LÁGRIMA MAIOR QUE O MAR
O mar!... o mar!... o
mar!...a arena das procelas,
Onde o tufão sacode as
rábidas lufadas,
Onde o raio revolve as
eternas querelas,
Onde respondem logo as vagas
convulsadas,
Onde as asas se veem das
grandes brancas velas
Voar, como de uma ave as
penas arrancadas.
O mar!... o mar!... o mar!...
a lágrima profunda
Caída pelos céus dos cílios
do infinito,
Que dois terços da terra
abraça, aperta, inunda
Com seu tremendo, rouco e
impetuoso grito;
Lágrima enorme, amarga,
irrequieta, iracunda,
Dentro de um vaso de
montanhas de granito.
O mar! quem o não ama? o mar!
quem o não teme?
Quando sacode a juba
inflamada e vermelha,
Quando o seu dorso salta,
encurva-se, e refreme
Retalhado a farpões de rúbida
centelha,
Quando se lança após do
furacão, que geme,
E a luta colossal da Águia e
do Leão semelha...
Cobre-lhe o peito e a espádua
azul, como mortalha,
Toda a espuma da boca
horrenda escancarada:
Uma risada atroz, histérica,
farfalha
Na verruga de um seixo aos
ombros agarrada:
Aquela água está sempre a
renovar batalha:
Quer a pugna sem fim; nunca
está descansada.
De um deus irado, um deus
vencido e em desespero
Caiu um olho e toda aquela
água sombria
Na sabulosa face a arder do
mundo inteiro,
Antes dela encontrar seu
leito de agonia;
E inda convulsa vivo o olho
do guerreiro,
Como que irado contra o deus
que o arrancaria.
Mas esse mar imenso, esse mar
que domina
De um polo a outro, e a terra
enleia nos seus braços:
Esse mar, que soluça aos pés
de uma colina,
E arremessa-se aos sóis, e
atira-se aos espaços,
Que declinar vê tudo, e que
jamais declina,
Que aos Impérios dá vida, e
engole-os aos pedaços:
Esse mar que recorda um longo
sofrimento,
Dos bulcões lacerado, assim
como um precito,
Dos deuses fulminado,
açoitado do vento,
Maldito pela dor, pelas
trevas maldito,
Cabe em terra, onde esconde a
lágrima e o tormento.
E a minha? a minha só conter
pode o infinito!
A ALCOVA
A sua casa é como escrínio
rutilante
De joia de valor:
É, como em grande bosque, um
pássaro gigante,
Onde se ouve cantar lá dentro
a todo o instante
Um cântico de amor.
A sua casa branca é como
oculto ninho
Dentro de um madrigal,
Na copa do arvoredo, à beira
do caminho,
Onde, como um chuveiro, a voz
de um passarinho
Cai sobre todo o val.
Sua casa é como um riso,
Não tem musgos de tristeza;
Adivinha-se a beleza
Aí no seu pedestal;
As trepadeiras, que enlaçam
De sua alcova a janela,
Não sei que espreitam por
ela...
Mas vê-las, me fazem mal.
Oh! pudera eu subir, como
elas, desatados
Meus braços estender,
Para vê-la dormir no leito
sem cuidados,
E as asas brancas ver dos
anjos desvairados
A alcova toda encher.
Ir de pé ante pé, e
contemplar seu rosto.
Ver ainda em botão
Dos seus lábios sair um
sorriso composto
Dos sonhos da inocência, e
perfumes de agosto,
E rosais de verão.
Foi uma vez uma estrela,
No puro azul cintilava,
Coroada de ouro ela entrava
Por sua alcova: —
tremi!
Eu erguia as mãos convulsas,
E embalde ao céu as erguia!
Foi uma noite de orgia!...
Ambas beijavam-se: eu vi.
Oh! poder que eu pudesse! O
mundo atravessara,
Como quem entra o céu,
Para vê-la de pé, como uma
deusa em ara,
Da alâmpada ao clarão, em
cujo meio para,
Como deusa em troféu.
Ver cada estrela, que lhe
entra pela vidraça
Devagar... devagar:
Cada estrela que vem, cada
estrela que passa,
E nos bracinhos de ouro a
aperta, a cerca, a enlaça,
Sem fazê-la acordar.
Surgia a aurora: entre os
dedos
Alvas rosas desfolhava,
E as loucas brisas soltava
Dos arregaços do véu:
No peitoril da janela
Vi pousar um passarinho:
— Ave, segue teu caminho...
Vai teu caminho do céu.
Não venhas perturbar-lhe o
sono, ó linda aurora,
Não a despertes, sol:
Tuas lágrimas de ouro ela as
merece: — chora!
Não perto dela, não:
lamenta-te lá fora:
Não sobre o seu lençol. —
Ela está no seu leito ainda
seminua;
Desnus os pés gentis,
Dobrada sobre si, como
encurvada lua
De nuvem negra à beira: a
coma lhe flutua
Às espáduas de lis.
Ah! se te ergueras! no meio
De tua cheirosa alcova,
Vira-te acaso Canova,
Marmórea estátua gentil,
— Paros com vida, —
decerto
Num brusco assomo quebrara
Quanta estátua ele rolara
De cima do seu buril.
Ei-la: acordou enfim: a brisa
que cicia
Cheirosa dos vergéis,
O sol, que lhe enche as mãos
de pérolas do dia.
O prazer, que gorjeia
endechas de alegria,
Tudo beija os seus pés.
Tudo nela alvorou: tudo enfim
se levanta,
Com ela tudo riu...
Com ela tudo riu, com ela
tudo canta,
E ela chega à janela, assim
como uma santa,
Que do nicho saiu;
Ei-la! chegou à janela
No meio das trepadeiras:
A toda flor, sim! tu cheiras:
Cheiras, sim! a toda flor:
Da moldura, que te envolve,
Tu aproveitas o ensejo,
Para dar à boca o beijo
De tudo que sente amor.
Nova estrela a surgir no
vasto azul profundo,
Nova constelação
Pregada em novo céu, cobrindo
um novo mundo;
Uma pérola nova arrancada do
fundo
De um mar em ignição;
Não alvoroça tanto, e não
surpreende um grito
De espanto e de terror,
Como ao que teve acaso em ti
seus olhos fito,
Como ao que viu nos teus a
imagem do infinito,
No infinito do amor.
De tarde, quando o sol volta,
E para o mar se debruça,
A tua fronte soluça,
O teu olhar sombras tem;
Mas o sol, que leva o dia,
Não carrega os teus encantos:
Por que te salpicam prantos,
Como orvalhos à cecém?
Ó deusa, essa tristeza
eleva-te num plinto:
É mesmo o teu altar: —
Dela o teu pensamento ir para
azuis eu sinto,
Dela se erguem teus pés sobre
este labirinto:
O pensar é chorar...
Eis porque vejo em ti mais
que a mulher querida,
Mais que o meu sonho quer:
Tu és a fé, que crê; —
o sábio, que duvida:
Tu és todo o luzir e todo o
horror da vida:
Amo-te assim, mulher.
IDIOTA?
Saí de casa triste e em
desalinho,
A alma inquieta e turva, o
olhar sombrio;
E, como sai de um bosque
escuro um rio,
Fui, levando as imagens do
caminho.
Anda em vaivém, na faina,
muita gente:
Abre um e outro com força uma
janela;
E eu vou, na direção da casa
dela,
Morno, alheado, absorto,
inconsciente.
Passa em farrapos um rapaz
robusto,
Retalhando uma música divina,
O sol festeja-o, ri-se, e o
ilumina,
Como a um anjo em frontão de
templo augusto.
Dança um macaco aos sons de
um realejo;
Tocam um piano, em cima, num
sobrado;
Um cavaleiro, a trote
acelerado
Corre; as pedras faíscam num
lampejo.
Andemos —
Eis o oceano em maré cheia!
Como cintila essa esmeralda
imensa!
Ninguém sorri melhor, murmura
e pensa,
Quando lambe o estendal da
branca areia.
Pensa, medita, e ri-se, e
aquele riso
De tigre se desfolha em
branca espuma,
E enrosca as vagas todas uma
a uma,
Como a cobra falaz do
paraíso.
Parece riso cínico o que vejo
Nessa cintilação do mar
sereno;
Bebo irritante, aspérrimo
veneno
Na ironia do seu tépido
beijo.
Um grande barco vai soprando
o fumo
Pela ardósia do mar azul e
inquieto;
E num novelo artístico e
correto
Está o vapor o céu subindo a
prumo.
Aquela quietação tira-me a
calma;
E esse zunzum das rodas
volteando
Parece em mim arremessar,
zombando,
Todo o seu estridor dentro em
minha alma.
É belo o céu, lavado e
deslumbrante,
Úmido, largo, imenso e
luminoso;
0 sol no centro em trêmulo
repouso,
Como num aro lúcido diamante.
Oh! se o céu fosse menos
azulado!
Se uma nuvem cobrisse o sol
agora!
Não sei por que minha alma
geme e chora,
E só ouço risadas ao meu
lado!...
Algumas flores, que estou
vendo abertas,
Nos jardins, que há em frente
a algumas casas,
No mesmo lume, ó céu, em que
te abrasas,
Unem-se, como em solidões
desertas.
E eu que as vira até ali tão
pudibundas!
Que as brancuras do lírio
amava tanto!
A ninguém sabem já ter dó no
pranto,
Quando de luz e amor, sol, as
inundas!
Hei de chegar assim a passo
lento
Até a sua habitação querida,
Tudo cheio de luz, de amor,
de vida,
E eu só com meu sombrio
pensamento!
E eu só com esta noite de
tristeza
Ante a galhofa e o rir, e o
amor de tudo;
E vendo bronco, curvo, opaco,
mudo,
Vestida em festa, (insana!) a
natureza...
Porque ela sabe por quem vivo
todo,
E por que dentro em mim há
noite escura:
Porque lá dentro anima-se e
fulgura
A estrela das visões de um
pobre doido.
Por isso tudo mostra essa
ironia...
Zombam... até que junto dela
chego:
Mas se o olhar meu profundo,
doce e meigo
Não lhe diz meu amor, quem
lhe diria?
Chego: aperta-me a mão
alegremente:
Ri-se, graceja, fala, canta,
voa,
(Crê-se, se anda), é chã, é
meiga, é boa:
Mas o amor, que lhe tenho,
ela o não sente.
Por isso ri-se: e nisso anda
o gracejo,
Que eu vejo e sinto em toda a
natureza:
Ó minha funda noite de
tristeza,
Só pode ela apagar-te à luz
de um beijo.
O amor agita o céu, a terra,
o inferno.
O amor vive num sol, num
grão, num brilho;
E eu que apenas do amor
também sou filho,
Vivo e morro de amor, ó Deus
eterno.
O amor prende-se a tudo, em
tudo brota,
Num musgo, numa célula, num
ninho:
Estou louco de amor, mas não
sozinho!
Será que o amor foi sempre um
deus idiota?!...
UMA MISÉRIA POR UM ASTRO
Andas nesta miséria luminosa,
Alma cheia de luz e
vagabunda;
Busca-te a vida e a flor, e o
sol te inunda,
E renegas do sol, do céu, da
flor:
Vives na sombra das florestas
virgens:
Vais às cidades; nada te
consola:
Teu pobre coração mendiga a
esmola
De uma miséria: anda a pedir
amor...
O Gênio diz: —
toma esta pena; — escreve,
Farás um livro como Dante e
Homero: —
E tu respondes: —
para mim não quero. —
Um anjo diz: —
de um astro vais dispor;
Dominarás tu só um vasto
mundo;
Vem: sobe às minhas asas
rutilantes: —
E tu respondes triste, como
dantes:
—Só quero uma miséria: esmolo o
amor...—
O céu te oferece azuis e a
vida encantos;
O mundo a arena do combate e
a glória;
A pátria em branco a
esplendorosa história,
Em que há de os fastos do teu
nome expor:
Rasgam-te os seios dilatadas
veigas,
Onde aspiras perfumes do
Oriente:
Dizes-lhes só, alheado e
descontente:
— Eu quero pouco —
esta miséria,— o amor... —
Dão-te a mulher, que em
mocidade esplende,
A carne branca, lisa e cetinosa,
Onde à neve e aos jasmins se
mescla a rosa,
Mármore quente, vivo,
encantador...
O anjo do Prazer te diz: —
venceste:
Manda-te Deus o amor na
mulher linda...
Gemes exausto: —
não venci ainda!
Se podem, deem-me esta
miséria, o amor... —
Sóis da vida, ambições,
prazeres, glória,
Teu coração é pobre, e rude,
é tosco,
Não quer, não pode carregar
convosco,
Mundos cheios de vida e de
fulgor:
Há na sombra de um vale um
lírio branco,
Que tens em mais que estrela
peregrina:
Dê-te essa esmola a sua mão
divina...
Mas... quem ta der, dar-te-á
teu céu de amor!
NÊNIA DE UM LOUCO
— Donde vem essa barca
auribordada,
Como entre flores peregrino
altar,
Por briosos cavalos
arrancada?
Espumam, como quando corre o
mar.
Quem vem nela? A que terras é
levada?
Em que oceano profundo a irão
lançar?
Sobre que areias brancas e
macias
Vai ver rolar o ouro dos seus
dias?
Mas... por que tantas faces
vão sombrias?
Que tormenta elas veem no céu
pairar?
Cobriram-na de belas coroas:
creio
Que isto só podem ter os
imortais!
É pois uma heroína em seu
passeio,
Que dentro dessa barca azul
levais?
Não são seus louros em
batalhas ganhos,
Não são seus feitos tantos e
tamanhos,
Que estão pedindo estemas
triunfais?
Qual vai ser seu destino? e
donde veio?
Mas... vós levais intumescido
o seio:
Deveis rir, indo à festa: e
vós chorais? —
Isto apenas o louco
murmurava:
Depois como o acordando de um
letargo,
Ria-se; e era o seu riso tão
amargo,
Que era melhor chorar; e não
chorava.
— O sol, que cai por mar a
dentro, volta:
Hão de vê-lo amanhã pelo
horizonte;
E ela não surgirá sobre algum
monte:
Levou-a de uma vez, quem a
levou.
E há quem suspenda a pérola
marinha,
Quem ache um mundo em
incógnito oceano,
Basta-lhe um tronco e em cima
dele um pano;
E há quem encontre a estrela
que buscou!
Cantava, como o azul profundo
canta,
Cantava, quando a primavera
ria,
Como canta a cigarra à luz do
dia.
E inda ao luar em noites de
verão:
Essa mulher era a canção
eterna;
Cantava, como canta toda
aurora:
Não sei se alguém, que a viu,
e a amou, a chora:
Eu? Chorar? Para quê? —
Chorava em vão.
Tivera-a um dia, acaso entre
os meus braços,
Como pomba a fremir presa a
dois laços,
Ai! de prazer eu choraria
então... —
Parecendo perder a razão
toda,
Dizia o louco: —
Eu vim também à boda... —
E logo viu abrir as férreas
grades
De um jardim grande e muito
povo entrar:
Lá dentro anjos de pé, rosais
em bando
Sobre estátuas de mármore
trepando,
E rotundas e a cruz de quando
em quando.
E a toda a gente andava a
perguntar:
— Se lá na extrema se estendia
o mar?... —
Moviam-se os ciprestes,
meneando
Lugubremente as frondes
devagar,
Mais devagar as frondes
levantando...
Dois pássaros cantando em
desafio
Na ramaria agora, agora no
ar,
Metiam mais um lento calafrio
Na tristeza indizível do
lugar.
E o louco: —
Sinto o odor de algas da praia:
E vem do fundo deste campo um
ruído,
Como de um mar por brisas
revolvido,
Antes que o Sul mais forte à
noite caia:
Agora a vaga raiva e se
ergue, e apruma,
Trepando em vão a bronca
penedia,
E numa rapidíssima agonia,
Há de cair em turbilhões de
espuma. —
E então tornava o louco a
perguntar:
— Se lá na extrema se estendia
o mar?...
A praia é branca? Há conchas
de ouro nela?
O alvo tapete de mimosa areia
Jamais poluiu de mortos a
procela:
Olhem: quando Ela sobre o
chão passeia,
O chão canta, o chão ri, o
chão gorjeia,
O chão... parece que Ela o
diviniza;
Cintila, como um céu, o chão
que pisa,
Em cada grão de pedra um, sol
ateia... —
Quando voltava o povo, a dor
no rosto,
Limpando o pó dos pés e o
suor da fronte,
O dia se afundava no
horizonte,
Erguia-se o luar do lado
oposto:
O louco era mais pálido
somente,
Como folha por cima da
corrente,
Trêmulo, e frio, —
e desvairado o olhar,
Sentado à pedra do degrau da
porta,
Dizendo a todos: —
Estaria morta?
Por que a deixam na barca e
só no mar?... —
UM CONTO DE BAUDELAIRE
Eram dois jovens, cada qual
mais belo:
Um tinha na alma o inferno
derretido,
Noutro havia nos olhos
buliçosos
A noite, e um céu de estrelas
suspendido.
Contudo parecia que brincava
Neles a graça da estação das
rosas:
Ria-se o moço tanto!... e
traz a moça
Tanto prazer nas formas
descuidosas!...
Iam num carro: era do Rohe...
lindíssimo!...
Os cavalos do Cabo, e o
cocheiro,
Um mulato brunido ao sol dos
trópicos,
Crendo esmagar aos pés o
mundo Inteiro.
— Para onde iremos? À Lagoa? À
Gávea?
A Andaraí? Ao Prado? Hoje há
corridas:
Dize. —
Para ir contigo a toda parte,
Quisera ter e repartir mil
vidas.
— Nada: nem Prado, nem o
resto... quero
Um dos prazeres que aos
demais prefiro.
—Manda o cocheiro, —
diz o esposo; e a esposa
Diz ao cocheiro: —
Em direção ao Tiro.
Sai da boca da moça um céu de
estrelas,
Quando o lábio sorri, ou mexe
ou fala,
E das roupas de seda
roçagante
Todo o perfume a primavera
exala.
De umas rendas alvíssimas
desponta
Em cuidado abandono um pé
mimoso,
Raio de luz, que leva ao sol
de um Éden...
Fresta do céu... e mais dizer
não ouso...
Chegam. —
Erra o marido o alvo: os tiros
Multiplica, mas nada. —
A linda esposa
Ri-se, galhofa, zomba do
desazo,
E às amigas não fala de outra
coisa.
Já chameja-lhe o rosto
afogueado
E à sombra das espessas
sobrancelhas,
Como dois astros, que orlam
duas nuvens,
Chispam seus olhos lúbricas
centelhas.
Não erra nunca, ou poucas
vezes. — Olham-na
Com amoroso quebro os jovens.
— Ela
Olha-os também assim:
julga que o pode:
Sabe que é moça, e muito
mais... que é bela.
Talvez somente desagrade ao
esposo
A mimosa e ligeira
travessura...
Há tanta gaza sobre os mimos
dela!...
Mescla tal pejo na sutil
soltura!...
Mas quem pudera não tremer,
notando
Aquele andar felino, e a
macieza
Daquele olhar tão lânguido,
que corta
Como aço de Milão ou de
Veneza!...
— Voltaremos, diz ela, sem ao
menos
Dares no alvo uma vez? de
novo ensaia: —
Riu-se: não tem o mar mais
alvas conchas,
Quando a onda arregaça e
mostra a praia.
Estava ali perto uma marmórea
estátua;
Era Diana. —
O esposo num sorriso
Envolvendo a mulher, lhe diz:
— Finjamos,
Que aquela estátua és tu, meu
paraíso.
Vamos pois ver se agora inda
erro o alvo!
Olha pra ali, rainha invicta
e ufana.
Parte o tiro; —
feriu; — esboroada,
Cai por terra a cabeça da
Diana.
— Beijo-te os pés, divina
criatura, —
Diz-lhe, —
e desata um rápido suspiro, —
Só tu, anjo de amor,
podias dar-me
Firmeza à mão... e tal
certeza ao tiro.
COMO SE VÊ NA AUSÊNCIA
De ver-te, pois, sabe disto,
Não perco nenhum ensejo,
Que te vejo, e que te hei
visto,
Mesmo quando não te vejo.
Sou como um cego, e perdido
Na densa treva, em que luto,
Em cada rumor escuto
O ranger do teu vestido.
Em cada pedra que piso,
Levanto a fronte aos espaços,
E ouço o bater dos teus
passos,
E a tua sombra diviso.
Se o vento os perfumes toma
Dos jardins, onde transito,
É do teu quarto o esquisito,
O doce, o suave aroma.
Se a brisa o ruído exala
Das asas de vozes cheias,
Ouço as frases que gorjeias,
Quando a tua boca fala.
Se alguém ri, ouço o teu
riso:
Nele cantar o céu ouço
Num auroral alvoroço
No seio de um paraíso.
Se palpo a tez melindrosa
De uma criança, decerto
És tu, que estás ali perto...
Foi tua mão cetinosa.
No dia em que te não vejo,
Ando a ver-te em toda parte,
Dá-me amor luz para olhar-te,
Corta a distância o desejo.
Não tenho fome, se penso
No meio de densa treva,
Que me surges, como Eva
Ao sol de um Éden imenso.
Nem tenho sede, se creio
Beber em jarra de prata
Todo o leite, e toda a nata,
Que há na pele do teu seio.
Não durmo, nem tenho sono
Se creio ver-te suspensa,
Como rainha num trono,
Na turba, que se condensa.
Vê que sinto, ao ter-te
perto,
Ouvindo mesmo os teus passos!
Quando te enleio em meus
braços,
É todo o céu que eu aperto...
A SOMBRA DE SUA MÃO
Saí de sua alcova a passo
lento e morno,
Onde a deixei velando
A irmãzinha doente: olhei
depois em torno,
O dia ia baixando:
O corredor escuso em meia
sombra estava,
No fim descia a escada:
Na minha mão direita a mão
dela eu levava
Ligeira e delicada;
A sombra da mão dela, a
sombra fugitiva.
Porque eu sentia ainda
Roçar-me a sua mão quente,
trêmula, viva,
A sua mão tão linda,
A sua mão tão branca, a sua
mão macia,
Suave e cetinosa,
Com unhas cor da aurora e luz
do meio dia
Nas hastes cor de rosa.
Quando só me senti, levei à
boca ardente
A minha mão gelada,
E aí de sua mão beijei
profundamente
A sombra perfumada...
ELA CHORANDO
I saw thee weep.
Byron — Hebrew Melodies
Sabei, astros gentis, sabei,
lindas auroras,
Sabei que ELA chorou!
Ó dor, pois ao teu dente
agudo, em poucas horas,
Seu mármore estalou?
Dos longos cílios seus, secos
a alguns instantes,
Vi pérolas rolar:
Eram seus olhos dois lagos
cheios, brilhantes
No rosto a transbordar.
Tremiam-lhe, no choro, os
beiços de criança:
Rubro o esbelto nariz,
Dava sombras de incêndio à
face... Esta mudança
Em ti, fui eu que a fiz?
Porque ELA sabe que é assim
inda mais bela,
Ou por orgulho enfim,
Foi com certo furor, ao vão
de uma janela,
Chorar, longe de mim.
Mas se estendo meu braço
aflito, e consolá-la
Procuro, foge... vai...
Que pode o argueiro contra o
raio, quando estala,
Ziguezagueia e cai?
Logo depois voltou com rosto
de viúva,
Seria, triste, porém:
Trazia, como um céu lavado
pela chuva,
A face de cecém.
E vinha, como sai a aurora da
orvalhada,
Das ondas o luar:
E vinha, como sai do lago, a
haste inclinada.
A flor do nenúfar...
Eu, que adoro esta esfinge,
eu, que amo este segredo,
Vendo-a um dia a chorar,
Fiquei, como quem fica
olhando absorto e quedo,
A imensidão do mar.
Fiquei, como quem vê, quando
ninguém o espera
O abismo aos pés, no chão...
O mármore partira, e tinha
uma cratera,
E o pranto de um vulcão...
Oh! fui eu o Moisés que
levantou a vara,
E o penedo tocou:
O penedo cedeu: a água
arrebentara...
Essa mulher chorou!...
Estas lágrimas de hoje, as
lágrimas choradas
Perder-se-iam no ar,
Como no céu da noite as
estrelas douradas,
Que se ergueram do mar?
Não... não... —
Eu as colhi, em meu amor envoltas,
Céu em pedaços... —
não!...
Não se perderam, não; —
aqui as tenho soltas
Dentro em meu coração
E a lágrima gentil, que cada
cílio embala,
Choraria por mim?
Chorarias por mim, ó lágrima?
Sim! fala:
Dize, ó lágrima: sim?...
Deuses, se ELA chorou por
mim, eu desafio
Vosso eterno poder:
De vós, de vossos céus, de vossos
mundos, — rio:
Não troco o meu prazer.
Ela chorou por mim!... Ó
oceano, que choras,
Tormenta, que passou,
Sóis, que passais, sabei que
a fiz chorar: auroras,
ELA por mim chorou!
Ser chorado por ELA!... Oh!
quem já foi chorado
Assim com tanta dor?
Eu sou, ó Madalena, o Cristo
consolado
Em lágrimas de amor.
Ó natureza, ó Deus, ó deuses;
— Natureza,
Ó flanco maternal,
Que a lágrima produz, que
produz a beleza,
Luz, que colora o vale,
Eu te agradeço o ter nascido
do teu seio:
Eu sei o que é gozar:
De dentro dela mesmo a
lágrima me veio,
Como o sol vem do mar.
Ó primavera, eu tenho em mim
as tuas flores:
Ó sol, ó céu, ouvi:
ELA chorou por mim:
deuses, das suas dores
O meu amor teci.
Eu sei que ELA me ama: —
ama-me, eu sei agora...
Quando chega o arrebol,
É o grande cisne branco asas
abrindo, e chora...
E a festa aí vem do sol.
PATAS DE TIGRE
Ah! se algum dia sentisse
A sombra de tua mão,
Como de ave, que fugisse,
Em meus cabelos —
então
Pudera dizer-te: —
Filha,
Morrer... pois agora..
sim!...
Que à sombra da mancenilha
Tem-se igual gozo e igual
fim.
Mas... tua mão é um deserto
Sem cisterna, água, e palmar:
Crê-se isso tudo bem perto:
Anda se... e nada. É cansar.
Tuas duas mãos estão cheias
De mil carícias: pois bem,
O areal tem menos areias,
E menos tigres também...
Vós, ó tigres de Bengala;
Vós, jaguares de Ceilão,
Vossa pele não iguala
À pele de sua mão,
Halituosa, suave,
Macia, cheirando bem:
Mas... coisa muito mais
grave!
E nem nas unhas. —
Já veem?
Mas... filha, se queres,
lança
As unhas de tua mão...
Anda, não sejas criança,
Mata-me. Eu peço-te em vão?
Eu quero sentir ao menos
A felina maciez
Desses dedinhos pequenos,
Pequenos tigres talvez.
Como estiletes buídos
Finca-os em meu coração:
E para uns restos partidos
Abre em teu colo um caixão,
E mete-os lá. —
Depois disto,
Se vires que estou a arfar,
Um dos milagres de Cristo
Pudeste tu renovar...
Mas qual... Orgulho,
esperteza
De um belo tigre real,
Que até desdenha da presa...
E até não quer fazer mal!...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...