A questão matrimonial no "Livro de uma
sogra"
O primeiro
livro brasileiro que conheço em que o casamento é posto em questão e discutido
nos seus elementos e nos seus efeitos é o recente Livro de uma sogra do Sr. Aluísio Azevedo.
Não é nova a tese,
como não são novos os paradoxos que a sustentam, do livro do Sr. Aluísio
Azevedo, o que aliás lhe não diminui o valor. O talento do autor, porém,
renovou um tema que foi uma das preocupações dos inexequíveis psicólogos da
Igreja e deles passou ás literaturas menos superficiais que a da nossa língua.
Nela mesmo, nos ponderosos sermonários e livros de devoção ou moral, não seria
porventura difícil encontrá-la. Um descendente espiritual daquela corrente de
moralistas eclesiásticos, o padre Antônio Vieira, uma das almas mais curiosas e
mais interessantes da raça portuguesa, formulou-a quase duzentos e cinquenta anos
antes do Sr. Aluísio Azevedo nestas palavras que puderam servir de epígrafe e
resumo ao Livro de uma sogra:
"... qual
é ou será a razão ou razões, — pergunta ele no sermão da degolação de São João
Batista — porque do vínculo do matrimônio forme tantos laços a natureza ao
homem, e lhe seja tão dificultoso no matrimônio o guardar a devida fé a uma
mulher, e própria? A familiaridade doméstica, o trato contínuo, e domínio comum
de todos os bens e o serem como duas almas em um só corpo... parece um concurso
de causas, que todas conformemente influem união, paz e contentamento; mas de
todas, e de cada uma delas, nasce a mesma dificuldade. O trato doméstico e comum
de todos os dias descobre, pouco e pouco, os defeitos que causam o desagrado. O
ser a mulher a mesma, sem a variedade que remediava o repúdio, é a ocasião do
fastio. Enfastiavam-se os hebreus do maná, posto que continha todos os sabores,
porque sempre viam o mesmo... A união que ao princípio do matrimônio eram cadeias
de ouro, continuadas as faz o tempo de ferro. Com os anos as mesmas coisas
deixam de ser as mesmas; porque a mocidade se faz velhice, a formosura
fealdade, a saúde doenças e achaques de toda a vida, que na obrigação de se tolerarem,
e sofrerem até a morte, são um cativeiro inseparável que só nela tem fim."
Tudo isto está
no livro do Sr. Aluísio Azevedo, inclusive a comparação entre o amor e o apetite,
o coração e o estômago. Somente no padre jesuíta o acepipe que acode ao símile
é o maná, no romancista contemporâneo o faisão dourado — com a qual aliás os
estômagos indígenas apenas terão tido relações literárias.
Dou por
conhecido do leitor o Livro de uma sogra.
Creio que ele concordará comigo que o Sr. Aluísio Azevedo contou demais com a
nossa complacência em lhe aceitarmos sem dificuldade a obscura psicologia do
casal de D. Olímpia e seu marido e das causas de sua ruptura, causas todas de
ordem intelectual, imaginativa, subjetiva. "Não se poderia desejar
casamento mais equilibrado, nem se poderia conceber um par mais harmonioso, e
até mais simétrico", diz D. Olímpia do seu próprio casal. Apesar de tudo
foram "os dois um casal de infelizes" e tiveram de separar-se. Por
quê! Eis, e o próprio autor o confessa, o difícil de explicar. Realmente não há
no livro explicação que satisfaça, e a análise que dos sentimentos próprios e
do marido faz D. Olímpia se resume na sua mesma conclusão: não puderam ser
felizes porque eram obrigados a viver juntos. Generalize-se o caso e este mundo
é pura e simplesmente um habitáculo de desgraçados; cada casal, dois infelizes;
cada lar, um inferno. É, no caso de D. Olímpia e o marido, ao que leva a psicologia
simples, ou antes simplista, e fácil do Sr. Aluísio Azevedo. Não lha
contestemos porém. Aceitemo-la pelo que vale, embora seja ela, assim falsa, a
cavilha mestra de toda a construção.
A falsidade
desta concepção, porém, não está somente na incoerência ou antes incongruência
entre os dados conhecidos e o resultado exposto, senão em que de um caso
particular que pode ser verdadeiro, se generalizou para dele concluir que a
convivência matrimonial é a causa da infelicidade doméstica. Ora, como se não
compreende matrimônio sem convivência, a conclusão seria contra o matrimônio, a
favor de uma situação que só tem similar na prostituição ou no concubinato
periódico.
"A
invariável convivência matrimonial é a grande razão da corrente infelicidade
domestica, é a causa imediata da fatal desilusão dos cônjuges, mesmo daqueles
que se casam por amor legítimo e verdadeiro, é fonte de inevitável desgraça
para a vida inteira..." Da experiência de um casamento que, segundo todas
as nossas triviais noções de lógica, de senso comum, de prática da vida, devia
de ser felicíssimo, contraído nas melhores condições materiais e morais, intelectuais
e físicas, e que no entanto redundou numa união desgraçadíssima, tirou D. Olímpia
esta sua amarga e desalentada doutrina do casamento. Aceitemo-la como motivada
e justa, e vejamo-la na aplicação. A heroína do Sr. Aluísio Azevedo vê onde a
levam as suas deduções, mas querendo obter para a filha de par com a felicidade
doméstica, que lhe não foi dado ter, as vantagens sociais, preferiu o casamento
ao concubinato, atenuado aquele por uma situação que no teatro seria de um cômico
irresistível. O marido moraria em Laranjeiras, a mulher, sob a guarda vigilante
dela, a sogra, em Botafogo. As localidades, aliás, em que pudessem habitar, não
influem na solução deste problema de felicidade doméstica, em que falta apenas
a casa. O casal constitui-se, pois, assim, cada um na sua residência — sem que
a criadagem, os amigos, a vizinhança, as visitas, a sociedade a que pertencem e
que frequentam pareçam estranhar esta esquisita e rara vida conjugal. O marido
é um singular personagem, que aceita uma combinação de melodrama e esta
ridícula situação de só o ser com consentimento da sogra porque "estava
irremediavelmente perdido de amores; e a moça era muito rica e ele o que se
pode chamar pobre". E assim entraram a viver.
Aqui bate outro
ponto fraco do Livro de uma sogra. A
felicidade, que à vista daquelas premissas, devia resultar deste meio termo
entre o casamento e o concubinato não a sentimos, em todo o decurso dos
acontecimentos que ele nos reconta. E não há ninguém, a não ser algum
desequilibrado ou amoral, algum romântico retardatário e telhudo, que trocasse
na vida doméstica o seu monótono e mesquinho viver caseiro, mesmo com as
pequenas misérias que nos descreve o Sr. Aluísio Azevedo, pela de Leandro e da
inconsciente da mulher. A conclusão do livro não justifica as medidas tomadas
por D. Olímpia para fazer a felicidade da sua Palmira. Compreende por fim que
não lhe deu senão uma parte da felicidade, a menos nobre, a mais grosseira, a
mais contingente, pois que assenta apenas na mocidade e nas vantagens físicas
que com ela se vão. Então, alumiada pelo seu próprio amor casto ao Dr. César,
com quem contrai no fim da vida uma espécie de união mística, que o catolicismo
devia inventar e consagrar e que o positivismo preconizará, volta-se para outra
conclusão cujo valor veremos adiante.
Tal é, na sua
ideia geral, este livro, frequentemente paradoxal e contraditório, por vezes
exato e verdadeiro, desigual e difuso no estilo e na contextura, mal inspirado
na ação, que é de baixa comédia, ousado, embora sem nenhuma originalidade nas ideias,
imoral em suma, mas sugestivo e, no meio da nossa atual produção, distinto... Pode
ser que o próprio autor não lhe desse maior importância que a de um tema
tentador para suas faculdades de artista; mas com intenção ou sem ela, é o
mesmo casamento que ele discute e nega. Por ele entrou, pois, a questão na
nossa literatura.
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JOSÉ VERÍSSIMO
Estudos de Literatura Brasileira (1901)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
JOSÉ VERÍSSIMO
Estudos de Literatura Brasileira (1901)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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