JOAQUIM
FRANCISCO SANTANA
(1877-1917)
Era
natural de Camutanga, no Estado de Pernambuco. Era de cor preta. Deixou de ser
agricultor para ser cantador, sabia ler e conhecia praticamente alguns ramos
das ciências vulgares. A sua veia poética era franca, o seu repente era fácil e
inspirado.
Diziam
os cantadores seus contemporâneos que o negro Joaquim Francisco era invencível.
Publico
em seguida a descrição de uma lagoa feita por Joaquim Francisco. Essa lagoa simboliza
uma fortaleza que é como o “Marco” e o “Castelo” redutos inexpugnáveis, dos
outros cantadores.
A DEFESA DA LAGOA
Quero agora contar publicamente
Aos que apreciam minha loa,
Descrevendo um trabalho que eu fiz
De um muro em redor de u’a lagoa
Que com ele cerquei famosos sítios,
E a terra amurada é toda boa.
Fiz de arame uma ponte que atravessa
Bem por cima do muro da lagoa,
Onde há quinze mil peças disparando,
Do terraço do meio até a proa;
Treme a terra e os montes estremecem,
Com dez léguas neto chega uma pessoa.
Além desses perigos, a lagoa
Solta água por nove sangradores,
Cada um tem em si uma bandeira,
Avisando a todos cantadores;
Os teimosos que não acreditarem.
Morrerão de pavor sem sentir dores.
Da lagoa no centro há uma máquina
Que tem de cada lado um grande cano.
Salvando de meia em meia hora
Dando estouros iguais aos do Oceano;
E só gastam p’ra disparar um tiro
Um minuto, e atiram todo o ano.
Cada cano tem cento e vinte balas,
O cantador que entrar topa revolta.
Baixam nuvens de cima dando estouros;
Faz correr velozmente a maré solta;
Se o cantor se livrar da tempestade.
Cai no bloco de gelo e não mais volta.
Todo o muro é coberto de espeques,
A mata é medonha e muito escura;
Inxui, capuxu, cobras, lacraus,
Mangangá, surrupia, com fartura;
Com machado, e alavanca, foice ou sulco.
Ninguém entra na grande embocadura.
Com escada no muro da lagoa,
O cantor que subir a queda é feia!
Cai de bruços, no chão, o infeliz,
Com os dentes mordendo a grossa areia;
Quebra os dentes e a cara, estoura o bucho
E inteira não fica uma só veia.
A lagoa tem lobo e tem serpente,
Tem jiboia, tem tigre tem leão.
Capivara, queixada, onça vermelha,
Cascavel, jararaca, escorpião.
Gavião, águia, abutre, carcará
Cobra d’água, baleia e tubarão.
Tem a carapanã, o maroim,
Maribondo amarelo e o pintado,
Tem formiga da preta e a saúva,
Carrapato miúdo e o do gado;
Tem piolho, tem pulga e mucurana,
O cantor que entrar lá sai desgraçado...
Na entrada do muro da lagoa,
De caboclos botei uma trincheira;
Tendo mais um valado com cem braças
No sopé de uma grande cordilheira;
O cantor que for perto do valado,
Sofre logo uma febre tremedeira.
Cem cachorros de fila há na entrada
E um monstro chamado cão catende,
Tem um laço de arame pelos ares,
Se o cantor for voando o laço prende;
Pela terra não entra que não pode,
Cai nas garras do cão, não se defende.
O cantor que vier em aroplano
Da lagoa não vê os belos lares
Porque o laço de arame o apreende
E vai com ele rodando pelos ares;
A mucica que dá é tão medonha
Que o atira no meio dos altos mares.
Na lagoa tem mais um mal-assombro
Que percorre, de noite, em todo lado;
O cantor que entrar por meio de reza.
Logo assim que chegar, fica assombrado..
E do ataque que sofre jamais torna
Se acaba batendo estuporado!
Cantador que teimar ir na lagoa
Ainda mesmo por um subterrâneo,
Se encontra com o valado de cem braças
Que tem água do Mar Mediterrâneo;
Não mais volta porque morre afogado
Num funil que a água faz muito instantâneo.
E, no caso que escale o grande muro,
Se o laço o pegar, ele não sai;
E se acaso, sair, o vento o tange
— Com cem
léguas distante o cabra cai...
O diabo já está o esperando.
Leva o corpo e a alma, tudo vai!...
Cantador que tentar ir na lagoa.
Arrenega da hora em que nasceu...
Pega logo a gritar por Satanás,
Blasfemando e dizendo aqui ‘stou eu!
Sou inimigo dos Santos e de Cristo!
Se apresenta o diabo e diz: é meu!
Cantor vendo a lagoa bem de longe,
Sofre dor de cabeça, febre e íngua;
Cria logo uma lepra pelo corpo.
Sua musa, em vez de crescer, mingua;
Incha os beiços, os olhos empapuçam,
Com uma sede terrível, seca a língua.
O cantor que tentar chegar mais perto,
Atacado é de sarna e de gafeira,
Cria logo um cobreiro pelas costas
Que a ponta termina na moleira;
E encontrando uma ponta com a outra
Dá-lhe logo a doença batedeira...
Da lagoa o terreno é mui saudável
Mas, é para cantor considerado;
Pode entrar na lagoa com seu dono.
Nada sofre e é muito apreciado;
Mas se for cantador de capoeira,
Na entrada se acaba o desgraçado.
La tem mais uma bomba de fumaça,
Defendendo o presente e o futuro;
Um cantor resolvendo entrar à força
Logo assim que escalar o grande muro
A fumaça da bomba sai de rolo
E ele morre afogado no escuro.
Essa bomba está sobre um pedestal
Construído de bronze e de latão;
No terreno tem minas de diamante,
De platina de ouro e de carvão,
Despejando matéria combustível,
Em um canto do muro há um vulcão.
No princípio do ano o clima é frio,
E no fim é bem quente e temperado;
O cantor que entrar pela frieza
Entreva e se acaba encarquilhado...
E entrando na época do calor
No vulcão morre logo asfixiado.
Os canais da lagoa estão tomados.
Cantador lá não pode penetrar;
Inda mesmo encantado lá não entra
Porque tem a visão para o pegar;
Por vereda nenhuma ele acha entrada,
Nem na terra, nem n’água nem no ar.
Ao redor do valado da lagoa.
Luz nenhuma penetra, é muito escuro
Na entrada tem mais um sumidouro
Que alimenta o vulcão do pé do muro;
Se o cantor vier perto é atraído
C querendo correr fica seguro.
Um cantor não penetra na lagoa,
Inda mesmo por meio de oração,
Porque o chefe da tribo dos caboclos
Com tal arte diabólica faz visão.
Que o pega por meio duma tragédia
E o atira nas chamas do vulcão.
Na lagoa atravessa um arco-íris
Que do sul ao norte é permanente;
Desce a chuva das nuvens trovejando,
Faz a barra do lado do nascente,
Do vulcão a cratera solta fumo
Que escurece do lado do poente.
E por cima do laço da lagoa
Atravessa a fumaça do vulcão,
Alevanta o calor da atmosfera,
Aparecem o corisco e o trovão;
O cantor se assombra e morre louco.
Em vez de ir ao céu, procura o cão.
Preparei o terreno e a lagoa,
Fiz a bomba, o muro e o valado,
Deixei dentro o vulcão e a grande ponte
E o laço nos ares sempre armado,
Os caboclos que guardam a cordilheira.
Cada um para a luta é adestrado.
Afinal os castigos da lagoa
Para todos cantores são demais
E se algum duvidar do que eu digo
E meter-se a entrar não volta em paz;
Se o cantor há de ir nessa lagoa
É melhor entregar-se a Satanás.
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Fonte:
Fonte:
Francisco Chagas Batista: “Cantadores e Poetas Populares” (1929)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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