser realizadas (A
Família Brasileira, O Felizardo, A Loureira e A Bola Preta), aflorou no já mencionado projeto dos Brasileiros Antigos e Modernos: "O
primeiro romance, O Cortiço, faz-nos
ver um colosso analfabeto, que de Portugal vem com a mulher trabalhar no
Brasil, trazendo consigo uma filhinha de dois anos. Esta criança vem a ser a menina do cortiço, um dos tipos mais
acentuados da obra, o qual será ligado imediatamente a um tipo novo, o tipo do vendeiro amancebado com a preta. O
colosso deixa a mulher por uma mulatinha e deste novo enlace surgem o Felizardo e a Loureira." Em confronto com a única obra realizada da
planejada série de romances, este esquema parece haver correspondido a uma ideia
ainda muito pouco nítida e incompleta, porquanto posteriormente alterações
foram executadas em pontos essenciais.
Não
menos importante que a relação com o plano da série de romances é o trabalho
temático e artístico precedente, para a formação de O Cortiço, o qual se depreende da análise das outras obras. Este
trabalho revela-se na forma do particular interesse de Azevedo na representação
do meio ambiente popular (trabalho na pedreira, trabalho das lavadeiras e
engomadeiras) tanto nos romances folhetinescos como em O Homem, o único romance de cunho fisiológico antes de O
Cortiço, onde também vem à tona a própria confrontação das diferentes
classes sociais. Porém este trabalho preparatório apresenta-se igualmente na
ampla caracterização do quotidiano e da miséria das casas de pensão da capital,
num dos melhores romances. Torna-se esta particularmente nítida no artigo de
Azevedo Casas de Cômodos, que
denuncia a implacável exploração dos moradores de pensões e cortiços pelos
proprietários, em grande parte imigrados, e que principia com os seguintes
termos programáticos: "Há no Rio de Janeiro, entre os que não trabalham e
conseguem, sem base pecuniária, fazer pecúlio e até enriquecer, um tipo — é o dono de casas de cômodos." Exatamente
nesta direção é que se processa uma das mais radicais mudanças do projeto
original.
O Cortiço só surgiu cinco anos após o mencionado esquema
cíclico, em maio de 1890, e segundo o relato de Raimundo de Menezes descobriu
um público entusiasta: "O público fluminense recebe-o com sofreguidão. A
crítica cobre-o de rasgados elogios. É o mais perfeito dos seus romances,
afirmam todos... Os comentários cruzam por toda parte: nas repartições, nos
serões familiares, nas ruas, nos cafés, nos encontros fortuitos entre amigos e
conhecidos... Só se fala no último livro de Aluísio Azevedo." Verdade é
que diante de um semelhante entusiasmo não se permitiria fazer vista grossa a
que se tratava, no caso, de uma edição de apenas mil exemplares, cuja
publicação esteve acompanhada de um não muito irrisório dispêndio com
publicidades (Gazeta de Notícias, de
27 de abril de 1890: "Esperem um poucochinho, senhores glutões, Aluísio
Azevedo já lhes vai servir essa finíssima iguaria"); e de que o autor
recebeu pela obra não mais que a quantia de 600 mil réis, ao passo que a venda
dos direitos de A Mortalha de Alzira
em 1892 lhe rendeu 1.000 mil réis, conforme contrato. Substancialmente mais
importante para a aceitação e o histórico dos efeitos da obra no Brasil é o
fato de se haver podido publicá-la, já em 1951, no Rio, em décima primeira
edição.
Com
O Cortiço Azevedo consuma a série de
seus romances realistas, cujo anseio precípuo reside na análise crítica da
realidade social do Segundo Império no Brasil, na revelação de contrastes
sociais essenciais. Após a representação da camada superior da sociedade
provinciana em O Mulato e da camada
média da capital em Casa de Pensão,
volta-se ele, então, também para as camadas inferiores do povo do Rio de
Janeiro, cujo destino e miséria confronta, de forma dramática, com as condições
de vida de alguns novos ricos capitalistas. Como em Casa de Pensão, capta ele, com isso, um fenômeno típico da Capital
dos anos oitenta, com seu célebre progresso econômico e social, o qual lhe
permite concentrar e dramatizar convincentemente uma multiplicidade de destinos
individuais em suas interdependências. O cortiço característico do Rio daquela
época, com sua impressionante explosão demográfica, que consistia num número,
quase sempre grande, de casinhas de aluguel dando para um único pátio, deveria
prestar-se de maneira especial ao propósito de Azevedo, uma vez que ele
associava e confrontava, direta e concretamente, a existência dos moradores
dessas habitações, vivendo a maioria em precárias condições, com a dos
exploradores dessas empresas.
A
ação do romance está principalmente localizada no bairro de Botafogo, onde, em
parte, também se desenrolou a ação de O
Homem. Ela se organiza numa série de linhas mais ou menos nitidamente
distintas, que sempre de novo se tocam ou cruzam nos focos principais e que,
apesar de sua relativa autonomia, em suma não rompem com a unidade artística da
obra. A principal dessas linhas relaciona-se com o destino e a ascensão social
do inescrupuloso negociante João Romão, no centro de uma relação, dupla de
tensões, socialmente definida: para o plano inferior, mediante a paleta
colorida dos habitantes do cortiço de trabalhadores; e para o superior, pelo
ambiente aristocrático do vizinho Miranda.
De
simples caixa numa venda em Botafogo, João Romão, natural de Portugal, matou-se
de duro trabalho, economizando fanaticamente para tornar-se dono da venda,
antes de subir, deste estágio, rapidamente à escala social, com ambição,
cobiça, brutalidade e negócios desonestos. Da modesta venda brota um
florescente negócio que adquire seus artigos em parte diretamente da Europa, e
cujo proprietário especula, prosperamente, com ações inglesas. Ao lado da casa
comercial, que se vai apoderando cada vez mais do comércio atacadista do
bairro, um projeto do cortiço desenvolve-se a partir da casa de pasto, modesta
no início, através de compra de terrenos e infatigável trabalho de construção.
Este cortiço serve a Romão para uma múltipla exploração de centenas de
trabalhadores, que não só o enriquecem com elevados aluguéis (as lavadeiras
pagam somas extras pelas tinas e coradouros!)
mas trabalham também, em muitos casos, na sua pedreira adjacente ao
cortiço, e devem comprar em sua venda; isto independentemente da usura do dono
com seus empréstimos de dinheiro e penhores. Mesmo quando um incêndio destrói
uma considerável parte do cortiço, Romão é o grande vencedor, pois se precaveu
com apólices de seguro muito oportunas, e se apropria, além do mais, da vultosa
economia de 15 contos de uma das vítimas.
Seus
êxitos comerciais, João Romão os alcança em companhia da preta Bertolesa que,
no começo, é sua cozinheira, tornando-se a seguir sua amásia, porém continuando
a ser sempre o "animal de trabalho" desmedidamente explorado por ele.
Esta preta escrava, ganhando com uma venda em Botafogo o dinheiro para seu dono
e para sua ansiada alforria, viu-se ludibriada e frustrada por Romão de maneira
vergonhosa mediante um documento fictício, porquanto seu dono nada conhecia da
pretensa "carta de liberdade", e assim o dinheiro de Bertolesa, que
fora sendo poupado à custa de duras privações, passou às mãos gananciosas do
hábil comerciante português. Todavia, a abnegada negra, trabalhando
infatigavelmente, torna-se cada vez mais um entrave para a ascensão social de
Romão, pois este faz amizade com seu vizinho Miranda, homem realizado
socialmente, um atacadista de tecidos, guindado entrementes à nobreza (como Barão
do Freixal), e que de início fora seu rival, e deseja, mediante um casamento
com a filha deste, Zulmira, penetrar nos círculos superiores da sociedade. Uma
vez não só bastassem a este propósito de uma adaptação ao ambiente aristocrático
dos Miranda as novas aquisições de móveis e peças de guarda-roupa, típicas de novo
rico, e as presenças regulares nos teatros, clubes dançantes e confeitarias,
Romão também não hesita diante do último passo. Seguindo o conselho de Botelho,
parasita que vive em casa de Miranda e antigo traficante de escravos e
especulador, disposto, mesmo, a tirar proveito do casamento arruinado do barão,
Romão informa o "legítimo" dono de Bertolesa, a fim de se descartar
definitivamente do obstáculo vivo ao seu enlace. Quando, sob pressão policial,
deve a escrava ser entregue ao filho de seu dono, de Juiz de Fora, falecido
nesse meio tempo, ela opta pelo suicídio; para Romão, porém, está assim desembaraçado
o caminho para um título de nobreza, ardentemente desejado, e para esplêndidas
viagens à Europa: "E só depois de ter o título nas unhas é que iria à
Europa, de passeio, sustentando grandeza, metendo invejas, cercado de adulações,
liberal, pródigo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo
americano! "
A
escalada social de Romão e a transformação de seu relacionamento com as pessoas
do círculo em torno do seu conterrâneo Miranda, para quem o Brasil nada mais
significa senão uma "Costa d'África" com boas possibilidades para uma
rápida aquisição de fortuna, atravessam, como um fio vermelho, a ação do
romance; porém Azevedo dedica um espaço maior à caracterização das condições de
vida dos moradores do cortiço; ao penoso trabalho com as tinas de lavar roupa e
na pedreira; às diversões simples com músicas e danças nos domingos, e aos
fortes entrechoques de paixões, quando entra em jogo a noção duma honra pessoal
ou coletiva ultrajada.
Da
multiplicidade dos fios da narrativa fixados neste âmbito sobressai o destino do
trabalhador da pedreira Jerônimo, a quem Azevedo se refere no esquema citado.
Este português cheio de vigor, chegado ao Brasil com a mulher Piedade e filha,
já havia trabalhado duramente numa fazenda e noutra pedreira antes de ser
admitido como capataz, por Romão, e mudar-se para o cortiço. Entretanto, sua
exemplar disciplina de trabalho, à qual corresponde exatamente o bom trabalho
de Piedade como lavadeira, e sua honestidade modelar, apreciados por todo o povo
do cortiço, veem-se profundamente abalados quando Jerônimo se entrega aos encantos
da sensual mulata Rita Baiana. Por amor desta brasileira atraente e dengosa,
cuja alegria às vezes contagiava todo o cortiço, o português, antes tão
prudente, bate-se com o ciumento mulato Firmo, antigo amante de Rita,
matando-o, finalmente, a pancadas, junto com dois cúmplices contratados. Por
amor de Rita, ele deixa à sua família um triste fado e se entrega a uma conduta
leviana e dissoluta.
A
estas duas linhas centrais da ação acrescenta-se ainda um número de ações
secundárias relacionadas, sobretudo, com os moradores do cortiço. A "menina
do cortiço", mencionada no esquema, transforma-se, no romance, ainda que
não com aquela posição prioritária anunciada, na doentia Pombinha, cuja mãe,
Dona Isabel, originária da classe média, anseia novamente retornar às boas
condições sociais através do casamento de sua filha com um jovem comerciante.
Porém Pombinha, escrevendo as cartas dos moradores do cortiço em virtude de sua
instrução e conhecendo perfeitamente os seus trágicos destinos, cai nas malhas
sedutoras da prostituta Léonie, e acaba, ela própria, na prostituição. Também a
ardente mulata Florinda, cortejada inutilmente por Romão, seduzida e
engravidada de um dos seus auxiliares da venda, segue por um caminho semelhante,
depois que a mãe, procurando em vão ajuda das autoridades policiais, a repudia.
Por
outro lado, é diferente o destino de Leocádia, a leviana mulher do serralheiro
Bruno, apanhada pelo marido em flagrante adultério com um estudante, de que
gostaria de ter o filho que aquele não lhe podia dar. Chega-se aqui, primeiramente,
a um dramático e ruidoso desentendimento do casal e a uma separação provisória,
triunfando no final solidariedade, reconciliação e amor. E nenhuma outra, senão
Pombinha, é que redige a carta de reconciliação a Leocádia. Estes e ainda mais
outros destinos preenchem o coeso complexo do cortiço com vida, paixão e
dramaticidade.
A CRÍTICA SOCIAL E O ENUNCIADO DO ARTISTA NO ROMANCE
De
maneira diversa de O Mulato, em que o
autor, através de partes declamatórias, leva de forma mais ou menos bem clara e
casualmente panfletária a tendência do livro ao primeiro plano, o enunciado do
artista em O Cortiço é, em essência,
alcançado diretamente pela configuração dos personagens e da ação. Isto motivou
que críticos, como Massaud Moisés, constatassem que aqui Azevedo não toma
partido algum, mas descreve e analisa com indiferença e “com a frieza
científica do médico" um fenômeno social, em que nada se pode mudar.
Decerto
este romance não encerra nenhuma tentativa de solução de problemas sociais,
segundo verifica, com razão, o mesmo crítico acima; todavia, um parecer desta
natureza mal poderia prevalecer para uma obra, cuja ideia de enunciado
artístico central é a cruel exposição de falta de escrúpulos, e corrupção da
minoria da camada superior, do mesmo modo que a miserável e nula condição das
classes inferiores do povo.
Este
enunciado e acusação conseguir-se-ão sobretudo mediante a nítida e consequente
estruturação de João Romão, cujo desejo fanático de enriquecimento e egoísmo
personificam, de forma bem sucedida, os traços típicos do capitalismo febril em
sua evolução: "Desde que a febre de possuir se
apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples,
visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens...
Afinal, já não lhe bastava sortir o seu estabelecimento nos armazéns fornecedores;
começou a receber alguns gêneros diretamente da Europa: o vinho, por exemplo,
que ele dantes comprara aos quintos nas casas de atacado, vinha-lhe agora de
Portugal às pipas, e de cada uma fazia três com água e cachaça... Criou
armazéns para depósito, aboliu a quitanda e transferiu o dormitório,
aproveitando o espaço para ampliar a venda, que dobrou de tamanho e ganhou mais
duas portas.
Já
não era uma simples taverna, era um bazar em que se encontrava de tudo: objetos
de armarinho, ferragens, porcelanas, utensílios de escritório, roupa de riscado
para os trabalhadores, fazenda para roupa de mulher... E toda a gentalha
daquelas redondezas ia cair lá, ou então ali ao lado, na casa de pasto, onde os
operários das fábricas e os trabalhadores da pedreira se reuniam depois do
serviço, e ficavam bebendo e conversando até às dez da noite... Era João Romão
quem lhes fornecia tudo, tudo, até dinheiro adiantado, quando algum precisava.
Por ali não se encontrava jornaleiro, cujo ordenado não fosse inteirinho para
as mãos do velhaco. E sobre este cobre, quase sempre emprestado aos tostões,
cobrava juros de vinte por cento ao mês, um pouco mais do que levava aos que
garantiam a dívida com penhores de ouro ou prata." Nenhuma possibilidade
de enriquecimento parece escapar aos olhos de gavião desse inveterado obreiro
da acumulação capitalista, e todo meio lhe convém para a exploração dos outros,
por tão baixa e infame que fosse, seja extorsão, roubo ou fraude.
A
caracterização deste herói que, por assim dizer, lembra frequentemente os tipos
de Balzac, atinge sua mais clara expressão no comportamento desumano deste
administrador brutal com relação à escrava Bertolesa. Porém numerosos outros
detalhes são os elementos que deixam o leitor, de uma maneira realista, mirar
num abismo moral. Romão, assim, oferece ao sedutor da mulata Florinda uma
possibilidade para a fuga do cortiço, e combina esta proposta com uma tentativa
de passá-lo para trás, escamoteando-lhe a recompensa devida. Seus pensamentos,
quando da admissão do trabalhador Jerônimo ("os meus setenta mil-réis
voltar-me-ão à gaveta. Tudo me fica em casa!"), desmascaram tanto o frio
calculismo como o brutal aumento dos aluguéis e dos preços das mercadorias, depois
do sinistro irrompido no cortiço. Servir-se Romão, finalmente, da mediação de
um super-reacionário traficante de escravos para o seu plano de casamento, para
quem a simples menção do movimento abolicionista e da Lei Rio Branco agia como
veneno, ressalta mais fortemente ainda o seu caráter hostil ao povo. Nada mais
que parcialidade do autor contra as práticas dessa camada social, descrita, no
fim do livro, em seu esplendor externo nos cafés da Rua Ouvidor, é também o
fato de que a brilhante escalada de Romão constitui, ao mesmo tempo, o seu
ingresso em um ambiente de pseudo-moral e hipocrisia, conforme mostra o exemplo
do casamento arruinado de Miranda e Dona Estela: "Ainda antes de terminar
o segundo ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de
adultério, ficou furioso e o seu primeiro impulso foi mandá-la para o diabo
junto com o cúmplice; mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela
trouxera, uns oitenta contos em prédios e ações da dívida pública, de que se
utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia o regime dotal. Além de que,
um rompimento brusco seria obra para escândalo, e, segundo a sua opinião,
qualquer escândalo doméstico ficava muito mal a um negociante de certa ordem.
Prezava, acima de tudo, a sua posição social... Mas não é apenas o
relacionamento do próspero novo rico com a família de Miranda, fundado em frios
cálculos e na ausência de genuínos sentimentos humanos, que reforça a crítica e
estabelece os elementos da antipatia do artista. Antes do que, isto também
ocorre através das numerosas tomadas intercaladas, do pano de fundo social, as
quais ilustram o típico deste personagem. Nisto se inclui a especulativa
atividade de construção de alguns empreiteiros (construía-se mal, porém
muito; surgiam chalés e casinhas da noite para o dia; subiam os aluguéis; as
propriedades dobravam de valor), do mesmo modo que a doce vida dos
"sensuais gordos fazendeiros de café, que vinham à corte esbodegar o farto
produto das safras do ano, trabalhadas pelos seus escravos". Para tornar
mais carregada esta atmosfera forjada de egoísmo, corrupção e fraude também
contribuem as alusões referentes às compras de votos por "importantes
chefes de partido." A conduta moral das figuras principais está
representada em sua relação causal com a específica da realidade social.
Um
importante elemento do enunciado artístico de O Cortiço é, porém, antes de tudo a sensível simpatia do autor pelo
povo simples, à qual Jacob Ornstein oportunamente já fez referência. Esta
corresponde plenamente a uma atitude que Azevedo em 1912 externou em carta a
Raul Vachias, com as palavras: "Meu coração não pertence aos felizes e bem
dotados pela sorte, meu coração pertence aos míseros, aos mesquinhos, aos
desamparados..." Ela se expressa nesta obra das mais variadas formas e, em
harmonia com a composição do romance, refere-se tanto ao destino individual
como ao coletivo.
Abstraindo-se
da exposição geral da condição desta camada inferior do povo, despojada de
direitos, inteiramente sujeita à arbitrariedade dos proprietários, e às
autoridades a serviço destes, revela-se esta atitude de forma mais marcante na
figura da negra Bertoleza, que de fato, como vítima de uma instituição desumana
em sua essência, apresenta as características de uma deformação psíquica
("envergonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste de
sentir-se a mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e
clara"), porém que guardou para si um resto inalienável de dignidade
humana, com o qual ela manifesta seu amor à liberdade e pelo qual ela se torna
ao mesmo tempo acusadora: "Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! E
exatamente por estes sentimentos, que nada têm a ver com aquela outra
especulação calculista, é ela, no ponto de vista humano, muitíssimo superior
aos Romãos e Mirandas. Moralmente ela se torna, assim, no sentido positivo do
termo, um corpo estranho em casa do próspero especulador.
Esta
simpatia do autor vai tomando forma em muitos pequenos episódios do romance,
como, por exemplo, na tocante cena em que o trabalhador Bruno (não sem
vacilações e sacrificadamente) dita a carta de reconciliação com a sua
demasiadamente alegre e leviana mulher, ou nas despretensiosas palavras com que
a lavadeira branca, Augusta, descreve seu feliz matrimônio com um mulato
("Meu marido é pobre e é de cor, mas eu sou feliz, porque casei por meu
gosto"), a qual, naturalmente, está servindo de polo oposto às
especulações de casamento na camada de elite. Porém esta mesma avaliação moral
se encontra, também, nas coloridas cenas panorâmicas que descrevem as
lavadeiras e os trabalhadores da pedreira durante a execução de sua penosa
faina diária. Aqui o autor utiliza precisamente o trabalho na pedreira, pelo
qual ele, de várias maneiras, já revelou especial interesse, para uma
representação estilística, que atribui àqueles que o executam uma particular
dignidade: "E todo aquele retintim de ferramentas, e o martelar da forja e
o coro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo e a surda zoada
ao longe... tudo dava a ideia de uma atividade feroz, de uma luta de vingança e
de ódio. Aqueles homens gotejantes de suor, bêbedos de calor, desvairados de
insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra, pareciam um
punhado de demônios...” Aqui a simpatia do autor pelos trabalhadores passa
diretamente para aquela "posição populista", já observada por
Fernando Góes em O Mulato.
Ao
mesmo tempo, em O Cortiço este
entusiasmo por atividade e criação, dos homens, que de vez em quando lembra o
arrebatador efeito da “atividade em si", conforme foi esta observada na
obra de Zola, associa-se com uma exaltação das conquistas da técnica moderna.
Assim o episódio do grande sinistro, ocorrido no cortiço, estiliza-se através
da intervenção dos bombeiros, em forma duma luta entre homem e natureza, cuja
expressão abarca simultaneamente, além da simpatia pelo homem ativo, uma crença
nos progressos materiais do século dezenove. "E logo em seguida apontaram
carros à desfilada, e um bando de demônios de blusa clara, armados uns de
archotes e outros de escadinhas de ferro, apoderaram-se do sinistro,
dominando-o incontinenti, como uma expedição mágica, sem uma palavra, sem hesitações
e sem atropelos. A um só tempo viram-se fartas mangas de água chicoteando o
fogo por todos os lados... homens, mais ágeis que macacos, escalavam os
telhados abrasados por escadas que mal se distinguiam... ao passo que outros, cá
de fora, imperturbáveis, com uma limpeza de máquina moderna, fuzilavam de água
toda a estalagem, número por número, resolvidos
a deixar uma só telha enxuta — o povo aplaudia-os entusiasmado, já esquecido do
desastre e só atenção para aquele duelo contra o incêndio".
Ao
lado dos elementos analisados compartilha do enunciado do romance uma fé
comprometida na índole brasileira, na miscigenação de raças e no Brasil, no
mais amplo sentido da palavra. Este credo inequivocamente já está compreendido
no impiedoso desmascaramento dos dois novos ricos portugueses, em verdade
considerados como corpos estranhos dentro da estrutura da nação brasileira em
formação: Miranda aceita que lhe seja concedido pela coroa portuguesa o título
de nobreza, Romão sonha até mesmo tornar-se "chefe da colônia portuguesa
no Brasil". Expressa-se, também, na inclusão de muitos mulatos, desenhados
com traços positivos, no âmbito de ação do cortiço dos trabalhadores. Mas ele
alcança seu ponto culminante na configuração e na função da mulata Rita Baiana,
que em sua popular alegria de viver e seu despreconceito moral lembra tanto a
Vidinha, de
Almeida, como também a Gabriela, de Amado. Em O Cortiço ela se vê poeticamente elevada a um ideal de brasilianismo,
e na descrição do personagem que é (sobretudo de sua influência sobre o
imigrante Jerônimo) acumulam-se os símbolos e quadros orientados para o
nativismo: "E viu Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia,
surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se num momento,
envolvendo-a na sua cama de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor
se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda
de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher... Naquela mulata
estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando
aqui: ela era a luz ardente do meio dia; ela era o calor vermelho das sestas da
fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas
matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma
outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o
mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela
era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que
esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos,
acordando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha
daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de
prazer...”
Em
torno dessa ardente mulata, cuja sexualidade faz jus a uma imagem hoje em dia
ainda profundamente arraigada no país, desdobra-se uma profusão de erotismo
brasileiro, a lembrar, com suas referências às frutas, à flora e fauna
tropicais, além dos pratos nativos (farinha de mandioca, feijão-preto, moqueca,
vatapá, caruru, pirão de fubá, etc.), o componente regionalista de O Mulato. Aqui se põe, assim, em relevo
o sentimento de fé nacional comprometida, através de uma sólida confrontação
dos elementos e de suas correspondências portuguesas, mediante uma rivalidade
que cessa com o triunfo do brasileiro. Não só os "gostosos quitutes
baianos", que de maneira característica emanam do "berço da cultura
nacional" do Brasil, se impõem perante o "bacalhau com batatas e
cebolas cozidas", mas também a cachaça de cana ao vinho, e a rede à cama
portuguesa. Neste duelo dramático de ambos os cortejadores de Rita triunfa a
faca do ágil mulato Firmo sobre o "varapau minhoto" do espadaúdo
português.
Este
confronto etno-psicológico atinge, todavia, a sua expressão mais contundente lá
onde ela apreende o grande talento artístico e musical típico do caráter
nacional brasileiro, em que hoje também se baseia a multiplicidade de formas da
arte popular. Trata-se, aqui, das sonoridades fascinantes dos chorados, sambas
e modinhas dos mulatos, dominando com sua musicalidade e afugentando a têmpera
saudosa dos fatos portugueses. Aqui, o próprio instrumento musical é elevado ao
nível de um símbolo nacional, que deve exprimir o modo de ser brasileiro.
"Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos,
até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristezas; rompeu
vibrantemente mas, de repente, o cavaquinho com um chorado baiano. Nada mais
que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela
gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas
bravas... E aquela música de fogo doudejava no ar como um aroma quente de
plantas brasileiras... E à viva crepitação da música baiana calaram-se as
melancólicas toadas dos de além-mar."
Entretanto,
no comprometimento, por diversas vezes violentamente inflamado, deste livro com
o Brasil e a miscigenação de raças, que coloca Azevedo numa fileira de pensadores
tão progressistas como Sílvio Romero, mesclam-se dissonâncias, só explicáveis a
partir do conhecimento objetivo da época. Verdade é que Rita Baiana, não
exposta em seu habitat popular aos
preconceitos raciais, que para o protagonista de O Mulato se tornaram fatalidade, incorpora um ideal que se
manifesta, entre outros aspectos, na ênfase de sua solicitude e de seus
encantos físicos. Raymond Sayers fala até mesmo de "the apotheosis of her race".
Não obstante, revelam-se nesta figura
ideal os elementos de uma "Ideologia do Colonialismo", e sobretudo no
imigrante português, Jerônimo, que sofre, sob sua influência, um processo de
"abrasileiramento". Estes elementos assomam ora na insinuada
graduação da mesclagem racial ("O sangue da mestiça reclamou os seus
direitos de apuração e Rita preferia no europeu o macho de raça
superior"), ora no fato de que as consequências da marginalização dos
mulatos, condicionada socialmente, são motivadas pelo clima ("aquela
Natureza alcoviteira") e pelo fator da miscigenação racial, pelo que são
resgatados à sua concreção histórica e, de forma arriscada, assinalados como
permanentes atributos nacionais. Este fato aflora com a maior nitidez na pessoa
de Jerônimo, onde Azevedo se deixa fascinar pelo clichê de conhecida
"preguiça brasileira", amplamente difundido na literatura de seu
país, com o qual se disfarçam fatos históricos e sócio-econômicos: "O
português abrasileirou-se para sempre; fez- se preguiçoso, amigo das extravagâncias
e dos abusos, luxurioso e ciumento, fora-se-lhe de vez o espírito da economia e
da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro à
felicidade de possuir a mulata..." Por meio destes reflexos de ideologia
colonialista e das teorias de Taine e Buckle, o credo nacional, comparando-se
com O Mulato, vê-se enfraquecido na força de seu depoimento, apesar da paleta
colorida dos símbolos. Este credo é agravado pela absolutização de elementos
que, ou têm uma importância secundária, ou condizem com uma situação socioeconômica
definida, cujo caráter de transição e historicidade não é satisfatoriamente
elucidado. Decerto estes limites do conhecimento de Azevedo estão demarcados
pelo desenvolvimento social do país.
A COMPOSIÇÃO E A CONFIGURAÇÃO DO COLETIVO SOCIAL EM O CORTIÇO
Para
um romance que aspira a criar um vasto panorama da sociedade brasileira no
último quartel do século dezenove, e que na opinião do moderno crítico Álvaro
Lins reproduz o espírito de uma cidade concebida em crescimento e transformações,
uma grande importância era preciso atribuir à solução de problemas de
composição. Da parte da crítica já se fizeram referências às dificuldades
técnicas que, de um modo geral, se formam para o autor, do entrelaçamento dos
numerosos destinos individuais nos limites de um todo maior. Se quiséssemos delinear com as palavras
mais breves o caminho aberto por Azevedo, precisaríamos então mencionar o
extraordinário dinamismo do livro e o radical confinamento das partes apenas em
descrição, em favor de uma estrutura rígida. Aliás, com isto seria feita
somente uma constatação geral, que carece de precisão; porém, ao mesmo tempo,
teria sido feita alusão ao contato direto com Casa de Pensão relativamente à composição. Um contato que se permite,
simultaneamente, assinalar como continuação e aprimoramento.
O
referido dinamismo caracteriza de antemão o princípio do romance, pois aqui se faz
em algumas páginas uma concentrada introdução, de vigorosa expressão, aos antecedentes,
às normas sociais, ao meio-ambiente e às ambições dos dois comerciantes
portugueses. Os retratos são quase que completamente convertidos em ação
direta, e os detalhes objetivos servem stricto
sensu à caracterização desses personagens e de seus conflitos, que definem
a ação principal do romance. Ao mesmo tempo, antes ainda de se encerrar o
segundo capítulo, são apresentados com toda a clareza o contraste e a tensão
existentes entre ambas as esferas sociais.
Após
esta concisa introdução na ação central, a partir do terceiro capítulo surgem
no primeiro plano, duma forma mais vigorosa, as massas humanas que habitam o
cortiço. Às pessoas reunidas em torno de Miranda (Estela, Zulmira, Henrique,
Botelho, Isaura, Leonor e Valentim) opõem-se, agora, as lavadeiras (Leandra,
Augusta Carne-Mole, Leocádia, Paula, Marciana, Dona Isabel e outras) com seus
maridos e filhos, introduzidas qual numa galeria de retratos. Seus problemas,
seu trabalho, seu quotidiano, as festas ruidosas e suas fortíssimas discussões determinam
também, a partir daí, o ritmo do livro, e para o trecho dos períodos de tempo,
concentrados em visualização sumária, ocorre agora, na exposição, uma grande
duração, típica dos romances de costumes, e indicação detalhada do tempo, às
vezes chegando-se até à citação das horas ("Deram três horas da
tarde"). Muitos capítulos são dedicados às ocorrências de um único domingo
no cortiço, embora aqui também não falte nenhum acontecimento dramático.
Azevedo
solucionou de diversas maneiras, em termos de composição, o problema da
inclusão das massas na ação do romance. Vêm ao caso as fileiras de retratos,
com seus componentes bastante distintos (detalhadamente no de Dona Isabel,
muito passageiro em Leocádia), assim como a representação do coletivo social em
conexão com seu trabalho e seus usos e costumes. Precisamente o último aspecto
lança, juntamente com a cantiga popular entremeada na ação, uma ponte direta
para o componente regionalista de O
Mulato, muito embora em O Cortiço
aspire-se mais intensamente à relevância do contexto nacional em geral. As
personalizações casuais do cortiço e justaposições niveladoras de destinos
individuais, que, por assim dizer, são retomadas frequentemente en bloc ("Rita desaparecera da
estalagem durante a confusão da noite; Piedade caíra de cama, com um febrão de
quarenta graus; a Machona tinha uma orelha rachada e um pé torcido; a das Dores
a cabeça partida...”), acarretam, sem dúvida, uma supervalorização do coletivo,
que em determinados trechos se torna o verdadeiro personagem principal do
romance, exercendo uma semelhante função absorvente tal qual, noutros pontos, o
clima igualmente supervalorizado do Brasil. A crítica brasileira denominou, em consequência,
esta imagem do coletivo como "alguma coisa mais do que a soma de vidas
humildes". Ela constatou também não haver neste romance caracteres
relevantes que influenciassem a vida dos outros figurantes. E no caso de Dino
F. Fontana, chegou a ponto de caracterizar João Romão e Rita Baiana como
figuras de romance "irremediavelmente impotentes e incapazes de
reação", uma vez que o próprio cortiço domina a ação.
Nessas
críticas, especialmente na última referida, cuja impraticabilidade já se
permitiria provar pela trama da obra, não se toma, porém, em consideração, a
relação recíproca entre personagem individual e coletivo, importante para a
composição e dinâmica do romance. Muitas existências individuais são acentuadas
e dramatizadas exatamente com a participação do grupo, não perecendo, de modo
algum, no meio da multidão anônima. A volta da mulata Rita Baiana ao cortiço
torna-se um acontecimento que interessa a todos os habitantes e os lança num
turbilhão de excitações, deixando, porém, ao mesmo tempo reconhecer-se, também,
o caráter magnânimo, inclinado à leviandade, desta popular figura. Da mesma
forma, a visita da embonecada prostituta Léonie transfigura-se numa cena
coletiva tal, em que todas as mulheres do cortiço admiram e apalpam os vestidos
e as roupas íntimas da coquete mulher. O fracasso conjugal de Leocádia, a
gravidez de Florinda e o desespero de Piedade após abandoná-la o marido são, de
certo modo, reforçados pelos comentários e pela participação dos outros. O
grupo, pelo autor denominado ora de "coro", ora de "roda",
atua, aqui, sobre os destinos individuais, como uma caixa de ressonância. Por
outro lado, refletem sobre o indivíduo acontecimentos ou emoções introduzidas
pelo grupo adentro e assim intensificadas. Isto se faz de forma particularmente
nítida na caracterização dos ânimos que precedem o casamento de Pombinha com
Costa: "Mas, daí a uma semana, a estalagem era toda em rebuliço desde logo
pela manhã. Só se falava em casamento; havia em cada olhar um sanguíneo reflexo
de noites nupciais". Estas relações dão ao livro um movimento íntimo
especialmente vigoroso.
Também
constam da composição de O Cortiço
gradações dramáticas em forma de reações em cadeia, como se pôde de antemão
verificar nas outras obras do autor. Aqui, este processo de fato alcança o seu
ponto culminante nas duas grandes cenas da luta. Nesta passagem consegue-se
aquele "espetáculo das massas" de que fala Lúcia Miguel Pereira. O
duelo entre Jerônimo e Firmo, coroando-se com o ferimento do português
provocado pelo ágil lutador de capoeira, passa diretamente a uma espécie de
batalha de rua, entre os habitantes do cortiço e a polícia. "De cada
casulo espiavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro. Um
empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se
ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira
vez". Uma nova gradação da dramaticidade ocorre quando, de repente, irrompe
um incêndio no cortiço, e ainda desaba um temporal sobre a cidade. Semelhante é
também a segunda cena coletiva desta natureza, na qual se incluem os moradores
de um cortiço vizinho, pertencente, também, a um rico português. O duelo entre
Rita e Piedade é que transforma sentimento nacional em paixões irrefreáveis e
divide o cortiço em dois partidos. "E as palavras galego e cabra
cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas. Houve um vavau rápido e surdo,
e logo em seguida um formidável rolo, um rolo a valer, não mais de duas
mulheres, mas de uns quarenta e tantos homens de pulso, rebentou como um
terremoto". No entanto, a apaixonada "rivalidade nacional" de
repente dá lugar a um sentimento de solidariedade, ao aproximar-se uma tropa de
homens armados, vindos do hostilizado cortiço vizinho. Esta gradação, de uma
atuação romantizada pelos nobres gestos dos lutadores, da qual igualmente
compartilha a natureza ("O sol, único causador de tudo aquilo"), novamente
atinge o clímax com um incêndio, aliás a interromper a luta das duas facções,
introduzindo, contudo, uma nova batalha dramática, desta feita, segundo já fora
mencionado, entre o homem e a força da natureza, e com duas vítimas de morte
entre os moradores.
Importante
elemento de composição do romance é a oposição contrastante de ambos os meios
sociais, significativa não só para o depoimento crítico, mas também para a configuração
dramática da ação. Esta confrontação, cuja base de partida espacial (e com
isto, imposta, em princípio, naturalistamente) é integrada por tensões
socialmente motivadas e que, por ora, se torna afinal interessante, perpassa
todo o romance e condiciona, essencialmente, a sua estrutura íntima. Ela
prossegue ao mesmo tempo com um processo que, de antemão, se esboça em O Coruja, no quadro dos romances
realistas. Para João Romão, a presença concreta do aristocrático meio-ambiente
vizinho vira fonte de inveja perene e de mais e mais novas ambições a refletirem
uma disputa desempenhada com todos os meios. Esta situação tensa ainda se
manifesta até mesmo quando os dois capitalistas já chegaram a um acordo e Romão
realiza a restauração e ampliação das suas casas. "O prédio do Miranda
parecia ter recuado alguns passos, perseguido pelo batalhão das casinhas da
esquerda, e agora olhava a medo, por cima dos telhados, para a casa do
vendeiro, que lá defronte erguia-se altiva, desassombrada, conseguira meter o
sobrado do vizinho no chinelo: o seu era mais alto e mais nobre."
O
outro campo de tensões nasce entre o colorido e rude populismo no cortiço dos
trabalhadores, personificando o Brasil explorado por Portugal, e o arrogante e
enfastiado grupo de esnobes na casa de Miranda, em que se infiltra João Romão
com uma lógica coercitiva. Esse campo cria-se pela frequente e brusca mudança
de cenas em que, todavia, quase sempre o meio aristocrático é esboçado apenas
esquematicamente, e atua de maneira um tanto desbotada e palidamente, em
comparação com a estruturação plástica dos costumes. Ao fervor do trabalho,
estilizado pela mania de limpeza de Marciana, opõe-se um nítido distanciamento
de qualquer trabalho corporal na família do barão. Assim, a título de
ilustração, após animada cena que descreve as lavadeiras trabalhando ("E
as lavadeiras não se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer camisas
e ceroulas, esfogueadas já pelo exercício") e mexericando a respeito das
outras ("Para a Rita todos os dias são dias santos! A questão é aparecer
quem puxe por ela!), insere-se um instantâneo daqueles que levam uma vida
completamente diferente. "Em uma das janelas da sala de jantar do Miranda,
Dona Estela e Zulmira, ambas vestidas de claro e ambas a limarem as unhas,
conversavam em voz surda, indiferentes à agitação que ia lá embaixo, muito
esquecidas na sua tranquilidade de entes felizes". A acumulação destes
confrontos, os quais também encerram um comentário sobre a duvidosa moral de
Dona Estela, expresso pelos moradores do cortiço, além de um insulto e ameaça
aos trabalhadores, partido de Miranda ("Ah, canalhas! O que eu devia fazer
era atirar-lhes daqui como a cães danados!"), acarreta uma presença
constante de ocorrências de oposição de classes, e com isso tensões, a
refletirem a estrutura social do país. Para este conflito falta, todavia, o
método para a solução que no fim reunisse Romão e Miranda.
Como
nas outras obras realistas, também em O
Cortiço cabe ao desfecho do romance uma função importante em termos de
composição. Depois da profusão de vidas individuais e cenas coletivas, que
atingiram o seu apogeu dinâmico com a luta de um cortiço contra o outro,
Azevedo desloca novamente para o primeiro plano, de forma cabal, aquelas
figuras que reinavam no dramático começo do romance. Encerra-se assim um quadro
que, em face do grande número de linhas de ação, possui uma função
disciplinadora. Ao mesmo tempo, porém, este desfecho é também o ápice da
dramaticidade humana do romance, pois em nenhum outro lugar da obra a carência
de direitos das camadas inferiores do povo é representada com tanta comoção.
Como em O Mulato, aqui é a sobriedade
da descrição que provoca, realisticamente, a indignação do leitor pelo caráter
cruel do regime escravocrata, sem com isso recorrer a comentários enfadonhos.
Esta indignação intensifica-se mais ainda com as irônicas frases finais com que
o autor reproduz o triunfo social do abrutado novo rico: "Nesse momento
parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que
vinha, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito. Ele
mandou que os conduzissem para a sala de visita".
O
MÉTODO LITERÁRIO DE AZEVEDO EM “O CORTIÇO”
Relativamente
ao método, aos princípios da captação em arte, da realidade, afloram também na
obra principal de Azevedo os efeitos da redução e aceleração do processo
evolutivo literário no Brasil. Estes se revelam na justaposição e fusão de
diferentes métodos literários e se manifestam mormente na tipificação dos
personagens e das circunstâncias. Como nos outros romances significativos do
autor, são os elementos românticos e naturalistas que aqui se sobrepõem a uma
obra realista.
Os
componentes românticos em O Cortiço
acham-se, todavia, reduzidos a um mínimo de particularidades estilísticas e de
estrutura formal, razão por que este romance se prende mais fortemente ao
contexto de Casa de Pensão que de O Mulato e O Coruja. Não obstante, são estes elementos perceptíveis. Eles se
apresentam com a tendência para o exagero e o grotesco fantásticos, qual na
poetização da mulata Rita Baiana, elevada à condição de símbolo nacional, e na
romantização da pancadaria geral, em que se idealiza o nascimento de um difuso
sentimento de solidariedade. Desta forma registra-se, à guisa romântica, também
a rivalidade mas entre os próprios policiais entre os dois cortiços... “mas
entre os próprios policiais havia adeptos de um e de outro partido; o urbano
que entrava na venda do João Romão tinha escrúpulo de tomar qualquer coisa ao
balcão da outra venda. Em meio do pátio do Cabeça-de-Gato
arvorava-se uma bandeira amarela; os carapicus responderam logo levantando um
pavilhão vermelho. E as duas cores olhavam-se no ar como um desafio de
guerra". No mesmo componente deve-se incluir o misterioso incêndio
criminoso, no cortiço, provocado pela lavadeira Bruxa, enlouquecida, que
encontra sua própria morte entre as chamas. Outros elementos românticos, como a
poetização do trabalho na pedreira, de fato se prestam a um depoimento realista
e salientam os contrastes sociais expostos... "surgiam do caos opalino das
neblinas vultos cor de cinza, que lá iam, como sombras, galgando a montanha,
para cavar na pedra o pão-nosso de cada dia. E, quando o sol desfechava sobre o
píncaro da rocha os seus primeiros raios, já encontrava de pé, a bater-se
contra o gigante de granito, aquele mísero grupo de obscuros
batalhadores". As
epígrafes de uma obra nem sempre se referem a elementos essenciais do método de
um escritor. Mas no O Cortiço a
citação extraída do Droit Criminel — "La vérité, toute la vérité, rien que la vérité” — é tão esclarecedora quanto a exigência procedente do Journal de Timon, do historiógrafo João
Francisco Lisboa, por uma censura impiedosa dos crimes e dos vícios. Ao menos
duas destas epígrafes do livro, que são quatro ao todo, insinuam o caráter
realista deste e se harmonizam com as exposições teóricas do autor acerca de
sua ambição de configurar a realidade na arte e de desmascaramento de
inconvenientes sociais.
A
O Cortiço pode-se aplicar a conclusão
de Ivastchenco, de "que o método literário de um escritor pertencente a
uma determinada corrente literária não necessita estar de acordo com todas as
características dessa escola". Em seu estudo especial, Massaud Moisés faz alusões
à dificuldade de enquadramento deste romance. Entretanto pode-se constatar que O Cortiço corresponde, em pontos
fundamentais, às características primordiais do método realista, que
Goloventchenco esboça em sua Introdução à
Ciência Literária. Este fato procede, em especial, quanto à estruturação
dos personagens, tanto na dependência de seu caráter, como da realidade social que
as envolve. É igualmente procedente com relação ao ponto de vista histórico a levar
em consideração as particularidades nacionais e as condições de evolução de um
povo, e em escala limitada também prevalece para a apreensão essencial do mundo
interior dos heróis. Neste romance, a mais profunda compreensão dos contrastes
sociais e a representação da vida da sociedade e do homem em sua evolução,
revelam-se os princípios típicos do realismo crítico. E com razão os autores do
prefácio para a edição em língua russa, de O
Cortiço, frisam o seguinte: "A vida real e os homens reais dominam a maior
parte do romance, e exatamente nisso é que está seu valor".
O
teor de realismo de O Cortiço
decorre, de um lado, da representação verídica da realidade, da qual
compartilham os detalhes materiais e econômicos (inclusive as exatas designações
do lugar e da rua e os termos característicos dos diversos ramos de trabalho),
da mesma forma que os quadros vivos e policrômicos dos diferentes costumes
nacionais e do trabalho quotidiano no cortiço. Gilberto Freire fez de antemão referências
ao valor peculiar do livro, como "documentação sociológica de uma fase e
de um aspecto característico da formação brasileira". Porém o realismo se
mostra de forma mais notória onde a motivação social da degeneração moral dos
caracteres se deixa vislumbrar, e passa para uma afiada crítica à sociedade
brasileira, em que a acumulação capitalista às custas das camadas plebeias, a
que tanto brasileiros como imigrantes portugueses e italianos pertencem, e a
brutalidade do regime escravocrata são denunciadas pela ação convincente de
convincentes caracteres, sem que para tanto se imprescinda de mais longos
comentários do autor.
Como
bem sucedida criação de um tipo social e histórico concreto é que deve ser
qualificado, em especial, o herói principal do romance. A tipificação realista
de João Romão, que se evidencia na relação recíproca entre o seu caráter individual
e a realidade social que o envolve, é alcançada mediante os mais variados
recursos da forma. Ao lado do retrato dramatizado, do relato e da
caracterização do fundo social, do qual este herói parece literalmente brotar,
surgem os inúmeros diálogos mostrando o inescrupuloso caçador de dotes em ação:
seja durante a transação com Botelho acerca da sua comissão como mediador no
plano do enlace, ou seja durante
a conversa com Miranda, carregada de ironia, a respeito da bem sucedida tática
do seguro, ela própria refundindo, ainda, em lucro a miséria alheia: " —
Ah, ah, meu caro! Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a doente!
Segredou o dono do cortiço a rir. Olhe, aqueles é que com certeza não gostaram
da brincadeira! Acrescentou, apontando para o lado em que maior era o grupo dos
infelizes que tomavam conta dos restos de seus tarecos atirados em montão".
Constitui
também um componente do método realista, junto à figura principal da obra, a
análise psicológica que, auxiliada por comentários, monólogos e visões
oníricas, dá ao leitor acesso ao mundo das ideias e dos sentimentos de Romão.
Sua ilimitada ambição, inflamada pela ascensão de Miranda à nobreza,
transfigura-se artisticamente numa visão que, em grandes proporções, continua
presa à realidade: "E em volta do seu espírito, pela primeira vez
alucinado, um turbilhão de grandezas, que ele mal conhecia e mal podia imaginar,
perpassou vertiginosamente, em ondas de seda e rendas, veludo e pérolas, colos
e braços de mulheres seminuas, num fremir de risos e espumar aljofrado de
vinhos cor de ouro... E carruagens desfilavam reluzentes, com uma coroa à
portinhola, o cocheiro teso, de libré, sopeando parelhas de cavalos grandes. E
intermináveis mesas estendiam-se, serpenteando a perder de vista, acumuladas de
iguarias, numa encantadora confusão de flores, luzes, baixelas e cristais, cercadas
de um e de outro lado por luxuoso renque de convivas, de taça em punho,
brindando o anfitrião". O ódio de Romão contra a dedicada Bertolesa
exprime-se na forma repulsiva do limitado mundo das ideias do novo rico:
"Diabo! E não poder arredar logo da vida aquele ponto negro; apagá-lo rapidamente,
como quem tira da pele uma nódoa de lama! Que raiva ter de reunir aos mais fulgurosos
da sua ambição a ideia mesquinha e ridícula daquela inconfessável concubinagem!" O amadurecimento paulatino do pérfido plano contra Bertolesa deixa-se
transparecer ao leitor com a apresentação do mundo das ideias de Romão. Deste
mesmo modo a sua hesitação entre uma avareza consequente e uma magnanimidade
"socialmente necessária", além de suas inibições quando ao ingressar
no círculo social de Miranda, assumem a forma de realismo psicológico.
Para
inúmeros personagens do romance é válido o princípio da motivação social do
caráter e dos atos assumidos. Isto prevalece para o parasita Botelho, da mesma
forma que para o comerciante de fazendas, Miranda, e sua ambiciosa mulher
Estela. E, apesar dos elementos presentes de um complexo de inferioridade
racial, como produto da já mencionada ideologia colonial, este princípio
importa também, em última análise, na configuração da preta Bertolesa e da
mulata Rita Baiana. O próprio destino de personagens secundários como Florinda,
que, após a sua fuga do cortiço, se torna a concubina de um velho libertino,
revela-se ao leitor como efeito da vigente justiça de classes: "Mãe e
filha passaram todo esse sábado na rua, numa roda vida, da secretaria e das
estações de polícia para o escritório de advogados que, um por um, lhes
perguntavam de quanto dispunham para gastar com o processo, despachando-as, sem
mais considerações, logo que se inteiravam da escassez de recursos de ambas as
partes". Muitos dos personagens secundários do ambiente do cortiço, como
Leocádia, Bruno e Marciana, apresentam-se como que primitivos e simples,
condizendo, sem dúvida, também com uma realidade simples.
Malgrado
a base realista do romance, não se deve ignorar o componente naturalista de O Cortiço. Este se apresenta no forte
realce do instintivo, bem como nos pormenores sexuais e fisiológicos, o qual
trai a experiência estética de O Homem,
e alcança seus pontos culminantes em algumas drásticas cenas amorosas (por
exemplo: Leocádia-Henrique, Rita-Jerônimo), sem contudo descambar para a pornografia.
Este componente manifesta-se, porém, ainda mais nitidamente na estruturação de
algumas figuras, para quem o cortiço se torna uma espécie de campo de experimentos
do autor para o estudo da decadência moral, sob condições ambientais especiais.
Pombinha é, no caso, um exemplo saliente. O rumo de sua vida, partindo do meio-ambiente
da pequena burguesia desraigada para, praticamente, em linha reta, o da
prostituição, pode ser, em seu desfecho, de um modo geral sintomático para a
sua condição social. No entanto, a motivação dada pelo autor assemelha-se a uma
experiência naturalista em que a grande enfatização da influência ambiental e
dos fatos fisiológicos desempenha um mesmo papel do casual e do extraordinário
da estrutura
social vigente. A menina, doentia e estimada por todos em virtude de sua prestimosidade,
satisfaz, aliás, o desejo da mãe e, após um despertar para a puberdade, que o
autor descreve com demasiadas minúcias, se casa com o comerciante João da Costa,
com quem ela logra a possibilidade de deixar o cortiço dos trabalhadores.
Assim, vendo-se sob o prisma de uma estruturação realista, estaria garantido o
futuro da menina, uma vez que Costa é descrito como um marido cheio de atenções
e avesso a todos os vícios. No entanto, naquela época Pombinha já era vítima
daquela "esterqueira, onde ela, depois de se arrastar por muito tempo como
larva, um belo dia acordou borboleta à luz do sol". E uma vez que essa
"pobre flor do cortiço" conheceu, além disso, a volúpia do amor
lésbico nos braços da perversa mundana Léonie (a orgia é descrita com muitas particularidades!),
brotará em sua "alma enfermiça e aleijada" a semente espalhada na
lama do cortiço com a exatidão de uma lei natural. Pombinha acompanhará as insinuações
de sua fantasia mórbida, abandonará o seu sóbrio marido e se entregará ao mesmo
vício da mundana Léonie. Ela transmitirá o seu vício à filha de Piedade, que
vive no cortiço. Conforme a Nana, de Zola, ela se vingará da sociedade com uma
frieza de sentimentos e a perfeição com que ela exerce a sua daninha profissão: "...seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota,
pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse dar de
si". Na caracterização de Pombinha, os fatores econômicos e sociais são
então dissimulados e deformados pelos elementos da psicologia Sexual, o que provoca
uma cisão entre as esferas individual e social.
Entre
os componentes naturalistas, embora sem a tendência, verificada no Caso de
Pombinha, para o estudo psico-patológico, está a configuração de Jerônimo e
Piedade. Seu destino representa o malogro dos inúmeros imigrantes portugueses,
para quem no Brasil uma ascensão social ficava vedada, em contraposição aos
empresários como Romão e Miranda. Entretanto, a evolução de Jerônimo, de
trabalhador exemplar a alcoólatra desenfreado, à qual corresponde uma evolução
paralela de Piedade, com os mesmos efeitos, não é motivada pelas
particularidades da estrutura social ou econômica do país. Ela se consuma,
antes, como processo de influências do meio geográfico e como um abandono passivo
da vontade própria do herói diante das "imposições mesológicas" e das
"terras da luxúria". A mulata Rita Baiana é, assim, uma espécie de
instrumento de que a natureza tropical se serve para abrir todas as comportas à
atuação de suas forças. Esta condenação do herói à passividade, que o torna
joguete de uma força onipotente da natureza e que se vê ainda acentuada pela
força de caráter e aprumo, posta em relevo no início, faz com que Jerônimo
apareça como contraponto naturalista do romance. Apenas duma forma totalmente
frágil à lógica social, aqui, vislumbra-se por detrás da fachada do
determinismo mecânico-biológico.
Um
aspecto particularmente interessante do método literário em O Cortiço é o uso de elementos do
naturalismo para a tipificação realista. Este fenômeno, verificado também na
obra de Zola, aqui assoma em forma de frequente representação do animal no
homem. De um lado, ela serve à reprodução impressionante das condições
existenciais aviltantes das camadas inferiores do povo. As miseráveis moradias
surgem, pois, como "viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem
misturados com as irmãs na mesma cama; paraíso de vermes; brejo de lodo quente
e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão". Mas, do
outro lado, serve também para a revelação intensa da brutalidade e desprezo
humano dos novos ricos capitalistas, que encaram o POVO simples somente como
coisa e objeto de suas especulações. Assim, para Miranda o cortiço é uma vizinhança
enfadonha que provoca sua pretensão de classe com aquela "exalação forte
de animais cansados" e com "aquele bafo, quente e sensual".
Romão logra, também, alcançar uma posição semelhante quando se encontra de todo
infiltrado na esfera social de Miranda, e de cuja casa olha com desprezo por
"sobre aquela gentalha sensual, que o enriquecera e que continuava a
mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal senão comer, dormir e
procriar”. A mesma brutalização caracteriza Romão quando, motivado pelas suas
ambições sociais, ainda considera a sua antiga amásia
apenas qual uma coisa repulsiva, e, por assim dizer, a coisifica em seus
pensamentos.
Neste
caso e em muitos outros Azevedo atribui aos elementos a função de uma expressão
substancialmente realista, que é realçada duma maneira mais vigorosa pela expressão
acentuadamente plástico-sensorial. Simultaneamente o autor realiza, assim, na
prática artística, o entrelaçamento dos princípios metódicos insinuados em suas
explanações
teóricas.
OS ASPECTOS LINGUÍSTICOS E ESTILÍSTICOS DO ROMANCE
Os
recursos linguísticos e estilísticos de uma Obra literária acham-se
estreitamente ligados ao método literário, cuja forma de realização, individualmente
cunhada, e concretização prática eles, de certa forma, representam. Daí parecer
justificado abordar questões da língua e do estilo, também
durante o tratamento do método, e vice-versa, abordar questões do método no
tratamento de ambos os outros aspectos. Aqui é importante que o conceito do
método literário seja encarado como predominante, malgrado os problemas da
terminologia ainda hoje em aberto, aos quais se refere
G. Abramovitch, porquanto só partindo-se desta plataforma é que se compreende a
específica dos aspectos linguísticos e estilísticos.
Com
relação a O Cortiço isto significa
sair de um método crítico-realista em essência, com pouquíssimas incursões românticas,
e incursões naturalistas que se podem perceber mais intensamente. Assim, cabe a
este romance, no tocante a língua e estilo, uma importância especial no quadro
de toda a obra de Azevedo, visto não poderem, aqui, ser julgadas procedentes as
referências sempre arguidas pela crítica acerca de um descuido da expressão
ditado pela pressão do tempo e pelo gosto do público. Fato é que faltam
quaisquer manifestações teóricas do autor a respeito desses aspectos de sua
obra; entretanto, o vivo trabalho, de muitos anos, de O Cortiço denota que Azevedo atingiu aqui o zênite e os limites de
sua faculdade de expressão artística. A obra reúne o total de suas capacidades linguísticas
e estilísticas, e, por não esquecer, é daí que provém seu grande e duradouro sucesso.
O
fato de Azevedo haver conseguido uma configuração realista manifesta-se em O Cortiço, numa forma de linguagem que
lança pontes para os dois modelos europeus do autor: para Eça de Queirós que,
como reformador da prosa portuguesa, adotou por base para a sua obra a língua
corrente de Lisboa, e para Zola, que deixou fluir para dentro de seus romances
a gíria dos trabalhadores parisienses. Dentre as características eminentes de O
Cortiço conta-se o imediatismo e a simplicidade populares dos inúmeros
diálogos, que contribuem consideravelmente para a criação de uma atmosfera a
reproduzir com autenticidade a vida. Tal prevalece para a querela de Miranda
com Romão por causa de uma faixa de terreno, da mesma forma que para o forte
desentendimento de Bruno com Leocádia, após flagrado seu adultério em companhia
do estudante Henrique. A título de exemplo, cita-se aqui a altercação entre
Piedade e Rita Baiana, introduzindo uma das grandes cenas de pancadaria do
romance: "Muda-se, não é verdade? insistiu a outra, fazendo-se vermelha. —
E o que tem você com isso? Mude-me ou não, não lhe tenho de lhe dar
satisfações! Meta-se lá com a sua vida! Ora esta! — Com a minha vida é que te
meteste tu, cigana! exclamou a portuguesa, sem se conter e avançando para a porta com ímpeto. —
Hein! Repete, cutruca ordinária! berrou a mulata, dando um
passo em frente. — Pensas que já não sei de tudo? Maleficiaste-me o homem e
agora carregas-me com ele! Que a má coisa te saiba, cabra do inferno! Mas deixa
estar que hás de amargar o que o diabo não quis! quem to jura sou eu! — Pula cá
pra fora, perua choca, se és capaz!". Esta força de expressão popular ainda
se vê intensificada pela inclusão de provérbios ("Para um pé doente há
sempre um chinelo velho!") e a citação de apelidos dos personagens
(Pataca, Machona, Roberto Papa-Defuntos). Assim consegue-se um colorido
nacional da língua mediante a multiplicidade de expressões chulas brasileiras
empregadas, do mesmo modo que pelo acúmulo de formas diminutivas, típico do
Português do Brasil. Este aspecto faz-se particularmente claro no diálogo entre
Bruno e Pombinha: "Ora Nham Pombinha... tinha-lhe um servicinho a pedir...
mas vosmecezinha anda agora tão tomada com o seu enxoval e não há de querer
dar-se a maços. — Que queres tu, Bruno? — N' é nada, é que precisava que vosmecezinha
me fizesse uma carta pr'aquele diabo... mas já Se vê que não tem cabimento...
Fica pr'ao depois!
Este
imediatismo de expressão, do povo, lembra a democratização da prosa, a qual foi
atestada em Eça de Queirós, numa das mais sólidas análises do estilo de sua
obra. Não só regendo, porém, os numerosos diálogos, que por isso se apresentam,
em seu todo, mais fiéis à vida real do que em O Mulato e O Coruja, este
imediatismo também domina as várias passagens do livro em que o autor se serve
do recurso estilístico do discurso indireto livre a fim de tornar acessíveis ao
leitor, conforme antes dele Eça de Queirós e Zola praticaram, os personagens
também nas partes narradas, de forma direta e com a tensão de suas emoções:
"Florinda ria, como de tudo, e a velha Marciana queixava-se de que lhes
respingaram querosene na roupa estendida ao sol. Nessa ocasião justamente, um
saco de café, cheio de borra, deu duas voltas no ar e espalhou o Seu conteúdo,
pintalgando de pontos negros o coradouro. Fez-se logo um alarido entre as lavadeiras.
Aquilo não tinha jeito, que diabo! Armavam lá as suas turras e os outros é que
haviam de aturar?! sebo! que os mais não estavam dispostos a suportar as fúrias
de cada um!" Este recurso estilístico, já assinalado, encontra em O Cortiço aplicações diversas e se
presta à caracterização dos sentimentos e pensamentos secretos dos heróis, como
também à intercalação de vozes anônimas nas cenas coletivas. Qual em Zola, ela
serve "para tornar fluentes as fronteiras entre narrativa e ação", e
isto é, ao mesmo tempo, o recurso adequado para dar expansão à vitalidade, ao
colorido e à força de expressão da linguagem corrente brasileira para muito
além do âmbito das próprias partes dialogadas.
Imediatismo,
precisão e um respeito aos fatos e detalhes típicos, específico da estruturação
realista, caracterizam também de uma maneira ampla os trechos narrados do romance.
Este aspecto prevalece para o começo da obra, exatamente como para o desfecho
dramático, já citado, em conexão com a composição. Com isso, proporção e ritmo das
frases adaptam-se à movimentação da ação, conforme mostra a seguinte cena
coletiva: "Em casa da Rita Baiana a animação era inda maior, Firmo e
Porfiro faziam o diabo, cantando, tocando bestialógicos, arremedando a fala dos
pretos caçanjes. Aquele não largava a cintura da mulata e só bebia no mesmo
COPO com ela; o outro divertia-se a perseguir o Albino, galanteando-o
afetadamente, para fazer rir à sociedade. O lavadeiro indignava-se, dava o
cavaco. Leocádia, a quem o vinho produzira delírios de hilaridade, torcia-se em
gargalhadas, tão fortes e sacudidas que desconjuntavam a cadeira em que ela
estava; e, muito lubrificada pela bebedeira, punha os pesados pés sobre os de
Porfiro, roçando as pernas contra as dele e deixando-se apalpar pelo capadócio".
Em outras passagens, a turbulência do episódio é sublinhada pela brevidade dos
parágrafos, constantes às vezes de uma só frase.
Acresce-se
à tônica popular, fundada no elemento da linguagem coloquial em O Cortiço, uma série de notas linguísticas
e estilísticas secundárias que ocorrem mais ou menos de maneira insistente (e
de vez em quando importuna também). É preciso mencionar, aqui, sobretudo a
coloração naturalista da língua. Esta se revela não só no processo de erotização
da expressão, encontrado também em romancistas brasileiros da atualidade como
Jorge Amado e Dalton Trevisan, e na referência de detalhes de natureza
fisiológica. Ela se apresenta, igualmente, no aglomerado de substantivos tais
como "cheiro", "zunzum", "lama" e "fermentação",
de adjetivos como "quente" "farto", "ardente",
"mole" e "sensuar”, além de verbos como "arfar",
"germinar" e "vermilhar" todos a insinuar, de qualquer
modo, os domínios dos sentidos, do animal e da podridão. Assim, o autor usa um sem-número
de sinônimos para todas as gradações dos ruídos e dos cheiros, como para todos
os matizes das cores, da vermelha em especial. O trabalho com as percepções
visuais e contrastes de cores, traindo claramente o Azevedo conhecedor da
pintura, passa parcialmente a uma configuração impressionista de fato, que
lembra o "écrire pour les yeux"
dos Irmãos Goncourt: "E aquilo se foi constituindo numa grande lavandaria,
agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes
e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres
por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras
barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os
gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de
metal branco".
Qual
o trabalho de Azevedo com as percepções sensoriais, que deixa igualmente suspeitar
um aproveitamento de vivências estéticas próprias, da pintura, e de influências
estilísticas do impressionismo, a plasticidade da linguagem de O Cortiço apresenta um caráter duplo.
Aos quadros naturalistas do domínio da podridão, dentre os quais possuem alguns
uma função expressiva perfeitamente realista, opõem-se inúmeras comparações e
metáforas que, com a sua referência ao animal ou com sua personificação das coisas,
e de quando em vez também de animais, correspondem, aliás, à estética
naturalista, mas acentuando, ao mesmo tempo, o caráter nacionalista.
Comparações de personagens do romance, a "uma onça enjaulada", a um
"jabuti quando vê chuva" ou a uma "anta bravia" são, antes
de tudo, também responsáveis por que no uso das imagens se saliente, nitidamente,
do mesmo modo, o elemento nacionalista do romance, já analisado com relação à
expressão. Comparações com fenômenos naturais do país como a "seca",
e com frutas típicas brasileiras como "sapoti", "caju" e
"coco" igualmente contribuem para o mesmo fato. E não infundadamente
foi que um dos mais notáveis críticos contemporâneos de Azevedo se regozijava
entusiasticamente com esse estilo, graças à sua coloridade, e declarou: "O
estilo, nesta terra, é como o Sumo da pinha, que, quando Viça, lasca, deforma-se,
e pelas fendas irregulares, poreja o mel dulcíssimo, que as aves vêm beijar...
e se há um escritor capaz de incorporá-lo a uma literatura nascente, como é a
nossa... esse escritor é o autor de O
Mulato, em cujas páginas já encontraram-se audácias dignas dos melhores, e
que, nos capítulos inéditos de O Cortiço,
vai derramando todo luxuriante
tropicalismo desta América do Sul".
Certamente
também não se procurará em vão, na linguagem de O Cortiço, por indícios da estética romântica. Azevedo, neste
ponto, poderia dizer, como Zola: "Nous
tous, écrivains de la seconde moitié du siècle, nous sommes donc, comme
stylistes, les enfants des romantiques". Contam-se entre estes
indícios, no sentido negativo, alguns clichês na descrição dos personagens e
uma determinada predileção pelo vago e nefasto epíteto "sinistro",
que, de certa forma, continua o elemento do misterioso em O Mulato. Na já mencionada cena do sonho de Pombinha, que o autor
denomina "seu idílio com o sol" esses clichês aparecem em mescla, de
aparência um pouco banal, com os símbolos de fertilidade, de cunho naturalista.
Pode-se, aqui, concordar perfeitamente com Massaud Moisés, ao constatar este o
seguinte: "Não é impunemente que o escritor cede, por anos seguidos, aos padrões
do público leitor feminino, escrevendo narrativas de entretenimento".
Da
multiplicidade de recursos estilísticos em O
Cortiço fazem parte repetições à guisa de leitmotiv, como o intercalar
constante das expressões "mangas de camisa" e "tamanco" de
Romão, com que é ilustrada a origem inferior dessa figura. Também consta deste
caso o acúmulo de hipérboles, com o qual algumas ideias básicas (por exemplo, a
transformação de Romão, de sovina ao magnânimo e sociável empresário) são
alçadas até ao ultradimensional ou, mesmo, transfiguradas numa visão onírica.
Ademais disso, conta-se, no caso, o recurso da ironia, que Azevedo, e antes dele
Eça de Queirós, manipula magistralmente, com uma profusão de gradações. À
maneira de um sutil e, contudo, desmascarador jogo de linguagem, assim se
afigura este recurso na caracterização do relacionamento do casal Miranda com a
filha Zulmira: "Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno
por supô-la filha do marido, este a detestava porque tinha convicção de não ser
seu pai". A brutal contradição entre aparência e o ser de fato revela-se
por meio da ironia quando o marido de Pombinha se vê logrado com um artista
dramático que muitas vezes lhe arrancara, a ele, Sinceras lágrimas de comoção,
declamando no teatro em honra da moral triunfante e estigmatizando o adultério
com a retórica mais veemente e indignada". Em muitos casos, passa esta
ironia a uma figura grotesca (por exemplo, Libório) ou a uma caricatura,
colocada a serviço da expressão geral do romance. Este aspecto é igualmente
válido para o antigo traficante de escravos e oportunista Botelho, tachado de
"comido de desilusões, cheio de hemorroidas", como para breve
caracterização do atacadista de fazendas, indignados com a festa dos
trabalhadores: "O Miranda apareceu furioso à janela com o seu tipo de comendador,
a barriga empinada para a frente, de paletó branco, um guardanapo ao pescoço e
um trinchante empunhado na destra, como uma espada". Uma mistura de ironia
e comicidade autêntica é, enfim, alcançada na cena em que a primeira visita de
Romão em casa de Miranda e o embaraço, um tanto penoso para o novo rico, estão
caracterizados.
A
variedade e tonalidade cromática dos recursos linguísticos e estilísticos em O Cortiço condizem, pois, com a complexa
problemática do método literário, cujo princípio realista fundamental, porém,
aqueles, no fundo, refletem e realizam esteticamente. Juntamente com os
aspectos da expressão expostos, é esta unidade dialética de conteúdo crítico-social
e forma artística que pressupõe o valor permanente da obra, sobre a qual
escreve, com razão, o crítico iugoslavo Josip Tabak, como sendo "um livro
único, devido à força da narrativa e eficácia dos quadros, como também devido à
complexidade e diversidade dos tipos e ênfase dos contrastes"
---
SIGURD SCHMIDT
Revista Brasileira, janeiro de 1977.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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