POTIRA
Os Tamoios,
entre outras presas que fizeram,
levaram esta
índia, a qual pretendeu
o capitão da
empresa violar; resistiu valorosamente
dizendo em
língua brasílica: “Eu sou cristã e casada;
não hei de
fazer traição a Deus e a meu marido;
bem podes
matar-me e fazer de mim o que quiseres.”
Deu-se por
afrontado o bárbaro,
e em vingança
lhe acabou a vida com grande crueldade.
VASC., CR. DA COMPANHIA DE JESUS, LIV. 3º
I
Moça cristã das solidões
antigas,
Em que áurea folha reviveu
teu nome?
Nem o eco das matas
seculares,
Nem a voz das sonoras
cachoeiras,
O transmitiu aos séculos
futuros.
Assim da tarde estiva às
auras frouxas
Tênue fumo do colmo no ar se
perde;
Nem de outra sorte em
moribundos lábios
A humana voz expira. O horror
e o sangue
Da miseranda cena em que, de
envolta
Co’os longos, magoadíssimos
suspiros,
Cristã Lucrécia, abriu tua
alma o voo
Para subir às regiões
celestes,
Mal deixada memória aos
homens lembra.
Isso apenas; não mais; teu
nome obscuro,
Nem tua campa o brasileiro os
sabe.
II
Já da férvida luta os ais e
os gritos
Extintos eram. Nos baixéis
ligeiros
Os tamoios incólumes
embarcam;
Ferem co’os remos as serenas
ondas
Até surgirem na remota
aldeia.
Atrás ficava, lutuosa e
triste,
A nascente cidade brasileira,
Do inopinado assalto
espavorida,
Ao céu mandando em coro
inúteis vozes.
Vinha já perto rareando a
noite,
Alva aurora, que à vida
acorda as selvas,
Quando a aldeia surgiu aos
olhos torvos
Da expedição noturna. À praia
saltam
Os vencedores em tropel;
transportam
Às cabanas despojos e
vencidos,
E, da vigília fatigados,
buscam
Na curva leve rede amigo
sono,
Exceto o chefe. Oh! esse não
dormira
Longas noites, se a troco da
vitória
Precisas fossem. Traz consigo
o prêmio,
O desejado prêmio. Desmaiada
Conduz nos braços trêmulos a
moça
Que renegou Tupã, e as rudes
crenças
Lavou nas águas do batismo
santo.
Na rede ornada de amarelas
penas
Brandamente a depõe. Leve
tecido
Da cativa gentil as formas
cobre;
Veste-as de mais a sombra do
crepúsculo,
Sombra que a tíbia luz da
alva nascente
De todo não rompeu. Inquieto
sangue
Nas veias ferve do índio. Os
olhos luzem
De concentrada raiva
triunfante.
Amor talvez lhes lança um
leve toque
De ternura, ou já sôfrego
desejo;
Amor, como ele, aspérrimo e
selvagem,
Que outro não sente o herói.
III
Herói lhe chamam
Quantos o hão visto no fervor
da guerra
Medo e morte espalhar entre
os contrários
E avantajar-se nos certeiros
golpes
Aos mais fortes da tribo. O
arco e a flecha
Desde a infância os meneia
ousado e afoito;
Cedo aprendeu nas solitárias
brenhas
A pleitear às feras o
caminho.
A força opõe à força, a astúcia
à astúcia,
Qual se da onça e da serpente
houvera
Colhido as armas. Traz ao
colo os dentes
Dos contrários vencidos. Nem
dos anos
O número supera o das
vitórias;
Tem no espaçoso rosto a flor
da vida,
A juventude, e goza entre os
mais belos
De real primazia. A cinta e a
fronte
Azuis, vermelhas plumas alardeiam,
Ingênuas galas do gentio
inculto.
IV
Da cativa gentil cerrados
olhos
Não se entreabrem à luz.
Morta parece.
Uma só contração lhe não
perturba
A paz serena do mimoso rosto.
Junto dela, cruzados sobre o
peito
Os braços, Anajê contempla e
espera;
Sôfrego espera, enquanto
ideias negras
Estão a revoar-lhe em torno e
a encher-lhe
A mente de projetos
tenebrosos.
Tal no cimo do velho
Corcovado
Próxima tempestade engloba as
nuvens.
Súbito ao seio túrgido e macio
Ansiosas mãos estende; inda
palpita
O coração, com desusada
força,
Como se a vida toda ali
buscasse
Refúgio certo e último.
Impetuoso
O vestido cristão lhe
despedaça,
E à luz já viva da manhã
recente
Contempla as nuas formas. Era
acaso
A síncope chegada ao termo
próprio,
Ou, no pejo ofendida, às mãos
estranhas
A desmaiada moça despertara.
Potira acorda, os olhos lança
em torno,
Fita, vê, compreende, e
inquieta busca
Fugir do vencedor às mãos e
ao crime...
Mísera! opõe-se-lhe o
irritado gesto
Do aspérrimo guerreiro; um ai
lhe sobe
Angustioso e triste aos
lábios trêmulos,
Sobe, murmura e sufocado
expira.
Na rede envolve o corpo, e,
desviando
Do terrível tamoio os lindos
olhos,
Entrecortada prece aos céus
envia,
E as faces banha de serenas
lágrimas.
V
Longo tempo correra. Amplo
silêncio
Reinou entre ambos. Do tamoio
a fronte
Pouco a pouco despira o torvo
aspecto.
Ao trabalhado espírito,
revolto
De mil sinistros pensamentos,
volve
Benigna calma. Tal de um rio
engrossa
O volume extensíssimo das
águas
Que vão enchendo de pavor os
ecos,
Vencendo no arruído o vento e
o raio,
E pouco a pouco atenuando as
vozes,
Adelgaçando as ondas, tornam
mansas
Ao primitivo leito. Ei-lo se
inclina,
Para tomar nos braços a
formosa
Por cujo amor incendiara a
aldeia
Daquelas gentes pálidas de
Europa.
Sente-lhe a moça as mãos, e
erguendo o rosto,
O rosto inda de lágrimas
molhado,
Do coração estas palavras
solta:
“— Lá entre os meus, suave e
amiga morte,
Ah! por que me não deste?
Houvera ao menos
Quem escutasse de meus lábios
frios
A prece derradeira; e a santa
bênção
Levaria minha alma aos pés do
Eterno...
Não, não te peço a vida; é
tua, extingue-a;
Um só alívio imploro. Não
receies
Embeber no meu sangue a
ervada seta;
Mata-me, sim; mas leva-me
onde eu possa
Ter em sagrado leito o último
sono!”
Disse, e fitando no índio
ávidos olhos,
Esperou. Anajê sacode a
fronte,
Como se lhe pesara ideia
triste;
Crava os olhos no chão;
lentas lhe saem
Estas vozes do peito:
“Oh! nunca os padres
Pisado houvessem estas plagas
virgens!
Nunca de um deus estranho as
leis ignotas
Viessem perturbar as tribos,
como
Perturba o vento as águas!
Rosto a rosto
Os guerreiros pelejam; matam,
morrem.
Ante o fulgor das armas
inimigas
Não descora o tamoio. Assaz
lhe pulsa
Valor nativo e raro em peito
livre.
Armas, deu-lhas Tupã novas e
eternas
Nestas matas vastíssimas. De
sangue
Estranhos rios hão de, ao mar
correndo,
Tristes novas levar à pátria
deles,
Primeiro que o tamoio a
frente incline
Aos inimigos peitos. Outra
força,
Outra e maior nos move a
guerra crua;
São eles, são os padres.
Esses mostram
Cheia de riso a boca e o mel
nas vozes,
Sereno o rosto e as brancas
mãos inermes;
Ordens não trazem de cacique
alheio,
Tudo nos levam, tudo. Uma por
uma
As filhas de Tupã correm trás
eles,
Com elas os guerreiros, e com
todos
A nossa antiga fé. Vem perto
o dia
Em que, na imensidão destes
desertos,
Há de ao frio luar das longas
noites
O pajé suspirar sozinho e
triste
Sem povo nem Tupã!”
VI
Silenciosas
Lágrimas lhe espremeu dos
olhos negros
Esta lembrança de futuros
males.
“Escuta!” diz Potira. O índio
estende
Imperioso as mãos e assim
prossegue:
Também com eles foste, e foi
contigo
Da minha vida a flor! Teu pai
mandara,
E com ele mandou Tupã, que eu
fosse
Teu esposo; vedou-mo a voz
dos padres,
Que me perdeu, levando-te consigo.
Não morri; vivi só para esta
afronta;
Vivi para esta insólita
tristeza
De maldizer teu nome e as
graças tuas,
Chorar-te a vida e desejar-te
a morte.
Ai! nos rudes combates em que
a tribo
Rega de sangue o chão da
virgem terra
Ou tinge a flor do mar, nunca
a meu lado
Teu nobre vulto esteve. A
aldeia toda,
Mais que o teu coração, ficou
deserta.
Duas vezes, mimosas
rebentaram
Do lacrimoso cajueiro as
flores,
Desde o dia funesto em que
deixaste
A cabana paterna. O extremo
lume
Expirou de teu pai nos olhos
tristes;
Piedosa chama consumiu seus
restos,
E a aldeia toda o lastimou
com prantos.
Não de todo se foi da nossa
vida;
Parte ficou para sentir teus
males.
Antes que o último sol à
melindrosa
Flor do maracujá cerrasse as
folhas
Um sonho tive. Merencório vulto,
Triste como uma fronte de
vencido,
Cor da lua os cabelos
venerandos,
O vulto de teu pai:
“Guerreiro (disse),
Corre à vizinha habitação dos
brancos,
Vai, arranca Potira à lei
funesta
Dos pálidos pajés; Tupã to
ordena;
Nos braços traze a fugitiva
corça;
Vincula o teu destino ao
dela; é tua.”
“Impossível! Que vale um vago
sonho?
Sou esposa e cristã. Ímpio,
respeita
O amor que Deus protege e
santifica;
Mata-me; a minha vida te
pertence;
Ou, se te pesa derramar o
sangue
Daquela a quem amaste, e por
quem foste
Lançar entre os cristãos a
dor e o susto,
Faze-me escrava; servirei
contente
Enquanto a vida alumiar meus
olhos.
Toma, entrego-te o sangue e a
liberdade;
Ordena ou fere. Tua esposa,
nunca!”
Calou-se, e reclinada sobre a
rede,
Potira murmurava ignota prece,
Olhos fitos no próximo
arvoredo,
Olhos não ermos de profunda
mágoa.
VII
Ó Cristo! em que alma
penetrou teu nome
Que lhe não desse o bálsamo
da vida?
Pelo vento dos séculos
levado,
Vidente e cego, o máximo dos
seres,
Que fora do homem nesta
escassa terra,
Se ao mistério da vida lhe
não desses,
Ó Cristo! a eterna chave da
esperança?
Filosofia estoica, árdua
virtude,
Criação de homem, tudo passa
e expira.
Tu só, filha de Deus, palavra
amiga,
Tu, suavíssima voz da
eternidade,
Tu perduras, tu vales, tu confortas.
Neste sonho iriado de outros
sonhos,
Vários como as feições da
natureza,
Nesta confusa agitação da
vida,
Que alma transpõe a
derradeira idade
Farta de algumas passageiras
glórias?
Torvo é o ar do sepulcro; ali
não viçam
Essas cansadas rosas da existência
Que às vezes tantas lágrimas
nos custam,
E tantas mais antes do ocaso
expiram.
Flor do Evangelho, núncia de
alvos dias,
Esperança cristã, não te há
murchado
O vento árido e seco; és tu
viçosa
Quando as da terra lânguidas
inclinam
O seio, e a vida lentamente
exalam.
Esta a consolação última e
doce
Da esposa indiana foi. Cativa
ou morta,
Antevia a celeste recompensa
Que aos humildes reserva a
mão do Eterno.
Naquele rude coração das
brenhas
A semente evangélica brotara.
VIII
Das duas condições deu-lhe o
guerreiro
A pior, — fê-la escrava; e
ei-la aparece
Da sua aldeia aos olhos
espantados
Qual fora em dias de melhor
ventura.
Despida vem das roupas que
lhe há posto
Sobre as polidas formas uso
estranho,
Não sabido jamais daqueles
povos
Que a natureza ingênua
doutrinara.
Vence na gentileza às mais da
tribo,
E tem de sobra um sentimento
novo,
Pudor de esposa e de cristã,
— realce
Que ao índio acende a natural
volúpia.
Simulada alegria lhe descerra
Os lábios; riso à flor,
escasso e dúbio,
Que mal lhe encobre as
vergonhosas mágoas.
À voz do seu senhor acorre
humilde;
Não a assusta o labor; nem
dos perigos
Conhece os medos. Nas
ruidosas festas,
Quando ferve o cauim, e o ar
atroa
Pocema de alegria ou de
combate,
Como que se lhe fecha a flor
do rosto.
Já lhe descai então no seio
opresso
A graciosa fronte; os olhos
fecha,
E ao céu voltando o
pensamento puro,
Menos por si, que pelos
outros pede.
Nem só o ardor da fé lhe
abrasa o peito;
Lacera-lho também agra
saudade;
Chora a separação do amado
esposo,
Que, ou cedo a esquece, ou
solitário geme.
Se, alguma vez, fugindo a
estranhos olhos,
Não já cruéis, mas cobiçosos
dela,
Entra desatinada o bosque
antigo,
E a dor expande em lôbregos
soluços,
Coo doce nome acorda ao longe
os ecos,
Farta de amor e pródiga de
vida,
Ouve-as a selva, e não lhe
entende as mágoas.
Outras vezes pisando a ruiva
areia
Das praias, ou galgando a
penedia
Cujos pés orla o mar de nívea
espuma,
As ondas murmurantes
interroga;
Conta ao vento da noite as
dores suas;
Mas... fiéis ao destino e à
lei que as rege,
As preguiçosas ondas vão
caminho,
Crespas do vento que sussurra
e passa.
IX
Quando, ao sol da manhã,
partem às vezes,
Com seus arcos, os destros
caçadores,
E alguns da rija estaca
desatando
Os nós de embira às rápidas
igaras,
À pesca vão pelas ribeiras
próximas,
Das esposas, das mães que os
lares velam,
Grata alegria os corações
inunda,
Menos o dela, que suspira e
geme,
E não aguarda doce esposo ou
filho.
Triste os vê na partida e no
regresso,
E nessa melancólica postura,
Semelha a acácia langue e
esmorecida,
Que já de orvalho ou sol não
pede os beijos.
As outras... — Raro em lábios
de felizes
Alheias mágoas travam. Não se
pejam
De seus olhos azuis e alegres
penas
Os saís sobre as árvores
pousados,
Se ao perto voa na campina
verde
De anuns lutuoso bando; nem
os trilos
Das andorinhas interrompe a
nota
Que a juriti suspira. — As
outras folgam
Pelo arraial dispersas;
vão-se à terra
Arrancar as raízes
nutritivas,
E fazem os preparos do
banquete
A que hão de vir mais tarde
os destemidos
Senhores do arco, alegres
vencedores
De quanto vive na água e na
floresta.
Da cativa nenhuma inquire as
mágoas.
Contudo, algumas vezes,
curiosas
Virgens lhe dizem, apiedando
o gesto:
— “Pois que à taba voltaste,
em que teus olhos
Primeiro viram luz, que mágoa
funda
Lhes destila tão longo e
amargo pranto,
Amargo mais do que esse que
não busca
Recatado silêncio?” — E às
doces vozes
A cristã desterrada assim
responde:
— “Potira é como aquela flor
que chora
Lágrimas de alvo leite, se do
galho
Mão cruel a cortou. Oh! não
permita
O céu que ímpia fortuna vos
separe
Daquele que escolherdes. dor
é essa
Maior que um pobre coração de
esposa.
Esperanças... Deixei-as
nessas águas
Que me trouxeram, cúmplices
do crime,
À taba de Tupã, não alumiada
Da palavra celeste. Algumas vezes,
Raras, alveja em minha noite
escura
Não sei que tíbia aurora, e
penso: Acaso
O sol que vem me guarda um
raio amigo,
Que há de acender nestes
cansados olhos
Ventura que já foi. As asas
colhe
Guanumbi, e o aguçado bico
embebe
No tronco, onde repousa adormecido
Até que volte uma estação de
flores.
Ventura imita o guanumbi dos
campos:
Acordará coas flores de
outros dias.
Doce ilusão que rápido se
escoa,
Como o pingo de orvalho mal
fechado
Numa folha que o vento agita
e entorna”.
E as virgens dizem, apiedando
o gesto:
— “Potira é como aquela flor
que chora
Lágrimas de alvo leite, se do
galho
Mão cruel a cortou!”
X
Era chegado
O fatal prazo, o desenlace
triste.
Tudo morre, — a tristeza como
o gozo;
Rosas de amor ou lírios de
saudade,
Tarde ou cedo os esfolha a
mão do tempo.
Costeando as longas praias,
ou transpondo
Extensos vales e montanhas,
correm
Mensageiros que às tabas mais
vizinhas
Vão convidar à festa as
gentes todas.
Era a festa da morte. Índio
guerreiro,
Três luas há cativo, o
instante aguarda
Em que às mãos de inimigos
vencedores,
Caia expirante, e os vínculos
rompendo
Da vida, a alma remonte além
dos Andes.
Corre de boca em boca e de
eco em eco
A alegre nova. Vem descendo
os montes,
Ou abicando às povoadas
praias
Gente da raça ilustre. A onda
imensa
Pelo arraial se estende
pressurosa.
De quantas cores natureza
fértil
Tinge as próprias feições,
copiam eles
Engraçadas, vistosas
louçanias.
Vários na idade são, vários
no aspecto,
Todos iguais e irmãos no
herdado brio.
Dado o amplexo de amigo,
acompanhado
De suspiros e pêsames
sinceros
Pelas fadigas da viagem
longa,
Rompem ruidosas danças. Ao
tamoio
Deu o Ibaque os segredos da
poesia;
Cantos festivos, moduladas
vozes,
Enchem os ares, celebrando a
festa
Do sacrifício próximo. Ah!
não cubra
Véu de nojo ou tristeza o
rosto aos filhos
Destes polidos tempos! Rudes
eram
Aqueles homens de ásperos
costumes,
Que ante o sangue de irmãos
folgavam livres,
E nós, soberbos filhos de
outra idade,
Que a voz falamos da razão
severa
E na luz nos banhamos do
Calvário,
Que somos nós mais que eles?
Raça triste
De Cains, raça eterna...
XI
Os cantos cessam.
Calou-se o maracá. As roucas
vozes
Dos férvidos guerreiros já
reclamam
O brutal sacrifício. Às mãos
das servas
A taça do cauim passara
exausta.
Inquieto aguarda o prisioneiro
a morte.
Da nação guaianás nos rudes
campos
Nasceu. Nos campos da saudosa
pátria
Industriosa mão não sabe
ainda
Alevantar as tabas. Cova
funda
Da terra, mãe comum, no seio
aberta,
Os acolhe e protege. O chão
lhes forra
A pele do tapir; contínua
chama
Lhes supre a luz do sol. É
uso antigo
Do guaianás que chega a
extrema idade,
Ou de mortal doença
acometido,
Não expirar aos olhos de
outros homens;
Vivo o guardam no bojo da
igaçaba,
E à fria terra o dão, como se
fora
Pasto melhor (melhor!) aos
frios vermes.
Do almo, doce licor que
extrai das flores
Mãe do mel, iramaia, larga
cópia
Pelos robustos membros lhe
coaram
Seis anciãs da tribo. Rubras
penas
Na vasta fronte e nos
nervosos braços
Garridamente o enfeitam.
Longa e forte
A muçurana os rins lhe cinge
e aperta.
Entra na praça o fúnebre
cortejo.
Olhar tranquilo, inda que
fero, espalha
O indomado cativo. Em pé,
defronte,
Grave, silencioso, ao sol
mostrando
De feias cores e vistosas
plumas
Singular harmonia, aguarda a
vítima
O executor. Nas mãos lhe
pende a enorme
Tagapema enfeitada, arma
certeira,
Arma triunfal de morte e de
extermínio.
Medem-se rosto a rosto os
dois contrários
C'um sorriso feroz. Confusas
vozes
Enchem súbito o espaço. Não
lhe é dado
Ao vencido guerreiro haver a
morte
Silenciosa e triste em que se
passa
Da curva rede à fria
sepultura.
Meigas aves que vão de um
clima a outro
Abrem placidamente as asas
leves,
Não tu, guerreiro, que
encaraste a morte,
Tu combate! Vencido e
vencedores
Derradeiros escárnios se
arremessam;
Gritos, injúrias, convulsões
de raiva,
Vivo clamor acorda os longos
ecos
Das penedias próximas. A
clava
Do executor girou no ar três
vezes
E de leve caiu na grossa
espádua
Do arquejante cativo. Já na
boca
Que o desprezo e o furor num
riso entreabrem,
Orla de espuma alveja.
Avança, corre,
Estaca... Não lhe dá mais
amplo espaço
A muçurana, cujas pontas
tiram
Dois mancebos robustos. Nas
cavernas
Do longo peito lhe murmura o
ódio,
Surdo, como o rumor da terra
inquieta,
Pejada de vulcões. Os lábios
morde,
E, como derradeira injúria, à
face
Do executor lhe cospe espuma
e sangue.
Não vibra o arco mais veloz o
tiro,
Nem mais segura no aterrado
cervo
Feroz sucuriúba os nós
enrosca,
Do que a pesada, enorme
tagapema
A cabeça de um golpe lhe
esmigalha.
Cai fulminada a vítima na
terra,
E alegre o povo longamente
aplaude.
XII
Na voz universal perdeu-se um
grito
De piedade e terror: tão
fundo entrara
Naquela alma roubada à noite
escura
Raio de sol cristão! Potira
foge,
Pelos bosques atônita se
entranha
E para à margem de um pequeno
rio;
Pousa na relva os trêmulos
joelhos
E nas mimosas mãos esconde o
rosto.
Não de lágrimas era aquele
sítio
Ou só de doces lágrimas
choradas
De olhos que amor venceu: —
macia relva,
Leito de sesta a amores
fugitivos.
Da verde, rara abóbada de
folhas
Tépida e doce a luz coava a
frouxo
Do sol, que, além das
árvores, tranquilo,
Metade da jornada ia
transpondo.
Longe era ainda a hora
melancólica
Em que a jurema cerra a miúda
folha,
E o lume azul o pirilampo
acende.
De pé, a um velho tronco
descoroado
Da copada ramagem, resto
apenas,
Vestígio do tufão, a indiana
moça
Languidamente encosta o
esbelto corpo.
Neste ameno recesso tudo é
triste,
Porque é alegre tudo. Não mui
longe
Um desfolhado ipê conserva e
guarda
Flores que lhe ficaram de
outro estio,
Como esperança de folhagem nova,
Flores que a desventura lhe
há negado,
A ela, alma esquecida nesta
terra,
Que nada espera da estação
vindoura.
Olha, e de inveja o coração
lhe estala.
Pelo tronco das árvores se
enroscam
Parasitas, esposas do
arvoredo,
Mais fiéis não, mais
venturosas que ela.
Morrer? Descanso fora às
mágoas suas,
Mais que descanso, perdurável
gozo,
Que a nossa eterna pátria aos
infelizes
Deste desterro guarda alvas
capelas
De não murchandas e cheirosas
flores.
Tal lhe falava no íntimo do
peito
Desespero cruel. Alguns instantes
Pela cansada mente lhe
vagaram
De voluntária, abreviada
morte,
Lutuosas ideias. mal
compreende
Esses desmaios da criatura
humana
Quem não sentiu no coração
rasgado
Abatimento e enojo; ou, mais
do que isto,
Esse contraste imenso e
irreparável
Do amor interno e a solidão
da vida.
Rápido espaço foi. Pronto lhe
volve
Doce resignação, cristã
virtude,
Que desafia e que assoberba
os males.
As débeis mãos levanta. Já
dos lábios
Solta nas asas de oração
singela
Lástimas suas... Na folhagem
seca
Ouve de cautos pés rumor
sumido,
Volve a cabeça...
XIII
Trêmulo, calado,
Anajê crava nela os olhos
turvos
Dos vapores da festa. As mãos
inermes
Lhe pendem; mas o peito — ó
mísera! — esse,
Esse de mal contido amor
transborda.
Longo instante passou. Alfim:
“Deixaste
A festa nossa (o bárbaro
murmura);
Misteriosa vieste. Dos
guerreiros
Nenhum te viu; mas eu senti
teus passos,
E vim contigo ao ermo. Ave
mesquinha,
Inútil foges; gavião te
espreita,
Minha te fez Tupã.” Em pé,
sorrindo,
Escutava Potira a voz severa
De Anajê. Breve espaço abria
entre ambos
Alcatifado chão. A fatal hora
Chegara ao fim? Não o
perscruta a moça;
Tudo aceita das mãos do seu
destino,
Tudo, exceto... No próximo
arvoredo
Ouve de uma ave o pio
melancólico;
Era a voz de seu pai? a voz
do esposo?
De ambos talvez. No ânimo da
escrava
Restos havia dessa crença
antiga
Antiga e sempre nova: o peito
humano
Raro de obscuros elos se
liberta.
XIV
— “Nasceste para ser senhora
e dona:
Anajê não te veda a
liberdade;
Quebra tu mesma os nós do
cativeiro.
Faze-te esposa. Vem coroar
meus dias;
Vem, tudo esqueço. A fronte
do guerreiro,
Adornada por ti, será mais
nobre;
Mais forte o braço em que
pousar teu rosto.
Sou menos belo que esse
esposo ausente?
Rudes feições compensa amor
sobejo.
Vem; ver-me-ás companheira
nos combates,
E, se inimiga frecha entrar
meu seio,
Morrerei a teus pés. Tens
medo aos padres?
Outro destino escolhe.
Cauteloso,
Tece o japu nos elevados
ramos
Das elevadas árvores o ninho,
Onde o inimigo lhe não roube
a prole.
Ninho há na serra ao nosso
amor propício;
Viveremos ali. Troveje
embaixo
A inúbia convidando à guerra
os povos;
Leva de arcos transforme
estas aldeias
Em campos de combate, — ou já
dispersas
As fugitivas tribos vão
buscando
Longes sertões para chorar
seus males,
Viveremos ali. Talvez, um
dia,
Quando eu passar à misteriosa
estância
Das delícias eternas, me
pergunte
Meu velho pai: — “Teu arco de
guerreiro
Em que deserta praia o
abandonaste?"
Salvar-me-á teu amor do
eterno pejo.”
XV
Doce era a voz e triste.
Rasos d’água
Os olhos. Foi desmaio de
tristeza
Que o gesto dissipou da
esquiva moça.
Volve ao Tamoio vingativa
ideia.
— “Minha (diz ele) ou
morres!” Estremece
Potira, como quando a brisa
passa
Ao de leve na folha da
palmeira,
E logo fria ao bárbaro
responde:
— “Jaz esquecido em nossas
velhas tabas
O respeito da esposa? Acaso é
digna
Do sangue do Tamoio esta
ameaça?
Que desvalia aos olhos teus
me coube,
Se a outro me ligaram
natureza,
Religião, destino? A
liberdade
Nas tuas mãos depus; com ela
a vida.
É tudo, quase tudo. Honra de
esposa,
Oh! essa deves respeitá-la!
Vai-te!
Ceva teu ódio nas sangrentas
carnes
Do prostrado cativo. Aqui
chorando,
Na solidão destes bosques mal
fechados,
Às maviosas brisas meus
suspiros
Entregarei; levá-los-ão nas
asas
Lá onde geme solitário o
esposo.
Vai-te!”
E as mimosas mãos colhendo ao
rosto,
Alçou a Deus o pensamento
amante,
Como a centelha viva que a
fogueira
Extinta aos ares sobe.
Imóvel, muda,
Longo tempo ficou. Diante
dela,
Como ela imóvel, o tamoio
estava.
Amor, ódio, ciúme, orgulho,
pena,
Opostos sentimentos se
combatem
No atribulado peito. Generoso
Era, mas não domado amor lhe
dava
Inspiração de crimes. Não
mais pronto
Cai sobre a triste corça
fugitiva
Jaguar de longa fome
esporeado,
Do que ele as mãos lançou ao
colo e à fronte
Da mísera Potira. Ai! não,
não diga
A minha voz o lamentoso
instante
Em que ela, ao seu algoz
volvendo ansiosa
Turvos olhos: “Perdoo-te!”
murmura,
Os lábios cerra e imaculada
expira!
XVI
Estro maior teu nome obscuro
cante,
Moça cristã das solidões
antigas,
E eterno o cinja de virentes
flores,
Que as mereces. De não sabido
bardo
Estes gemidos são. Lânguidas
brisas
No taquaral à noite
sussurrando,
Ou enrugando o mole dorso às
vagas,
Não tem a voz com que domina
os ecos
Despenhada cachoeira. São,
contudo,
Mas que débeis e tristes, no
concerto
Da orquestra universal
cabidas notas.
Alveja a nebulosa entre as
estrelas,
E abre ao pé do rosal a flor
da murta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...