A
BATALHA DE TORO
Por muitas vezes hei escrito, e mais
uma ainda aqui o faço, embora com isso se possam morder uns tantos mal
sofridos, a quem a cega Fortuna tem dispensado inúmeros favores mais devidos a
seus inexplicáveis caprichos, dela, do que ao mérito próprio, deles, e
invejosos, apesar dos benefícios com que injustificadamente colmados, do valor
real de outros a quem a mesma Fortuna tem sido sempre adversa; mais uma vez
sobre tantas outras direi que é Antônio Francisco Barata, da Biblioteca de
Évora, um dos mais talentosos, dos mais sabedores, dos mais conspícuos e
benemerentes homens de letras do nosso país, e daqueles a quem devidos são mais
respeitos e considerações; muito mais que tudo, e o muitíssimo que é e vale,
bem documentado em todos os ramos, bem o posso dizer, da literatura, a si só e
ao seu incansado e fadigoso labutar o deve, desajudado de todo o auxílio e
proteção; e muito mais que a seu luminoso espírito, vasta erudição, e superior
manusear da opulenta língua pátria, predicado hoje tão raro até entre os nossos
escritores de primeira plana, reúne uma acendrada probidade literária, um
indiscutível amor das coisas Portuguesas, e de suas glórias, um caráter
levantado e austero, e uma hombridade respeitável e digna, não bandeados às
conveniências ordinárias da vida.
Irresistivelmente me acodem estas
palavras aos bicos da pena, ao lançar, em reduzida e modesta edição, ao nosso
mundo literário, o breve trabalho por Antônio Francisco Barata escrito ao
correr da pena e de momento, a propósito do que nas Reparaciones Históricas escreveu sobre a Batalha de Toro, o sábio
acadêmico espanhol o Sr. Don A. Sanchez Moguel. Esta é que é uma verdadeira
“reparação histórica”, muito para agradecer e louvar a quem a traçou.
(Vão aqui estas palavras,
irresistíveis como o digo, e tanto como a força da verdade, à revelia do Sr.
Antônio Francisco Barata, e bem receio que elas molestem sua conhecida
modéstia. Se assim for, releve-mas ele com sua usual benevolência).
Rodrigo Veloso (1896)
1º DE MARÇO DE 1476
Desde que, há um ano, li o notável
livro do Acadêmico Madrileno, o Sr. A. Sanches Moguel: Reparaciones históricas, impresso em Madrid em 1894, me
ficaram desejos de revistar os conhecimentos que eu tinha, havia muito, acerca
da Batalha de Toro, ou de
Zamora, pois que o
livro a isso me convidava nesta afirmativa: "Toro es, en efecto, el
desquite de Aljubarrota", que se lê à página 292.
Permeando-se a meus desejos a feitura
de um livro de história pátria: Monja de Císter, terminado e em via de publicidade,
só agora vou mostrar ao ilustre amigo, sábio e catedrático o resultado da
revista e confirmação do que eu tinha aprendido, em leituras antigas.
Primeiramente: para que Toro seja desquite (desforra) de
Aljubarrota, importa estudar as circunstâncias, os pormenores dos dois
combates. Em poucas palavras direi o que se colhe dos livros, tanto portugueses
como castelhanos.
Ambas as batalhas se feriram em
campina plana, ou levemente ondulada.
Combateram em Aljubarrota trinta mil
castelhanos contra dez mil portugueses, números redondos.
O rei de Portugal batalhou a pé, como
qualquer cavaleiro; os castelhanos traziam cavalaria, que os portugueses não
tinham; traziam a rudimentar artilharia, os trons; logo: tinham por si o número, três
vezes maior, artilharia e cavalaria.
Ninguém contesta a derrota total,
formalíssima dos castelhanos em menos de meia hora!
Em Toro, ou Zamora, empenharam-se
forças que não se estudaram ainda bem; uns dão maior número aos castelhanos (o
que é natural) outros lhe concedem forças iguais ou quase iguais.
O rei de Castela não combateu na
batalha de Toro; colocou-se a uma légua de distância (certamente lembrando
Aljubarrota) e desatou a fugir mal viu volver costas a seis alas do seu
exército, ante as forças esforçadas do filho de D. Afonso V; os portugueses
levavam artilharia; o combate prolongou-se por três horas, com muita valentia
de parte a parte; Afonso V não venceu; mas venceu o filho; logo:
A Batalha de Toro não foi a desforra
da de Aljubarrota, porque para o ser, forçoso seria haver igualdade nos
elementos constitutivos dos dois exércitos. Para uma coisa ser antítese de
outra preciso é que o seja em todas as suas particularidades.
A Batalha de Toro foi ganha pelas
forças de Castela contra as de Afonso V, por uma dessas eventualidades da
guerra, que nem seus cabos explicam, muitas vezes, e a que as crenças
religiosas chamam: a influência do Deus das vitórias. Não nego que o mesmo se
possa dizer da de Aljubarrota; possível seria que São Jorge vencesse nela a
Sant'Iago.
Mas a batalha de Toro foi ganha pelas
forças do Príncipe D. João de Portugal e do Bispo de Évora, D. Garcia de
Menezes, contra as seis alas do exército de Castela, que fugiram acossadas e
desfeitas.
Em Aljubarrota não ficara um
castelhano no campo, que não fosse ou morto, ou prisioneiro.
Em Zamora ficou senhor do campo em que
se colocara depois da luta com os seus vencedores, o Príncipe de Portugal, D.
João.
Será, pois, isto um desquite de Aljubarrota?
Entendo que não.
Se escreverem que o fora por ter posto
fim à guerra desgraçada do ambicioso africano, entendo que sim.
Mas, não basta esta síntese de leitura
feita, que tem ares dogmáticos: preciso é o mostrar como tanto portugueses,
como castelhanos, como franceses, como alemães criticaram o combate de Toro.
Começarei pelos de casa, como é natural:
— "E
porém o Principe despois do desbarato que fez, ali onde acabou de recolher sua
jente, esteve no campo em hum corpo çarrado sem nunca mover atrás sua
bandeira..." (Ruy de Pina: Crônica de D. Afonso V, cap. 191.)
— "El Principe al
tiempo del fracaso padecido de su Padre iva seguindo el alcance de las seis
alas ia rotas, pero quando entendió lo que pasava (a derrota do pae) aun que
non pudo revocar a todos de la corriente que levavam apiñose con los que pudo i
otros que de otra parte de su Padre vencida se le acercaron, en una
elevacion..."
—
"Fué vencida esta parte; (a de Afonso) confesamoslo; sin que lo doremos.
Pero el huir una del campo i quedar otra vitoriosa en el varrido de los
contrarios, digan los doctos en los estudios militares que nombre há de tener,
mientras io que no los professo no sé como le hé de lamar, pues halo quien no
quiere que le lamemos vitoria..." (Faria e
Sousa: Europa Port. 2º pág. 407.)
— "...a nosso Senhor
aprouve que nos deixassem o campo, adonde com gloriosa vitória permanecemos
vencedores..." (Carta de D. João II fazendo mercê a Lourenço de Faria,
seu alferes. Torre do Tombo, L. 2º da Extremadura, pág. 274.)
— Porém depois, tocado de ambição
E glória de mandar, amara e bela,
Vai cometer Fernando de Aragão,
Sobre o potente reino de Castela.
Ajunta-se a inimiga multidão
Das soberbas e várias gentes dela,
Desde Cadix ao alto Pireneu,
Que tudo ao rei Fernando obedeceu.
E glória de mandar, amara e bela,
Vai cometer Fernando de Aragão,
Sobre o potente reino de Castela.
Ajunta-se a inimiga multidão
Das soberbas e várias gentes dela,
Desde Cadix ao alto Pireneu,
Que tudo ao rei Fernando obedeceu.
Não quis ficar nos reinos ocioso
O mancebo Joanne; e logo ordena
De ir ajudar ao pai ambicioso,
Que então lhe foi ajuda não pequena.
Saiu-se enfim do trance perigoso
Com fronte não turvada, mas serena,
Desbaratado o pai sanguinolento;
Mas ficou duvidoso o vencimento;
O mancebo Joanne; e logo ordena
De ir ajudar ao pai ambicioso,
Que então lhe foi ajuda não pequena.
Saiu-se enfim do trance perigoso
Com fronte não turvada, mas serena,
Desbaratado o pai sanguinolento;
Mas ficou duvidoso o vencimento;
Porque o filho sublime e soberano,
Gentil, forte, animoso cavaleiro,
Nos contrários fazendo imenso dano
Todo um dia ficou no campo inteiro
Gentil, forte, animoso cavaleiro,
Nos contrários fazendo imenso dano
Todo um dia ficou no campo inteiro
(Camões: Lusíadas C. IV est. 77-78 e 79).
—"… em que cada um dos
exércitos ficou meio vencedor, meio vencido…"
"O
Principe D. João depois de seguir & de perseguir por largo espaço aos que
vencera, & lhe fugião, voltando a soccorer seu pay, e achando-o vencido, se
manteve no campo, senhor d'elle, como vencedor…" (F.
de S. Maria: Ano Histórico, tom. 1º pág. 278).
“Derrotado
D. Affonso fugiu de noite para Castro Nuño. D. Fernando fugiu tambem para
Zamora. O Principe vencedor ficou no campo, onde esteve tres dias”
(Damião de Gões: Crônica do Príncipe D. João, cap. 78-79).
—"Le fils à Alphonse V,
ayant culbuté partout les ennemis, resta maitre du champ de bataille et put se
croire vainqueur" (A. A. Teixeira de Vasconcelos: Portugal et la maison de Bragance, pág. 537).
—"O Principe ficou no
campo cõ sua victoria e não curou seguir o alcance…" (Acenheiro,
Inéditos da Hist. Port. T. 5º pág. 273).
Não cito mais portugueses, por inútil, para mostrar o que
escreveram os Castelhanos, que devem ser insuspeitos:
—"D. Enrique conde de
Alla de Liste llegó em seguimento de los que huian hasta la puente de Toro: a
la vuelta fué preso por cierta banda de sol enemigos que con Don Juan Principe
de Portugal sin ser desbaratados se estuvieron en un altozano en ordenanza
hasta muy tarde" (Mariana: Hist. L.º XXIV, cap. X pág. 165).
—"Il fut long et sanglant; et quoique
les Castillans fussent les plus forts, la victoire pencha plusieurs fois du
côté des Portuguais…" (Romay: "Histoire" etc. cap.
XVII).
—"Ferdinand défit
l'aile droite des ennemis, commandée par Alphonse; mais le Prince de Portugal
eut la même avantage sur le Castillan…" (Dictionnaire des Batailles,
Paris, 1771 t. 3º).
—"Pudiera esta victoria
costar muy caro, si el Principe de Portugal, que tuvo siempre su esquadron en
ordenança, y estava muy cerca de las riberas del rio, acometiera a los
nuestros, que andavan van desordenados, y esparzidos…" (Çurita: Anales de Aragon, t. 4º L.º XIX
Ediç. de 1610).
— "El Principe Don Juan
se albergó con una parte del exercito baxo las murallas de Toro…" (D.
Adão Soares Compendio
historico de los Reyes de el Aragon, Madrid, 1797, t. 2º, pág. 312).
—"Les succés de cette
bataille fut assez douteux…" (Abregé chronologique de l'histoire de
Espagne et de Portugal (Paris,
1765, t. 1º pág. 694).
—"L'aile gauche de
l'armée Portugaise s'etant ébranlée en bel ordre, l'aile droite des Castillans
se mit en état de la recevoir par le même mouvement; mais les arquebusades
ayant joué avec beaucoup de furie, & le choc étant violent de la part des
Portugais, les Castillans pliérent & prirent la fuite…" (Colmenar: Anales d'Espagne et de Portugal,
tom. 1º pág. 299).
—"E luego aquelles seis
capitanes castellanos, que abemos dicho que iban à la mano derecha de la
batalla del Rey contra los quales vino à encontrar el Principe de Portugal y el
Obispo de Ebora, volvieron las espaldas, é se pusieron en fuida…" (Hernando
de Pulgar: Cron. de los reis catolicos.
Valência, 1780, pág. 87).
—"El Principe de
Portugal, visto que la gente del Rey su padre era vencida é desbaratada,
pensando reparar algunes de los que iban fuyendo, sobióse sobre un cabezo, à
donde tañendo las trompetas, é faciendo fuegos, é recogiendo su gente, estuvo
quedo con su batalla, é no consentió salir della à ninguno…" (O mesmo
Pulgar, pág. 89).
—"El Principe eredero
de Portugal conosciendo-se vencido el Rey su padre, acogiose a un lugar alto
com su esquadro donde recogio a los que podia…" (Garibay: Chron. d'Espana, T. 2º L.º
VIII, pág. 1276 in
fine).
—"La batalla de Toro,
aunque no tan funesta para los portuguezes como habia sido la de Aljubarrota
para los Castellanos…" (C. Ximenez de Sandoval: Batalla do Aljubarrota, pág.
X).
—"Ferdinand défit
l'aile droite des ennemis commandée par Alfonse, mais le Prince de Portugal eut
le même avantage sur le Castillan…" (Desormeaux: Abregé chronologique de l'histoire d'Espagne, Paris. 1758, t. 3º, pág.
25).
—"A la fin, le prince
resta seul sur le champ de bataille en vainqueur aprés la défaite du corps
principal. Jusqu'au moment de cette défaite, João avait poursuivi les six
divisions battues par lui…" (Schaeffer: Histoire de Portug. pág. 555).
.........................................................................................................................
Basta; mais citações de boas autoridades poderia lembrar, se me
não tornara fastidioso.
Vê-se de portugueses, castelhanos, de franceses e de outros que a
afirmativa do Sr. Moguel foi patriótica em demasia.
Bem disse Fernão Álvares do Oriente:
"As
coisas todas a aparência têm
Conforme os olhos são com que se vêm".
Conforme os olhos são com que se vêm".
O Sr. Moguel viu a batalha de Toro com olhos de castelhano (não de
espanhol, como a todos nos considera os habitantes da Península) eu vejo-a com
os de português; porque força é dizê-lo as duas nações existem autônomas,
apesar da natureza ter formado para ambas dos Pirineus ao extremo ocidente da
Europa este trato de terra fertílimo da Península, que a política e a história
retalharam, não direi para sempre; mas para enquanto Portugal for cobiçado, e
se poder equilibrar na balança dos interesses europeus.
Para muito escrever é o assunto, se aqui fora lugar para isso.
Em vista do que aí fica escrito e transcrito, para mim, nascido em
Portugal, sem animadversão nenhuma, a Batalha
do Toro não foi a desforra da de Aljubarrota. Não a tem mesmo na história.
Foi um combate indeciso.
Rocio
d'apar, S. Braz d'Évora,
24 de dezembro de 1895.
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
24 de dezembro de 1895.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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