A
caricatura viveu uma idade de ouro no jornalismo turbulento do Império.
A
liberdade então atribuída à imprensa criou o terreno propício ao
desenvolvimento dessa arte arte diabólica em cujos movimentos Bérgson encontrou
levantado o demônio que o anjo derrubara.
A
liberdade da imprensa viera no primeiro império e aumentara no segundo, graças
ao regime parlamentar e ao espírito liberal do monarca. Pedro II concedeu
atuação ampla e livre ao jornalismo durante todo o seu longo governo. E o
jornal, abusando dessa regalia, empreendeu as campanhas que solaparam os
sustentáculos da monarquia.
Os
panfletários foram rudes e violentos. Sobre a cabeça do Imperador choveram os
doestos mais torpes. Basta que se recorde um exemplo. No ardor da campanha
abolicionista, José do Patrocínio chegou a escrever períodos como este, ferindo
em cheio o Bragança no poder: "A família Bragança se divide em dois ramos:
os broncos e os idiotas”.
Na
Câmara, os senadores em oposição pareciam porfiar entre si o pronunciamento da
apóstrofe mais atrevida contra as instituições vigentes. Nas praças públicas,
os oradores populares lançavam objurgatórias audazes no poder e às leis, em
tiradas sonoras como bombos de feira. Nas esquinas de ruas ou nos cafés
combatia-se a monarquia a golpes de sarcasmos. E todas essas vozes rebeladas se
reuniam, numa formidável massa coral, e eram difundidas atroadoramente através
das "cem buzinas da imprensa" — na expressão de Oliveira Viana.
Em
tal ambiente a caricatura aflorou como um elemento natural. Chegou para
completar a obra destruidora. E agiu desordenadamente, num furor pânico,
zombando e troçando, rindo e maldizendo, sem restrições ou censuras oficiais,
zurzindo os políticos e os grandes homens, ridicularizando ideias, costumes e
tradições.
Pelos
elementos de que dispõe, a ação da caricatura na luta contra o Império deve ter
sido mais intensa que as dos escritores de combate entrincheirados na coluna do
jornal.
Na
verdade, enquanto o artigo de fundo ou a crônica dirigia-se a uma massa semi-instruída
— a caricatura, numa ação mais ampla, falava ao mesmo tempo à elite à patuleia,
ao ignorante e ao letrado. Nada escapou à sua desabalada perseguição de
escândalos e bandalheiras. Atroou como um halali de guerra. E isso porque a
força da caricatura como arma de combate deriva de três fatores
maravilhosamente coligados: intenso poder de sátira, possibilidade de oferecer
uma percepção imediata e instantânea dos objetivos visados, e universalidade de
linguagem. Esses três elementos, reunidos, a transformam num perigosíssimo
instrumento de luta. E aí está porque essa forma alegre do desenho teve uma
atuação da mais alta importância no solapamento da monarquia.
A
sua história entre nós tem raízes distantes.
Não
está ainda esclarecida a data em que surgiu no Brasil o primeiro periódico de
caricaturas. As opiniões são variáveis, e a falta de documentos dá largas à
imaginação dos fazedores de história.
Há
quem aponte, para o caso, o ano de 1855, quando apareceu o Brasil Ilustrado. Outros historiadores recuam essa data para 1832,
ano em que foram publicados, no Rio de Janeiro, O Martelo e a Cegarrega.
Max Fleiuss, numa síntese da história da Imprensa Brasileira, publicada por
ocasião do centenário da Independência, localiza, entretanto em 1834, com a Mutuca Picante, o aparecimento, no Rio
de Janeiro, do nosso primeiro jornal ilustrado de caricaturas.
A
data precisa nos parece, no caso, uma questão ociosa. Porque até certa época, os
periódicos aparecidos não passaram, em suma, de pasquins brejeiros, sem arte
apreciável e de ação circunscrita a pequenos fatos jocosos de vida de bairro.
Esses jornalecos se chamavam: O Capadócio (1835), O Carapuceiro da Corte (1840), a Lanterna Mágica (1844)...
É
em 1845 que sai, pela primeira vez, no Rio, O
Charivari, revelando já alguma preocupação de sátira fina e feito com certa
arte. O título do novo periódico revela a existência de um modelo: fora
surrupiado ao famoso hebdomadário com que em Paris, a partir de 1832, Philipon
e Daumier, dois grandes caricaturistas, feriam em cheio costumes e medalhões
políticos.
Mas
é de 1860 o esplendor da caricatura no Império. Nesse ano Henrique Fleiuss, há
pouco chegado ao Rio de Janeiro, publica a Semana
Ilustrada. A ideia cai em chão fecundo. Cria-se uma febre de jornais de
caricaturas no Brasil — e esse gênero faceto do desenho viveria aqui, até pouco
mais de 1880, a sua idade de ouro.
Grandes
desenhistas estrangeiros, como Joseph Mil, Augusto Off, Ângelo Agostini,
Fleiuss, Borgomainério e Rafael Bordalo Pinheiro, transportados para a capital
brasileira, povoam, por esse tempo, de malícia, gênio e jovialidade, as páginas
de nossos periódicos ilustrados.
À
sombra ilustre desses mestres, numerosos brasileiros se fazem também
profissionais da caricatura, trazendo contribuições mordentes e pessoais para a
grande batalha da zombaria inteligente. Grandes escritores se reúnem aos grandes
caricaturistas. Na revista de Henrique Fleiuss, Machado de Assis, então no
início da glória literária, escreve, de quando em quando, a crônica alusiva aos
feitos do Dr. Semana — curiosíssimo personagem criado pelo lápis ágil do
diretor do semanário.
Nessa
fase, a caricatura não é apenas política, mas também de costumes. Todos os
espetáculos da corte são surpreendidos pela malícia e a precisão de traços dos
caricaturistas. Figurões da Câmara e membros de Gabinete, comparsas e personagens
da comédia parlamentar do Império, são apanhados ao vivo pela irreverência
triunfante. E ainda hoje os medalhões sisudos que passaram à história, podem
ser evocados nos seus erros humanos, através das atitudes em que os
flagrantearam os caricaturistas. Velhas usanças e costumes, as procissões
esquecidas e o carnaval fora da moda, também se apresentam para o historiador
hodierno, em todos os seus movimentos característicos, graças às charges
daqueles panfletários do desenho e professores de sátira no Brasil imperial.
Pouca
duração teve, no entanto, a revista de Henrique Fleiuss. Mas no mesmo ano de
seu desaparecimento, Fleiuss voltou à carga, com iniciativa mais brilhante:
iniciou a publicação de a Ilustração
Brasileira, que durou até 1878.
Ângelo
Agostini e Rafael Bordalo Pinheiro, com iniciativas próprias, acompanharam de
perto os esplendores do exemplo de Henrique Fleiuss.
Chegado
ao Brasil em 1859, Agostini publica em São Paulo, pelas alturas de 1864 e 1866,
O Diabo Coxo e Cabrião, periódicos de caricatura. Transferindo residência para o
Rio, faz aparecer na Corte a Revista
Fluminense, onde terá colaboradores como Borgomainério e Rafael Bordalo
Pinheiro. Agostini dirigiu ainda o Mosquito e a Revista Ilustrada. E a várias
outras publicações emprestou ele, nesse período, a graça e a beleza de seus
desenhos, em páginas perduráveis pela malícia e perfeição de traços.
Foi
em 1875 que Bordalo Pinheiro chegou ao Rio de Janeiro. Rafael viera de Portugal
com uma tumultuosa tradição de combates gloriosos. No livro e no jornal
impusera-se como caricaturista implacável, zurzindo a ridiculez e as tafularias
dos jarrões políticos, mundanos e literários. E com Rafael Bordalo Pinheiro
começa a grande caricatura em Portugal.
Inquieto,
turbulento, vivendo aventurosamente o seu gênio irônico e rebelado, Rafael
Bordalo Pinheiro, transplantado para o Rio, entra em breve para as rodas
literárias e faz publicar, aqui, um ferino jornal de caricaturas — O Besouro. Houve sensação com o novo
periódico. Bordalo Pinheiro, além da habilidade para fixar os medalhões, tinha
talento máximo para sintetizar em bonecos desengonçados toda uma classe
ridícula de burgueses caricatos. Pouco antes, Rafael batalhara galhardamente
nas páginas de O Mosquito. Travara
combates renhidíssimos com os caricaturistas de periódicos inimigos. E aqui,
como em Portugal, fez com que dentro em pouco se transformasse em legião
assanhada o rol dos seus desafetos iracundos. Até da Câmara houve vozes que se
alteraram para revidar as sátiras do caricaturista português. E Bordalo
Pinheiro, com o desfile habitual dos seus bonecos, nunca perdeu um combate.
De
todos os caricaturistas estrangeiros que atuaram nos jornais do Império, foi
ele o que mais se destacou como caricaturista político. Enquanto os outros se
voltavam de preferência para a caricatura de costumes, Bordalo Pinheiro, com
seus desenhos, satirizava o governo e as câmaras, o exército e a marinha, os
ministros e o clero. Por isso mesmo tornou-se, em pouco tempo, irritante a
atitude do caricaturista português. E logo muitas vozes se levantaram contra
ele, em várias partes do país.
Houve
mesmo um senador que, em plena Câmara, levantou-se para combatê-lo. O caso se
passou em 1876. Por esse tempo Rafael, com suas roupas e seus gastos
excessivos, tinha criado em torno de sua pessoa uma aureola de janotismo e
prodigalidade. E estava em pleno auge da campanha política: desenhava a
Monarquia em forma de um velho comboio ferroviário precipitando-se num abismo,
ou o Sr. D. Pedro em atitudes comprometedoras. Foi então que o senador irritado
declarou, em discurso, que "o Brasil acolhia de bom grado os portugueses
quando eles vinham de jaleca de briche de trinta botões oferecer-lhe o seu
braço e o seu trabalho, mas que não precisavam janotas que ainda por cima lhe
pagavam a hospitalidade com a agressão e com o escândalo.”
Rafael
estava diretamente visado na parlenga senatorial: era português, fora bem
acolhido, e tinha fama de janota pródigo e irreverente.
O
discurso estourou como um tumulto. E o caricaturista deliberou oferecer, de
maneira imprevista, a réplica original da questão.
A
rua do Ouvidor, nesse tempo, tinha por assim dizer, a exclusividade do
mundanismo imperial. Os grandes vultos das letras e da política, em certa hora
do dia, perfilavam-se nas suas calçadas, assistindo ao desfile das belas
mulheres elegantes que exibiam, naquela artéria, as toilettes mais finas e bem
trabalhadas. Uma tarde, logo depois do discurso escandaloso, toda essa multidão subitamente deparou um espetáculo inesperado: — e foi o aparecimento
de Rafael Bordalo Pinheiro, enfiado grotescamente num casaco de mescla, sério,
grave, sisudo e abotoado espetacularmente por trinta enormes botões dourados.
Os
periódicos ilustrados imediatamente se movimentaram, fixando as diferentes
fases do combate.
Esse
episódio pitoresco iria contribuir para a revelação de Aluísio Azevedo como
caricaturista e arrastaria o jovem desenhista maranhense para uma das fases de
renhida peleja na questão.
Foi
assim:
Em
1876, os principais jornais de caricatura da corte eram: O Mequetrefe, O Mosquito e O
Fígaro. Essas folhas viviam frequentemente em luta. E os combates eram
feitos através do desenho: os bonecos e as charges
eram os elementos da batalha.
Desde
a sua fundação, O Fígaro tivera como
ilustradores dois consagrados mestres da caricatura: Leopoldino Faria e Luigi
Borgomainério. Em março de 1876, vítima da febre amarela, que era então a
principal inimiga dos turistas e dos imigrantes, falece o desenhista italiano.
E o Fígaro passa a contar somente com
a colaboração de Leopoldo Faria.
Por
esse tempo surge o incidente com Rafael Bordalo Pinheiro. As revistas comentam
jocosamente o caso. O Mosquito e O Mequetrefe se manifestam. E em seu
número de 13 de maio, O Fígaro dedica
as duas páginas centrais a uma charge engraçadíssima intitulada: Os trinta
botões. Está assinada por um nome até então completamente desconhecido:
Aluísio. Além dessa charge, há, na página de rosto desse número, uma caricatura
de Artur Azevedo, assinada pelo novo desenhista e com esta legenda: "O pai
da Filha de Maria Angu".
Quem
era esse Aluísio? O Fígaro, no mesmo
número, responde à curiosidade de seus leitores. A última página é uma
autocaricatura, com estas palavras de explicação por baixo do desenho:
"Meus senhores! Apresento-lhes um novo caricaturista, o sr. Aluísio
Azevedo, irmão do pai da Filha de Maria Angu, e um rapaz hábil que se propõe a
fazer caricaturas se o público, juiz severo e imparcial, não mandar o
contrário."
O
público não mandou o contrário. E durante dois anos Aluísio ilustraria com as
suas charges e os seus desenhos
alguns dos mais famosos jornais de caricatura da Corte. A sua permanência em O Fígaro é rápida — e no ano seguinte
transfere-se para a redação de O
Mequetrefe. A 19 de março aparecem as suas primeiras ilustrações neste
jornal. Depois trabalharia para a Semana Ilustrada, o Zig-Zag, e a Comédia Popular
— todos esses jornais ilustrados a serviço da irreverência e da zombaria.
A
fase mais brilhante de Aluísio, nessa passagem pela imprensa da Corte, foi
certamente a de O Mequetrefe — e
entre as ilustrações desse tempo convém destacar, pelo cuidado no acabamento e
pela felicidade do motivo, uma visão do século XX, charge muito viva onde está previsto, com certo espírito de combate
à Igreja, a glória de Augusto Comte e o esplendor do positivismo.
JOSUÉ MONTELO
Revista Brasileira, setembro de 1942.
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