SABINA
Sabina era mucama da fazenda;
Vinte anos tinha; e na
província toda
Não havia mestiça mais à
moda,
Com suas roupas de cambraia e
renda.
Cativa, não entrava na
senzala,
Nem tinha mãos para trabalho
rude;
Desbrochava-lhe a sua
juventude
Entre carinhos e afeições de
sala.
Era cria da casa. A
sinhá-moça,
Que com ela brincou sendo
menina,
Sobre todas amava esta
Sabina,
Com esse ingênuo e puro amor
da roça.
Dizem que à noite, a suspirar
na cama,
Pensa nela o feitor; dizem
que, um dia,
Um hóspede que ali passado
havia,
Pôs um cordão no colo da
mucama.
Mas que vale uma joia no
pescoço?
Não pôde haver o coração da
bela.
Se alguém lhe acende os olhos
de gazela,
É pessoa maior: é o senhor
moço.
Ora, Otávio cursava a
Academia.
Era um lindo rapaz; a mesma
idade
Co'as passageiras flores o
adornava
De cujo extinto aroma inda a
memória
Vive na tarde pálida do
outono.
Oh! vinte anos! Ó pombas
fugitivas
Da primeira estação, por que
tão cedo
Voais de nós? Pudesse ao
menos a alma
Guardar consigo as ilusões
primeiras,
Virgindade sem preço, que não
paga
Essa descolorida, árida e
seca
Experiência do homem!
Vinte anos
Tinha Otávio, e a beleza e um
ar de corte,
E o gesto nobre, e sedutor o
aspecto;
Um vero Adônis, como aqui
diria
Algum poeta clássico, daquela
Poesia que foi nobre, airosa
e grande
Em tempos idos, que ainda bem
se foram...
Cursava a Academia o moço
Otávio;
Ia no ano terceiro, não
remoto
Via desenrolar-se o
pergaminho,
Prêmio de seus labores e
fadigas;
E uma vez bacharel, via mais
longe
Os curvos braços da feliz
cadeira
Donde o legislador a rédea
empunha
Dos lépidos frisões do
Estado. Entanto,
Sobre os livros de estudo,
gota a gota
As horas despendia, e
trabalhava
Por meter na cabeça o jus
romano
E o pátrio jus. Nas suspiradas
férias
Volvia ao lar paterno; ali no
dorso
De brioso corcel corria os
campos,
Ou, arma ao ombro, polvorinho
ao lado,
À caça dos veados e cutias,
Ia matando o tempo. Algumas
vezes
Com o padre vigário se
entretinha
Em desfiar um ponto de
intrincada
Filosofia, que o senhor de
engenho,
Feliz pai, escutava glorioso,
Como a rever-se no brilhante
aspecto
De suas ricas esperanças.
Era
Manhã de estio; erguera-se do
leito
Otávio; em quatro sorvos toda
esgota
A taça de café. Chapéu de
palha,
E arma ao ombro, lá foi
terreiro fora,
Passarinhar no mato. Ia
costeando
O arvoredo que além beirava o
rio,
A passo curto, e o pensamento
à larga,
Como leve andorinha que
saísse
Do ninho, a respirar o hausto
primeiro
Da manhã. Pela aberta da
folhagem,
Que inda não doura o sol, uma
figura
Deliciosa, um busto sobre as
ondas
Suspende o caçador. Mãe
d’água fora,
Talvez, se a cor de seus
quebrados olhos
Imitasse a do céu; se a tez
morena,
Morena como a esposa dos
Cantares,
Alva tivesse; e raios de ouro
fossem
Os cabelos da cor da noite
escura,
Que ali soltos e úmidos lhe
caem,
Como um véu sobre o colo.
Trigueirinha,
Cabelo negro, os largos olhos
brandos
Cor de jabuticaba, quem
seria,
Quem, senão a mucama da
fazenda,
Sabina, enfim? Logo a conhece
Otávio,
E nela os olhos espantados
fita
Que desejos acendem. — mal
cuidando
Daquele estranho curioso, a
virgem
Com os ligeiros braços rompe
as águas,
E ora toda se esconde, ora
ergue o busto,
Talhado pela mão da natureza
Sobre o modelo clássico. Na
oposta
Riba suspira um passarinho; e
o canto
E a meia luz, e o sussurrar
das águas,
E aquela fada ali, tão doce
vida
Davam ao quadro, que o
ardente aluno
Trocara por aquilo, uma hora
ao menos,
A Faculdade, o pergaminho e o
resto.
Súbito erige o corpo a
ingênua virgem.
Com as mãos, os cabelos sobre
a espádua
Deita, e rasgando lentamente
as ondas,
Para a margem caminha, tão
serena,
Tão livre como quem de
estranhos olhos
Não suspeita a cobiça... Véu
da noite,
Se lhos cobrira, dissipara
acaso
Uma história de lágrimas. Não
pode
Furtar-se Otávio à comoção
que o toma;
A clavina que a esquerda mal
sustenta
No chão lhe cai; e o baque
surdo acorda
A descuidada nadadora. Às
ondas
A virgem torna. Rompe Otávio
o espaço
Que os divide; e de pé, na
fina areia,
Que o mole rio lambe, ereto e
firme,
Todo se lhe descobre. Um
grito apenas
Um só grito, mas único, lhe
rompe
Do coração; terror,
vergonha... e acaso
Prazer, prazer misterioso e
vivo
De cativa que amou silenciosa,
E que ama e vê o objeto de
seus sonhos,
Ali com ela, a suspirar por
ela.
“Flor da roça nascida ao pé
do rio,
Otávio começou — talvez mais
bela
Que essas belezas cultas da
cidade,
Tão cobertas de joias e de
sedas,
Oh! não me negues teu suave
aroma!
Fez-te cativa o berço; a lei
somente
Os grilhões te lançou; no
livre peito
De teus senhores tens a liberdade,
A melhor liberdade, o puro
afeto
Que te elegeu entre as demais
cativas,
E de afagos te cobre! Flor do
mato,
Mais viçosa do que essas
outras flores
Nas estufas criadas e nas
salas,
Rosa agreste nascida ao pé do
rio,
Oh! não me negues teu suave
aroma!”
Disse, e da riba os cobiçosos
olhos
Pelas águas estende, enquanto
os dela,
Cobertos pelas pálpebras
medrosas
Choram, — de gosto e de
vergonha a um tempo, —
Duas únicas lágrimas. O rio
No seio as recebeu; consigo
as leva,
Como gotas de chuva,
indiferente
Ao mal ou bem que lhe povoa a
margem;
Que assim a natureza, ingênua
e dócil
Às leis do Criador, perpétua
segue
Em seu mesmo caminho, e deixa
ao homem
Padecer e saber que sente e
morre.
Pela azulada esfera inda três
vezes
A aurora as flores derramou,
e a noite
Vezes três a mantilha escura
e larga
Misteriosa cingiu. Na quarta
aurora,
Anjo das virgens, anjo de
asas brancas,
Pudor, onde te foste? A alva
capela
Murcha e desfeita pelo chão
lançada,
Coberta a face do rubor do
pejo,
Os olhos com as mãos velando,
alçaste
Para a Eterna Pureza o eterno
voo.
Quem ao tempo cortar pudera
as asas
Se deleitoso voa? Quem pudera
Suster a hora abençoada e
curta
Da ventura que foge, e sobre
a terra
O gozo transportar da
eternidade?
Sabina viu correr tecidos de
ouro
Aqueles dias únicos na vida
Toda enlevo e paixão, sincera
e ardente
Nesse primeiro amor d’alma
que nasce
E os olhos abre ao sol. Tu
lhe dormias,
Consciência; razão, tu lhe
fechavas
A vista interior; e ela
seguia
Ao sabor dessas horas mal
furtadas
Ao cativeiro e à solidão, sem
vê-lo
O fundo abismo tenebroso e
largo
Que a separa do eleito de
seus sonhos,
Nem pressentir a brevidade e
a morte!
E com que olhos de pena e de
saudade
Viu ir-se um dia pela estrada
fora
Otávio! Aos livros torna o
moço aluno,
Não cabisbaixo e triste, mas
sereno
E lépido. Com ela a alma não
fica
De seu jovem senhor. Lágrima
pura,
Muito embora de escrava, pela
face
Lentamente lhe rola, e
lentamente
Toda se esvai num pálido
sorriso
De mãe.
Sabina é mãe; o sangue livre
Gira e palpita no cativo seio
E lhe paga de sobra as dores
cruas
Da longa ausência. Uma por
uma, as horas
Na solidão do campo há de
contá-las,
E suspirar pelo remoto dia
Em que o veja de novo...
Pouco importa,
Se o materno sentir compensa
os males.
Riem-se dela as outras; é seu
nome
O assunto do terreiro. Uma
invejosa
Acha-lhe uns certos modos
singulares
De senhora de engenho; um
pajem moço,
De cobiça e ciúme devorado,
Desfaz nas graças que em
silêncio adora
E consigo medita uma
vingança.
Entre os parceiros, desfiando
a palha
Com que entrança um chapéu,
solenemente
Um Caçanje ancião refere aos
outros
Alguns casos que viu na
mocidade
De cativas amadas e
orgulhosas
Castigadas do céu por seus
pecados,
Mortas entre os grilhões do
cativeiro.
Assim falavam eles; tal o
aresto
Da opinião. Quem evitá-lo
pode
Entre os seus, por mais baixo
que a fortuna
Haja tecido o berço? Assim
falavam
Os cativos do engenho; e
porventura
Sabina o soube e o perdoou.
Volveram
Após os dias da saudade os
dias
Da esperança. Ora, quis
fortuna adversa
Que o coração do moço, tão
volúvel
Como a brisa que passa ou
como as ondas,
Nos cabelos castanhos se
prendesse
De donzela gentil, com quem
atara
O laço conjugal: uma beleza
Pura, como o primeiro olhar
da vida,
Uma flor desbrochada em seus
quinze anos,
Que o moço viu num dos serões
da corte
E cativo adorou. Que há de
fazer-lhes
Agora o pai? Abençoar os
noivos
E ao regaço trazê-los da
família.
Oh! longa foi, longa e
ruidosa a festa
Da fazenda, por onde alegre
entrara
O moço Otávio conduzindo a
esposa.
Viu-os chegar Sabina, os
olhos secos,
Atônita e pasmada. Breve o
instante
Da vista foi. Rápido foge. A
noite
A seu trêmulo pé não tolhe a
marcha;
Voa, não corre, ao malfadado
rio,
Onde a voz escutou do amado
moço.
Ali chegando: “Morrerá
comigo.
O fruto de meu seio; a luz da
terra
Seus olhos não verão; nem ar
da vida
Há de aspirar...”
Ia a cair nas águas,
Quando súbito horror lhe toma
o corpo;
Gelado o sangue e trêmula
recua,
Vacila e tomba sobre a relva.
A morte
Em vão a chama e lhe fascina
a vista;
Vence o instinto de mãe. Erma
e calada
Ali ficou. Viu-a jazer a lua
Largo espaço da noite ao pé
das águas,
E ouviu-lhe o vento os
trêmulos suspiros;
Nenhum deles, contudo, o
disse à aurora.
ÚLTIMA JORNADA
I
E ela se foi nesse clarão
primeiro,
Aquela esposa mísera e
ditosa;
E ele se foi o pérfido
guerreiro.
Ela serena ia subindo e
airosa,
Ele à força de incógnitos
pesares
Dobra a cerviz rebelde e
lutuosa.
Iam assim, iam cortando os
ares,
Deixando embaixo as fértiles
campinas,
E as florestas, e os rios e
os palmares.
Oh! cândidas lembranças
infantinas!
Oh! vida alegre da primeira
taba;
Que aurora vos tomou, aves
divinas?
Como um tronco do mato que
desaba,
Tudo caiu; lei bárbara e
funesta:
O mesmo instante cria e o
mesmo acaba.
De esperanças tamanhas o que
resta?
Uma história, uma lágrima
chorada
Sobre as últimas ramas da
floresta.
A flor do ipê a viu brotar
magoada,
E talvez a guardou no seio
amigo,
Como lembrança da estação
passada.
Agora os dois, deixando o
bosque antigo,
E as campinas, e os rios e os
palmares,
Para subir ao derradeiro
abrigo,
Iam cortando lentamente os
ares.
II
E ele clamava à moça que
ascendia;
“— Oh! tu que a doce luz
eterna levas,
E vais viver na região do
dia,
Vê como rasgam bárbaras e
sevas
As tristezas mortais ao que
se afunda
Quase na fria região das
trevas!
Olha esse sol que a criação
inunda!
Oh quanta luz, oh! quanta
doce vida
Deixar-me vai na escuridão
profunda!
Tu ao menos perdoa-me,
querida!
Suave esposa, que eu ganhei
roubando,
Perdida agora para mim,
perdida!
Ao maldito na morte, ao miserando,
Que mais lhe resta em sua
noite impura?
Sequer alívio ao coração
nefando.
Nos olhos trago a tua morte
escura.
Foi meu ódio cruel que há
decepado,
Ainda em flor, a tua
formosura.
Mensageiro de paz, era
enviado
Um dia à taba de teus pais,
um dia
Que melhor fora se não fora
nado.
Ali te vi; ali, entre a
alegria
De teus fortes guerreiros e
donzelas,
Teu doce rosto para mim
sorria.
A mais bela eras tu entre as
mais belas,
Como no céu a criadora lua
Vence na luz as vívidas
estrelas.
Gentil nasceste por desgraça
tua;
Eu covarde nasci; tu me
seguiste;
E ardeu a guerra desabrida e
crua.
Um dia o rosto carregado e
triste
À taba de teus pais volveste,
o rosto
Com que alegre e feliz dali
fugiste.
Tinha expirado o passageiro
gosto,
Ou o sangue dos teus, correndo
a fio,
Em teu seio outro afeto havia
posto.
Mas, ou fosse remorso, ou já
fastio,
Ias-te agora leve e
descuidada,
Como folha que o vento
entrega ao rio.
Oh! corça minha fugitiva e
amada!
Anhangá te guiou por mau
caminho,
E a morte pôs na minha mão fechada.
Feriu-me da vingança agudo
espinho;
E fiz-te padecer tão cruas
penas,
Que inda me dói o coração
mesquinho.
Ao contemplar aquelas tristes
cenas
As aves, de piedosas e
sentidas,
Chorando foram sacudindo as
penas.
Não viu o cedro ali correr
perdidas
Lágrimas de materno amado
seio;
Viu somente morrer a flor das
vidas.
O que mais houve da floresta
em meio
O sinistro espetáculo,
decerto
Nenhum estranho contemplá-lo
veio.
Mas, se alguém penetrasse no
deserto,
Vira cair pesadamente a massa
Do corpo do guerreiro; e o
crânio aberto,
Como se fora derramada taça
Pela terra jazer, ali
chamando
O feio grasno do urubu que
passa.
Em vão a arma do golpe irão
buscando,
Nenhuma houve; nem guerreiro
ousado
A tua morte ali foi
castigando.
Talvez, talvez Tupã, desconsolado,
A pena contemplou maior do
que era
O delito; e de cólera tomado,
Ao mais alto dos Andes
estendera
O forte braço, e da árvore
mais forte
A seta e o arco vingador
colhera;
As pontas lhe dobrou, da
mesma sorte
Que o junco dobra,
sussurrando o vento,
E de um só tiro lhe enviou a
morte.”
Ia assim suspirando este
lamento,
Quando subitamente a voz lhe
cala,
Como se a dor lhe sufocara o
alento.
No ar se perdera a lastimosa
fala,
E o infeliz, condenado à
noite escura,
Os dentes range e treme de
encontrá-la.
Leva os olhos na viva aurora
pura
Em que vê penetrar, já longe,
aquela
Doce, mimosa, virginal
figura.
Assim no campo a tímida
gazela
Foge e se perde; assim no
azul dos mares
Some-se e morre fugidia vela.
E nada mais se viu flutuar
nos ares;
Que ele, bebendo as lágrimas
que chora,
Na noite entrou dos imortais
pesares,
E ela de todo mergulhou na
aurora.
OS ORIZES
(Fragmento)
I
Nunca as armas cristãs, nem
do Evangelho
O lume criador, nem frecha
estranha
O vale penetraram dos
guerreiros
Que, entre serros altíssimos
sentado,
Orgulhoso descansa. Único o
vento,
Quando as asas desprega
impetuoso,
Os campos varre e as selvas
estremece,
Um pouco leva, ao recatado
asilo,
Da poeira da terra. Acaso o
raio
Alguma vez nos ásperos
penedos,
Com fogo escreve a assolação
e o susto.
Mas olhos de homem, não; mas
braço afeito
A pleitear na guerra, a abrir
ousado
Caminho entre a espessura da
floresta,
Não afrontara nunca os
atrevidos
Muros que a natureza a pino
erguera
Como eterna atalaia.
II
Um povo indócil
Nessas brenhas achou ditosa
pátria,
Livre, como o rebelde
pensamento
Que ímpia força não doma, e
airoso volve
Inteiro à eternidade. Guerra
longa
E porfiosa os adestrou nas
armas;
Rudes são nos costumes mais
que quantos
Há criado este sol, quantos
na guerra
O tacape meneiam vigoroso.
Só nas festas de plumas se
ataviam
Ou na pele do tigre o corpo
envolvem,
Que o sol queimou, que a
rispidez do inverno
Endureceu como os robustos
troncos
Que só verga o tufão. Tecer
não usam
A preguiçosa rede em que se
embale
O corpo fatigado do
guerreiro,
Nem as tabas erguer como
outros povos;
Mas à sombra das árvores
antigas,
Ou nas medonhas cavas dos
rochedos,
No duro chão, sobre mofinas
ervas,
Acham sono de paz, jamais
tolhido
De ambições, de remorsos.
Indomável
Essa terra não é; pronto lhes
volve
O semeado pão; vicejam flores
Com que a rudez tempera a
extensa mata,
E o fruto pende dos curvados
ramos
Do arvoredo. Harta messe do
homem rude,
Que tem na ponta da farpada
seta
O pesado tapir, que lhes não
foge,
Nhandu, que à flor de terra
inquieto voa,
Sobejo pasto, e deleitoso e
puro
Da selvagem nação. Nunca
vaidade
De seu nome souberam, mas a
força,
Mas a destreza do provado
braço
Os foros são do império a que
hão sujeito
Todo aquele sertão. Murmuram
longe,
Contra eles, as gentes
debeladas
Vingança e ódio. Os ecos
repetiram
Muita vez a pocema de
combate;
Nuvens e nuvens de afiadas
setas
Todo o ar cobriram; mas o
extremo grito
Da vitória final só deles
fora.
III
Despem armas de guerra; a paz
os chama
E o seu bárbaro rito. Alveja
perto
O dia em que primeiro a voz
levante
A ave sagrada, o nume de seus
bosques,
Que de agouro chamamos,
Cupuaba
Melancólica e feia, mas
ditosa
E benéfica entre eles. Não se
curvam
Ao nome de Tupã, que a noite
e o dia
No céu reparte, e ao ríspido
guerreiro
Guarda os sonhos do Ibaque e
eternas danças.
Seu deus único é ela, a
benfazeja
Ave amada, que os campos
despovoa
Das venenosas serpes, — viva
imagem
Do tempo vingador, lento e
seguro,
Que as calúnias, a inveja e o
ódio apagam,
E ao conspurcado nome o alvor
primeiro
Restitui. Uso é deles
celebrar-lhe
Com festas o primeiro e o
extremo canto.
IV
Terminara o cruento
sacrifício.
Ensopa o chão da dilatada
selva
Sangue de caititus, que o pio
intento
Largos meses cevou; bárbara
usança
Também de alheios climas. As
donzelas,
Mal saídas da infância, inda
embebidas
Nos ledos jogos de primeira
idade,
Ao brutal sacrifício... Oh!
cala, esconde,
Lábio cristão, mais bárbaro
costume.
V
Agora a dança, agora alegres
vinhos,
Três dias há que de inimigos
povos
Esquecidos os trazem. Sobre
um tronco
Sentado o chefe, carregado o
rosto,
Inquieto o olhar, o gesto
pensativo,
Como alheio ao prazer, de
quando em quando
À multidão dos seus a vista
alonga,
E um rugido no peito lhe
murmura.
Quem a fronte enrugara do
guerreiro?
Inimigo não foi, que o medo
nunca
O sangue lhe esfriou, nem vão
receio
Da batalha futura o desenlace
Lhe fez incerto. Intrépidos
como ele
Poucos vira este céu. Seu
forte braço,
Quando vibra o tacape nas
pelejas,
De rasgados cadáveres o campo
Inteiro alastra, e ao peito
do inimigo,
Como um grito de morte a voz
lhe soa.
Nem só nas gentes o terror
infunde;
É fama que em seus olhos cor
da noite,
Inda criança, um gênio lhe
deixara
Misteriosa luz, que as forças
quebra
Da onça e do jaguar. Certo é
que um dia
(A tribo o conta, e seus pajés
o juram)
Um dia em que, do filho
acompanhado,
Ia costeando a orla da
floresta,
Um possante jaguar,
escancarando
A boca, em frente do famoso
chefe
Estacara. De longe um grito
surdo
Solta o jovem guerreiro; logo
a seta
Embebe no arco, e o tiro
sibilante
Ia já disparar, quando de
assombro
A mão lhe afrouxa a
distendida corda.
A fera o colo tímida abatera,
Sem ousar despregar os fulvos
olhos
Dos olhos do inimigo. Urete
ousado
Arco e frechas atira para
longe,
A maça empunha, e lento, e
lento avança;
Três vezes volteando a arma
terrível,
Enfim despede o golpe; um
grito apenas
Único atroa o solitário
campo,
E a fera jaz, e o vencedor
sobre ela.
CANTIGA DO
ROSTO BRANCO
Rico era o rosto branco;
armas trazia,
E o licor que devora e as
finas telas;
Na gentil Tibeíma os olhos
pousa,
E amou a flor das belas.
“Quero-te!” disse à cortesã
da aldeia;
“Quando, junto de ti, teus
olhos miro,
A vista se me turva, as
forças perco,
E quase, e quase expiro.”
E responde a morena
requebrando
Um olhar doce, de cobiça
cheio:
“Deixa em teus lábios
imprimir meu nome;
Aperta-me em teu seio!”
Uma cabana levantaram ambos,
O rosto branco e a amada flor
das belas...
Mas as riquezas foram-se coo
tempo,
E as ilusões com elas.
Quando ele empobreceu, a
amada moça
Noutros lábios pousou seus
lábios frios,
E foi ouvir de coração
estranho
Alheios desvarios.
Desta infidelidade o rosto
branco
Triste nova colheu; mas ele
amava,
Inda infiéis, aqueles lábios
doces,
E tudo perdoava.
Perdoava-lhe tudo, e inda
corria
A mendigar o grão de porta em
porta,
Com que a moça nutrisse, em
cujo peito
Jazia a afeição morta.
E para si, para afogar a
mágoa,
Se um pouco havia do licor
ardente,
A dor que o devorava e
renascia
Matava lentamente.
Sempre traído, mas amando
sempre,
Ele a razão perdeu; foge à cabana,
E vai correr na solidão do
bosque
Uma carreira insana.
O famoso Sachém, ancião da
tribo,
Vendo aquela traição e aquela
pena,
À ingrata filha duramente
fala,
E ríspido a condena.
Em vão! É duro o fruto da
papaia,
Que o lábio do homem acha
doce e puro;
Coração de mulher que já não
ama
Esse é inda mais duro.
Nu, qual saíra do materno
ventre,
Olhos cavos, a barba
emaranhada,
O mísero tornou, e ao próprio
teto
Veio pedir pousada.
Volvido se cuidava à flor da
infância
(Tão escuro trazia o
pensamento).
“Mãe!” exclamava contemplando
a moça,
“Acolhe-me um momento!”
Vinha faminto. Tibeíma,
entanto,
Que já de outro guerreiro os
dons houvera,
Sentiu asco daquele que outro
tempo
As riquezas lhe dera.
Fora o lançou; e ele expirou
gemendo
Sobre folhas deitado junto à
porta;
Anos volveram; co’os volvidos
anos,
Tibeíma era morta.
Quem ali passa, contemplando
os restos
Da cabana, que a erva toda
esconde:
“Que ruínas são essas?”,
interroga.
E ninguém lhe responde.
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