1/12/2020

Sonetos de Luís Delfino (Algas e Musgos)


A CANOA

Ela notava então... (e com que graça
Ela notava com seu lindo dedo!...)
A vaga azul do mar lambendo a medo
Leve canoa, que oscilando passa.

É quase do tamanho de uma taça...
Vai rente e rente à beira do rochedo...
Ai!  se a asa, em que vai, se lhe embaraça,
Morre a ave marinha ali bem cedo!...

Isto dizendo, tristemente ria,
Porque seu casto riso de alegria
Tem de outro riso a eterna viuvez.

Mas os ricos tesouros de Golconda,
Que ela mostrava no sorriso à onda,
Tinham mais brilho e mais valor talvez.


COISAS DA TARDE

Era o disco do sol, no poente, um forno
Aberto, a chama calma, e cor-de-rosa:
E a lua, uma camélia branca, adorno
Que tinha a tarde azul na trança ondosa.

Criara o amor o acaso, e a voluptuosa
Hora, e o lugar, e o monte escuso, em torno
Do qual as vagas, num marulho morno,
Gemiam, como quem ou sofre ou goza.

Profundamente um cheiro glauco e amargo
Aspirávamos nós, num beijo insano...
Num beijo insano, demorado, largo.

Fugia ao longe um barco a todo pano...
E era uma dor sumir-se... sem embargo
De quanta verde luz enchia o oceano...


PELA PRAIA

Vão mais depressa... Deixa-os. — Dá-me o braço;
Vem das sombras do monte, em roda, o escuro;
Há muita tarde; o medo é prematuro;
Não temas: vá, mais devagar o passo.

Mais devagar... assim. Esse cansaço
Cura-se, haurindo lentamente ar puro;
Não receies; teu corpo ao meu seguro,
Encostado, é mais leve, encurta o espaço.

Olha os teus pés; levanta um pouco a saia,
Qué-los beijar o mar, os quer, e afaga:
Cai a noite? — Que tem que a noite caia?

Com que delícias o terror nos paga,
Quando vamos tão bem a sós na praia,
Ouvindo a flauta ao vento, e o búzio à vaga!...


DANÇA DE TRITÕES

Vasquejava o oceano indômito defronte:
Como corola agreste, a choupana de pinho
Abria-se por sobre o dorso hirto do monte,
Entre o álacre esplendor do mato em flor, vizinho.

Como aranhol de festa, a lua no horizonte
Alumiava o areal e as curvas do caminho;
Na praia, negro, horrendo, a coma em desalinho,
Parecia o penedo aspérrimo Caronte.

Nele atada uma lancha: a lancha arfando inquieta...
E ele rijo, de pé, nessa inflexível reta;
Pela grama descia um carreirinho ao mar;

E mulheres enchendo-o, e um grupo de crianças
Riam, vendo na praia a cadência das danças
De espadaúdos Tritões, búzios soprando ao luar.


A FARSA DOS MORTOS

Quando a Aurora ao surgir ia ensopando o espaço
De aromas bons, parou: — que fez parar a Aurora?
Fugiram-lhe, em remoinho, as pombas do regaço,
Caíram-lhe do cinto as rosas de ouro em fora.

Os pássaros, que prende à tenda, que decora,
Pousavam-lhe, cantando, à coma, ao ombro, ao braço;
E em pé, de um lírio viu, a nau que o mar devora
Há três dias, rosnando ante astrágalos de aço.

E onda a onda entoava uma odisseia ignota;
E os cadáveres rindo um riso alvar de idiota,
Mostrando os dentes e movendo os olhos tortos,

Rolavam numa dança insana e persistente:
E o velho oceano os via, e zombava igualmente
Da ironia dos céus e da farsa dos mortos...


NOCTE OCEANUS

Como um milhar de leões — disse-me o Oceano — eu rujo!
Pois bem: à tarde, em pé, eu vi do tombadilho
Do barco em que ia, entrar no oceano o Sol, por cujo
Antro ainda lançava ao longe ígneo rastilho;

E a Noite vir, trepar, subir, como um marujo,
Por mastros e brandais cheios de asas, e brilho
De anéis de aço e de bronze areados, — num sarilho,
Manchando tudo em torno ao pulso enorme e sujo...

E eu surpreendi embaixo o mar numa humilhada
Atitude ante o céu calmo, estrelado e frio:
E essa água assim escura, ondeante e fatigada,

Parecia-me então um polvo luzidio
Que pelo dorso imundo e visguento, agarrada,
Arrastava na sombra a concha do Navio!


ARCO

Viajo agora ebriado o velho Oriente...
E eu que sei o esplendor das formas tuas,
Que és branca, como o luar das noites suas,
Que és, como o aroma dos seus bosques, quente,

Tendo-te sempre em meu pensar presente,
Lagoa funda e quieta em que flutuas,
E que a beijar-te as doces carnes nuas,
Nunca sinto fartar-me e estar contente:

Em chão sáfaro mesmo, ou mau, que piso,
Rasgo, estendo, armo, enfloro um paraíso,
Granizo sóis e o solo é deles cheio.

Mas das rútilas coisas que imagino,
Tu só me deste, ó puro ser divino,
Lâmpada de ouro eterna em céus que arqueio...


 
A SEDE DE PADIXÁ

À noite o Padixá raríssimos instantes
Furta ao labor imperial: dorme sob o crescente,
Na verdura, Istambul; arfa a aragem do oriente...
Voa à vela o caíque em ondas de diamantes.

Leva só velho eunuco, e a escrava adolescente,
Nua... quase em nudez, as formas deslumbrantes,
Cantando à harpa tricorde uma canção dolente,
Que faz ver, como um sonho, as mesquitas distantes.

Num descuido de harém, numa graça felina,
— Ouves? quero beber o céu, Abdul dizia;
— Ouço: e estendendo a mão branca, comprida e fina,

Ela, por não lhe dar o que no olhar lhe ria,
Perfidamente meiga, em taça bizantina
Dava-lhe o céu, que em fogo o Bósforo acendia...


PALÁCIO DE VERÃO
(A Múcio Teixeira)

Tremem beijos do sol na fina porcelana
Do palácio imperial, redondo e torreado,
Sobre os cristais do rio Amarelo pousado,
Onde passa o verão a gentil soberana.

Ela, — as horas, que vão morosamente, — engana,
Por entre as grades pondo o rosto cinzelado,
Como um vaso de cobre em Pequim trabalhado;
E o olhar molhado em luz, que sussurra e espadana,

Solta-o pela corrente abaixo, ao longe... e espera,
Como outro sol, luzindo à popa da galera,
Entre os seus mandarins, o belo imperador;

Vê-se entre o ferro as mãos, louras como manteiga,
E as unhas de coral, e a expressão vaga e meiga
Da mulher quando oscila entre a saudade o amor.


À CONQUISTA DO SOL

O guarda-sol de seda à mão longa e alourada,
Como o bronze que luz nas jarras de Pequim,
E o leque noutra mão, cuja folha espalmada
De penas de pavão abre sobre marfim,

Andando sobre os pés, como uma ave pousada,
Curtos pés em prisão dentro dum borzeguim,
Que a levam, como a vaga oscilando, embalada
Pelas brisas do mar no verde mar sem fim,

Sobre campos de chá, cuja flor branca alveja,
Entre bambus em moita e rotins verde-escuro,
À cuja sombra o quiosque ao céu azul adeja,

Torres de porcelana e de caulim mais puro...
Ela vai esperar que o imperador a veja...
Põe no filho do sol o sol do seu futuro.


O-HANA

Não tinha O-Hana a cor amarelada
Das pinturas da louça japonesa;
Mas... era branca, e de uma tal fineza,
Como a da neve aos fogos da alvorada.

De estirpe régia e antiga, era princesa
Com todos os prestígios de uma fada:
Nada faltava à oriental beleza
Dessa mulher encantadora... nada.

De um camicém seu nome era a harmonia,
E, quando alguém O-Hana repetia,
O céu, a rir-se, o festejava ao ouvi-lo.

Amava o chá, as flores e os diamantes:
E seus olhos de raios crepitantes
Brilhavam, como sóis num mar tranquilo...



PÉROLA QUERIDA

Pérola azul de esplêndido horizonte,
Onde a aurora encontrou eterno asilo,
Pois te auréola tanta luz a fronte,
Como a luz com que o sol alaga o Nilo,

Pérola em cima do mais alto monte,
Como a lua de olhar doce e tranquilo,
Desejo, diz Abdul, não sei se o conte,
E, se contando, tu rirás de ouvi-lo...

Rica joia do Cairo, eu desejava
Ser o pórfiro branco, em que se lava
Teu rosto, e as mãos fulgindo entre os anéis,

Mas sobretudo, ó pérola divina,
Quisera ser a fonte cristalina
Em que te banhas da cabeça aos pés...



FELIZ — INFELIZ

Fi lhe dizia: — A tua boca, que arde,
É como a luz, que chega e enche o caminho.
Na alva a calhandra, o rouxinol à tarde
Cantam ao colo teu branco de arminho.

Quem uma vez sofreu o teu carinho,
Quem foi só, por mais só enfim que seja,
Atrás não volta, e nem voltar deseja:
Anda, e não sabe mais andar sozinho.

Leva de ti a sombra, o brilho, e o aroma;
E um ar de deus vencido, que se anula,
O desgraçado para sempre toma.

Em ti o sol lhe nasce, a ave modula,
E sabe que beijando a mão, que o doma,
Outro a beijou, e em breve um outro a oscula...


NASCER DO SOL

Acorda, como emir voluptuoso,
Na cálida ebriez de essências puras,
E traz a enorme cicatriz do gozo
O sol, trajando as largas vestiduras.

À noite, que de esplêndidas loucuras,
Beijando uris em raivas de amoroso!
E o divã, — entre nítidas brancuras, —
Guarda mal o segredo duvidoso.

Veem-se amarelos sândalos na cama,
Lençóis esparsos, véus da cor da chama,
Laca vermelha, cintas e corais,

Sandálias de esmeralda, ramalhetes,
Argolas de ouro, fulvos braceletes,
E o acre rubor de carnes ideais!



O FELÁ

Guarda o sultão Ramsés um diamante,
Um rubi, uma pérola Moabita,
Que era do seu harém a favorita,
De um belo olhar de ferro chamejante.

O raio doce, trêmulo, iriante,
Dava a luz dum punhal, que ao sol se agita:
Mas tinha um gesto às vezes suplicante
De estrela que de um lago azul nos fita.

Um felá, que uma vez a viu somente,
Ficou doido e dizia a toda a gente:
— Não hão de ser os meus desejos vãos

Quando vir que por ela eu choro tanto...
Virá com beijos recolher meu pranto
Às taças brancas das marmóreas mãos.


A FESTA DO RAJÁ

Rajá Nallá-Tambyr-Modelear stá sentado
Num coxim, um primor da Pérsia, numa sala
Que forra o vetiver com arte entrelaçado,
E que, ao pancá que passa, o morno odor exala.

Medrosa a luz por entre as esteiras resvala
— Odalisca a pasmar num serralho fechado, ―
E o ardente hucá, que entrança um filó perfumado,
Numa sombra discreta o fulvo ambiente embala.

Por colunas, que têm a graça das palmeiras,
Da varanda, que em torno o doce éden rodeia,
Adivinha-se a acácia, os bambus, as figueiras...

Escoam-se os chocrás... a música escasseia...
Morre... e logo depois ouve-se a sala cheia
Dos beijos de Nalá... dos ais das bailadeiras...


OCASOS

Thou Fou pensava: — Ó Fchitrá, queria
Dar-te a beber em vaso primoroso,
Do caulim, que não há mais hoje em dia,
O pranto meu, que já conter não ouso.

Junto a ti gole e gole, e gozo e gozo,
Haurindo o aroma, que de ti viria,
E um chá cor do teu corpo saboroso,
Eu lentamente, e quase alegre, iria.

Na pintura da taça, enfim, teu brando
Olhar, um rio ao vento a arfar, percorre,
Vendo um cisne, e um golfinho atrás, nadando,

Enquanto a luz prateada e mole escorre
D’água azul, machucada, em pregas, quando
Frio o sol, e o amor teu mais frio, morre.



 O ADUAR

No aduar serpenteia a fila de elefantes:
Têm brilhos de iatagã os recurvados dentes,
E por sobre os faquires austeros e indolentes
Torcem, ao sol que os morde, as caudas palpitantes.

O cansado cornaca, à sombra dos gigantes,
Dorme na areia: ao sul há miragens ridentes;
Passam trombas ao norte, e beduínos distantes:
A alma do mar rodando em todo o areal presentes.

O junco verde e esguio, o rotim em soqueira
Emergem d’água, que dentre as uranias mana;
Do cardo olha o chacal; o tigre o ambiente cheira;

Na tenda o pancá freme; a música espadana;
Bate os pés, gira, salta, ondeia a bailadeira;
E o emir, que ela inebria, esquece a caravana...



O MINUTO DE MEI-BI

Mei-Bi à tarde, em hora cismadora,
E Yuan consigo, trêmulo, indeciso,
Olhava ao largo e ao longe o negro friso
D’água, como um cabelo que o sol doura:

E dizia-lhe Bi: “Se o instante fora
Eterno, eterno fora o paraíso,
À sombra acesa e boa do teu riso,
Na minha a tua mão cavada e loura;

Num grande fogo, em púrpura o ocidente,
O bangalô entre os rotins metido,
Na areia fulva, à margem da corrente;

O vento a amarrotar o teu vestido,
E a levantá-lo mesmo de repente,
Num beijo curto, curto e irrefletido...”



O RISO DE BAHVANY

Assim dizia Abdul a Bahvany: — Deitado
Tens à boca de aurora um riso em flor, que ébria,
Como um faquir repousa ao sol do meio-dia
Sobre um tigre de dorso escuro e acetinado.

Tem o humilde animal o fundo olhar velado:
É uma cama doce, elétrica, macia;
E abre indolentemente a fauce, onde à porfia
Há marfim, há coral róseo ao mar arrancado.

Morde o sono o faquir, o domador da fera:
Esta, mau grado a calma intensa, inquieta espera,
Lambendo as garras de aço e afiando-as ao chão.

Rosa fulva também sobre os teus lábios dorme:
Jaz teu riso, o faquir, enquanto o tigre enorme
Ouve nele o rumor das maltas do Indostão...



O UNIVERSO DE ALIM

No esplêndido al-marajé e na indolência
Que pede o Oriente tépido e cheiroso,
Maharajá — flor e joia de opulência, —
Ouvia ao poeta Abdul, grave e em repouso.

E Abdul cantava: — Alim, a uma inocência
— Um loto branco em vaso melindroso, —
Amava tão sem calma, e sem prudência,
Que a fazia chorar para seu gozo.

Na doce luz da lágrima chorada,
Como o lago em que um cisne corta e nada,
Banhava-se cantando um rouxinol.

Era Alim: — E o universo, ele dizia,
De novo nos seus olhos se fazia...
E era esse orvalho... o seu primeiro sol.


O FAQUIR E O SULTÃO

Tinha o faquir um sestro, uma cegueira:
Amava a filha do sultão Mohamede;
Vê-la, e beijar-lhe as mãos, é quanto pede;
E leva nisso sua vida inteira.

Soube o sultão, e disse-lhe: — Esterqueira,
Que come arroz de Mangalor e fede,
Põe o Corão à tua cabeceira,
E que do meu caminho Alá te arrede.

Senhor, diz-lhe o faquir: — Sou um cachorro;
Mas... que quereis?... por vossa filha morro,
Sofrendo alegre o criz que me ferir.

Quando os meus olhos nas estrelas cravo,
Têm elas que temer do pobre escravo?
Que mal lhes faz o mísero faquir?...


 
O KUN E O NUN

Contam: — De Cachemira um rei antigo,
Que ao das Índias negava vassalagem,
Andava langue, fraco e sem coragem,
Tudo ocultando ao seu melhor amigo.

Fala um dia ao vizir: — Virás comigo.
E foi com ele à esplêndida paragem:
Parecia que o odor da própria aragem
Dobrava-o, como à branca flor do trigo.

E às montanhas azuis erguia os dedos:
Desenhavam-se o Kun e o Nun ao fundo
Do céu sereno, esplêndidos rochedos.

E diz: — Que longo amor, que amor profundo!
Pois só as pedras sabem-lhe os segredos?
Não há dois corações iguais no mundo...



THOU-FOU

Thou-Fou prendeu, em folha que escolhera,
Mundos de ouro de uns olhos luminosos,
Rubis de argola, prasios de pulseira,
Da fulva seda os poemas capitosos,

Joias da boca, que à baunilha cheira,
Dos pés de ave que oscila os tons radiosos,
O azeviche da trança, e, ondeada e inteira,
A forma rota, antemostrando gozos,

Em bronze esborcinado as mãos pequenas,
E essas, que voam no seu ninho apenas,
Duas pombas em que ninguém tocou:

E quando veio o vento do levante,
Leva, diz, dando-a ao vento, à minha amante;
Vendo-a, dirá: vem dele; é de Thou-Fou.



A SULTANA

Foi festa, e grande, em toda Cachemira
Quando chegou, montada no elefante...
Viu-se em leve sandália de safira
O seu pé de uma alvura deslumbrante;

Colhendo as sedas, sua mão ferira
Com luz nevada a multidão, diante
Da qual o rosto apenas descobrira
Na sombra do riquíssimo turbante;

Mas quando viram seus nevados seios,
Brancos, riscados de azulados veios,
C’roados de uma auréola de cabelos,

— Tênues fios de estrela que irradia...
Para não ofendê-la à luz do dia
Fugiram dela ao trote dos camelos.



UM DRAMA NO DESERTO

Tu ias sobre o dorso do elefante,
Já perto das ruínas de Balbeque,
Aromando o teu rosto de diamante
Com sândalos do teu flexível leque.

Tu vales Cachemira deslumbrante,
Vales Mafoma e Alá, inda que eu peque;
Por isso eu ia à sombra do gigante,
Lamentando não ser um grande xeque.

Quando o simum soprando de improviso,
Muda em nagas de areia o paraíso,
Em que ias tu, ó flor de madavi!...

Eis que te salvo em meu robusto braço...
E quando o sol furou de novo o espaço,
Teu doce olhar a me morder senti!...



CAPRICHO DE SARDANÁPALO

“Não dormi toda a noite! A vida exalo
Numa agonia indômita e cruel!
Ergue-te, ó Radamés, ó meu vassalo!
Faço-te agora amigo meu fiel...

Deixa o leito de sândalo... A cavalo!
Falta-me alguém no meu real dossel...
Ouves, escravo, o rei Sardanapalo?
Engole o espaço! É raio o meu corcel!

Não quero que igual noite hoje em mim caia...
Vai, Radamés, remonta-te ao Himalaia,
Ao sol, à lua... voa, Radamés,

Que, enquanto a branca Assíria aos meus pés acho,
Quero dormir também, feliz, debaixo
Das duas curvas dos seus brancos pés!...”



 A NÚBIA

Alegre, fresco, límpido, cantando,
Na eterna mocidade das torrentes,
Passa pelos destroços esplendentes
De um povo grande, agora miserando,

O velho rio, o manto desdobrando,
Riscada à noite pelos sóis ridentes:
Da boca azul os cristalinos dentes
Vão os restos dos templos triturando.

Aí contudo o Nilo — enorme espelho —
E em sua tenda o negro esbelto e rude,
E o alígero corcel, e o tigre e o leão,

E o dromedário, e o céu, e o mar Vermelho
Têm inda o viço, as cores e a atitude
Das paisagens da Bíblia e do Alcorão.



MÊNFIS

Amon-Rá lança esplêndidas zagaias,
E veste o Nilo azul de ouro e diamantes:
E os loureiros em flor, das curvas praias
Olham, manchando-o, as velas palpitantes.

Maio embandeira: os bandos doidejantes
De pardais e bulbuis cantam nas faias:
Fila de acácias, renque de gigantes
Cedros circundam da cidade as raias.

Entre estátuas graníticas do Siena
Levanta a fronte rútila e serena
Mênfis, que doiram rindo eternos sóis.

Dizem dela: — As estrelas serão mortas:
Mas dentro a mole de esculpidas portas
Hão de sempre reinar os Faraós...



ECBATANA

Das espáduas graníticas do Oronte
Ergue, como um cocar de penas de ouro,
Seus templos grandes, vastos, como um monte.
Roja-lhe o mundo o universal tesouro.

Rugem leões; panteras rugem. — Louro,
Nopal, acácia enfloram-lhe o horizonte;
O sol pousa-lhe a garra à altiva fronte;
Cantam vagas do Cáspio ao longe em coro.

Relutam, ruem às portas da cidade,
De sedas, joias, ouro e cheiro alteados,
Mil elefantes; ri-se a mocidade.

E clamam, vendo-a os hóspedes chegados:
“Sultana da Ásia, tens na eternidade
A pérola em que pões teus pés dourados”.



O DEUS DO SILÊNCIO

Não sei por quê; porque dizer não ouso:
Seguindo estância e estância o antigo rito,
No templo de Ísis, adorava o Egito
O deus sem voz, o deus misterioso.

Milhões de olhos de um vago olhar aflito
Cobrem-lhe o corpo; e em lânguido repouso,
Guardando um gesto altivo e desdenhoso,
Pousava à boca um dedo de granito.

E como um olho só, tudo isso olhava
Do fundo de uma orelha, que o envolvia:
E aos seus pés vendo a turba imbele e escrava,

O mudo olhar inquieto ardia em lava...
Porém... quanto mais via, e mais ouvia,
Menos falava o deus que não falava...


O BRÂMANE

I – RAINADJATA

Outros sofrem, diz Fi, desta tortura,
E achar devem na taça a mesma lia:
Bebe-se o amargo e o doce de mistura;
Se o mesmo vale o cardo e o lírio cria!...

Rolar no loto em flor da formosura,
Enquanto um outro espera e ansiado espia?!...
Sombra igual abre o céu por noite escura,
Luz igual abre o céu por claro dia.

Ouvi-la, é ouvir a lira de Nãrada;
Mas como a estranha voz que diz serpente,
Ou diz colar de pérolas, quem brada

Nunca sei; — em que frase ela não mente...
Mas quando a beijo, e em mim a sinto enleada,
Creio-a minha... Oh! ser minha eternamente...


II — MIÇRAKÉÇI

Disse o Brâmane em casa: — Estão brincando?
Miçrakéçi morreu, não é?  Que importa?...
Como a andorinha o azul do céu recorta,
E atrás duma vem outra, e outra, e um bando,

Uma cabeça apareceu à porta,
Deitou a medo oblíquo olhar, recuando...
Mas alguém, que a palpou, num gesto brando,
Murmura: — Sim, caiu... mas não stá morta.

Para Fi era entanto um corpo extinto:
Rolara do seu culto de repente,
Como uma estátua que escapou de um plinto.

— Morreu; ela morreu? se inda está quente...
Lhe respondiam; Fi tornava: — Eu minto?!...
Então, ‘stá morta para mim somente...


III — O BRÂMANE VIVO

Eis o sagrado Brâmane que habita
Aquele canto da floresta indiana,
Olhos fitos na abóbada infinita,
Toda a alma cheia de uma ideia insana.

Imóvel, mudo, nada mais o agita;
Sustenta-o só a caridade humana;
E a passarada gárrula se engana,
Põe-lhe o ninho à cabeça, e às mãos dormita.

A faia, a tamareira, o aloés selvagem,
A umbela cada qual dos ramos lança
Naquela doce e veneranda imagem.

E a sombra, que aos pés dele oscila e dança
Ao som do quim da perfumosa aragem,
Fá-lo rir, como estólida criança!


IV — O SUPLÍCIO DO BRÂMANE

Deixou ouros e mármores de Elora,
Por não mentir ao seu divino Brahma,
E foi na selva, onde o silêncio mora,
Furtar-se ao encanto da mulher: é fama.

O amor também santos varões devora,
Com sua intensa e voluptuosa chama;
E o Ganges muitas vezes não derrama
Tanta água como quem tais males chora.

Hoje vegetação luxuosa medra
Em torno dele, que parece pedra,
E envolve-o no seu verde turbilhão;

Cantam-lhe em cima os rouxinóis em bando;
E quem passa parece ouvir cantando
A alma do monge a eterna dor em vão!...

V — O BRÂMANE MORTO
 
Como rocais de matizada escama
Brincam-lhe ao colo as serpes enroscadas;
São quedas d’água a reluzir à chama
Das longas cãs as ondas arrufadas.

O olhar já lume interno não derrama;
Trepam-lhe ao dorso as relvas enfloradas;
E há um faceiro e pequenino drama
De lírios rindo em órbitas furadas.

Num ombro à tarde o rouxinol gorjeia;
Saltam lacraus da fenda dos artelhos;
‘Stá do aroma do santo a selva cheia.

Quem o vê põe por terra os dois joelhos:
E ouvireis, quando ao vento a mata ondeia,
O Brâmane inda a murmurar conselhos!...


VI —  BRÂMANE MORTO, A RIR

As lianas em flor, dos pés à fronte
Subindo, e os nós do corpo sujeitando,
Guardam, depois de morto, ao venerando
Brâmane o gesto em que viveu no monte.

E o leão, e o tigre mosqueado, e o insonte
Pássaro, e a aurora, e o sol, e o luar brando,
E as estrelas que fervem no horizonte,
Há séculos, que o veem a rir, passando.

Junto dele ri tudo, e a tamareira,
E a acácia, e o cedro, e a fonte que marulha,
E a luz do céu e o disco da clareira...

Os grandes dentes brancos da caveira
Têm no seu rir descomunal tal bulha,
Que arranca igual risada a selva inteira!


VII — O BRÂMANE E AS ALMEIAS

Quem entra o bosque? — As rútilas Almeias:
Têm de bronze polido o corpo fino;
Vêm em bando; entrelaçam-se em coreias
Bailando aos pés do Brâmane divino.

Fazem rir; ri a mata à dança e ao hino:
Pensam elas que o santo monge, em vendo-as,
Há de sentir das lúbricas amêndoas
Dos olhos seus o dardo cristalino,

E hão de acordar o secular dormente:
As mamas bolem, chispam-lhe centelhas
Das mãos, dos pés, em saltos de serpente;

As faces brilham úmidas, vermelhas;
E do arcabouço veem golfar somente

Falenas de ouro, turbilhões de abelhas...

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