A
ETERNA VÊNUS
Quando,
nos ricos panteões, procuras
Mármores
vivos de mulher, ao vê-los,
Não
sentes inda o susto de perdê-los,
Oh!
mágoa! nas catástrofes futuras?
O
que Atenas legou de ideais modelos,
Tipo
de raça, em grandes formosuras,
Quando
nos dava as suas criaturas,
Envoltas
só no véu dos seus cabelos!...
Como
o céu e o seu mar, guarda no menos
Trabalhado
pedaço o mais completo
Que
a arte tem em pentélicos serenos;
E
a flor nos deu das filhas de Japeto,
Perfeita,
eterna, e imaculada em Vênus...
TRAQUINAS
Com
vestido de branca musselina,
A
farta trança negra derreada,
Sem
uma joia, ou brinco, ou flor, sem nada,
Era
de uma riqueza peregrina.
Tinha
a idade da aurora essa menina,
Magra
e forte, serena e descuidada;
Cada
pé numa concha nacarada...
Creras,
ao vê-la débil e franzina.
Na
fronte riam desmaiadas cores;
Dava
de um anjo a tímida lembrança...
Das
asas dela ouviam-se rumores.
Como
uma borboleta que não cansa,
Tornava
a casa num vergel de flores...
Lembrava
ainda a virginal criança.
SUNT ANIMAE RERUM
Estrelas,
que loucura e garridice
As
vossas danças esta noite têm?!...
E
quem, há muito tempo, se não risse,
Vendo-vos
rir, deitara a rir também.
Arroios
desgrenhados de doidice,
Por
entre seixos, que buscais além?
Beijam-se
os velhos troncos!... E há quem visse
Fremindo
um lírio ao pé de uma cecém!...
A
noite é um ninho; o amor uma doçura;
E
quando a brisa pelo azul murmura,
Soluça
o bosque... e há beijos pelo vale!...
Deuses
e deusas turbulentamente
Passam
a rir no laranjal florente...
Ou
chora... ouvis?... ou chora o laranjal?...
QUE VOS
DARIA?...
Se
tiverdes, um dia, um capricho, Senhora,
Um
capricho, um delírio, uma vontade, enfim,
Não
exijais o carro azul, que monta a aurora,
Nem
da estrela da tarde o plaustro de marfim.
Nem
o mar, que murmura e aí vai por mar em fora,
Nem
o céu doutros céus, elo de céus sem fim;
Que
se isto fosse meu, já vosso há muito fora,
Fora
vosso o que é grande e anda em torno de mim...
Mostrasse
num só gesto ingênuo um só desejo...
O
universo, que vejo, e os outros, que não vejo,
Sofreriam
por vós vosso último desdém.
Que
faríeis dos sóis, grãos vis de areias de ouro?
Mulher,
pede-me um beijo e verás o tesouro
Que
um beijo encerra e o amor que um coração contém.
QUAND MÊME
Minha
alma anda a voar pelo ambiente
Com
o adejo sem fim da mariposa,
Que
a flor do paraíso em torno sente,
Mas
roubar um aroma à flor não ousa.
Ela
quer... quer, anseia, e não repousa,
Sem
saber uma vez, uma somente,
Que
tu entendes seu amor ardente,
E
que dele te orgulhas qualquer coisa.
Podem
outros, que não te entendem tanto,
Julgar
que não mereces o meu canto,
Que
é demais ver-te sol doirando azuis,
Que
é meu amor o equívoco de uma hora:
Que
importa? Eu vejo em ti meu céu, embora
Creiam-te
o lume errante dos pauis...
ILUMINAÇÃO
INTERIOR
Fitas
de ouro bordando o morro e a encosta!...
Veio
argênteo que a cinge, e ondula e bolha!...
Ígneas
rosas que o céu sobre ele esfolha!...
E
ante isso a alcova, a um claro-escuro exposta.
Tens
medo? O amor deste silêncio gosta...
Que
suor frio a tua fronte molha!...
Encosta
a boca à minha boca, encosta...
Oh!
que o beijo murmure apenas, olha...
Baixo,
carícias; ouvem-nos fazê-las:
Põe
o dedo de rosa ao lábio, aurora;
Deuses
e sóis, passai, passai, sem vê-las.
Luz,
fica à porta, espera-nos lá fora:
Rolai
ao fundo de minha alma, estrelas,
Onde
ela está, onde a festejo agora.
ESCRÍNIO
Eu
imagino pérolas perfeitas,
Que
inda dormem nos mares do Oriente,
E
diamantes de esplêndidas facetas
A
rir nos seios do Brasil ardente.
Veludo
cróceo, deslumbrante, quente,
Cheio
da alma odorosa das violetas;
Ouro,
piropo, e as rútilas palhetas
De
artista raro, grande, onipotente...
Cinzel
de Fídias, tinta de Murillo
Para
uma joia lúcida e sonora,
Para
um escrínio de divino estilo,
Onde
a guardasse, onde, entre pasmo e assombro,
Ninguém
a visse um dia pôr de fora
A
asa que eu lhe conheço em cada ombro.
Che
la diritta via era smarrita.
Dante —
Inferno
Ela
vendo-se só comigo, teve medo.
Estávamos
num bosque à noite: o escuro intenso,
Apesar
do luar belíssimo, o arvoredo
Lançava
em torno, — um muro em ruínas suspenso.
Na
relva aberta, aos pés, havia o olho de um tredo,
Um
carreiro assassino, a iludir-nos propenso:
Atrás
da serra o sol caía então mais cedo;
Ao
meu lado tremia a folha, ou ela, eu penso.
Vinham
três ébrios dando urros, enchendo o espaço
De
gritos; os perfis de quem foge à procela,
Que
ruma; uma mulher bufando de cansaço.
O
vento uivando: — ao longe, ao menos à janela
Da
casa, a luz a rir? não ria: e ela ao meu braço
A
ter terror de mim!... e eu a ter terror dela...
Amor,
pois, é a esplêndida loucura,
E
a miséria de um sol que nos invade?
Caiu
alguém aos pés da formosura
Que
lhe não deixe aos pés razão, vontade?
Este
delírio vem da eternidade,
Vem
de mais longe, eu sei: — quem o procura
Acha-o
mais velho do que Deus: quem há de
Fugir
do mal da vida porventura?
E
o amor é o mal que acaba em paraíso;
E
para dar-nos céus num só lampejo
Basta-lhe um
pouco, um nada é-lhe preciso:
De
sonhos de ouro e luz calça o desejo:
E
então, de dia, em rosa abre o seu riso,
E
em ampla estrela, à noite, abre o seu beijo...
TRIUNFO
Deixo
as torcidas, hórridas carrancas
Da
inveja e do ódio, — um vesgo, outra impotente, —
E
encontro ao ver-te (ó deuses bons!) em frente
Abertos,
como largas asas brancas,
Teu
santo olhar, o teu sorrir clemente:
À
sombra deles que alegria franca!
E
à mão, como ave tímida e fremente,
Meu
pobre coração à dor arrancas.
Bebo
o céu com seus sóis em ti num beijo;
Eu
acho em ti o que amo e o que desejo;
Tu
achas tudo quanto em mim esperas...
E
em minha audácia, em meu orgulho dantes,
Após
meus grandes sonhos triunfantes,
Marcho
ao hino das rútilas quimeras.
A
INVESTIDURA
Quando
o grupo invencível dos gigantes,
Ao
som da lira harmônica tangida
Movendo
os rubros, triunfais descantes,
Parou
na minha incógnita guarida,
E
a púrpura de estrelas guarnecida,
E
laços de ouro, e rendas deslumbrantes,
Me
fez vestir... tremi e a minha vida,
Não
maior, não mais calma a vi, que dantes.
Então
roncaram por meus pés as setas;
E
ouvindo urrar aos hinos de vitória
A
plebe vil das ambições inquietas,
Eu
sopesava as páginas da história,
Rijas,
de bronze, e lendo a vida aos poetas,
Ia-os
seguindo à apoteose e à glória.
IN FIDE
O
lindo barco da gentil rainha,
De
estrelas a granel colmado e ufano,
As
sonorosas vagas do oceano
Com
proa de ouro retalhando vinha,
E,
como um lírio, à flor d’água marinha
Abria
as vastas pétalas de pano:
De
Nereidas azuis um grupo insano
Em
torno dele canta e redemoinha.
Como
em tela de artista, a recortada
Montanha,
envolta em luz do sol mais puro,
Enchia
o fundo, túmida, aprumada.
E
eu a esperava em terra... e tão seguro!...
Ai!
e ainda te espero (e em vão!) amada
Rainha,
ó Glória, ó Ânsia do futuro...
EM
PLENO AZUL
Voa,
meu galeão fantástico; galeras
Companheiras,
abri as deslumbrantes velas;
Rumo
ao país azul e ideal das quimeras,
Temporais,
vede-os ir; vede-os ir, ó procelas.
Praias
de jalde, e de ouro, e nácar tendes belas
Ilhas,
que vejo ao longe!... E eu quero-vos deveras;
Aproaremos
a uma onde as doidas querelas
Rujam
dos Imortais, repartindo as esferas.
Deixo-te,
terra, velha eivada de pesares,
Que
a invisível bordão já trêmula se arrima;
Alga
podre do céu, morta estrela dos ares;
Destroço
vão de um mundo, o teu fim se aproxima:
Nutriste
vermes só aos seios seculares...
Foge,
meu galeão; acima, acima, acima...
(A Victor Meirelles)
Céu
transparente, azul, profundo, luminoso;
Montanhas
longe, encima, à esquerda, empoeiradas
De
luz úmida e branca; o oceano majestoso
À
direita, em miniatura; as vagas aniladas
Coalham
naus de Cabral; mexem-se inda ancoradas;
A
praia encurva o colo ardente e gracioso;
Fulge
a concha na areia a cintilar; grupadas
As
piteiras em flor dão ao quadro um repouso.
Serpeja
a liana a rir; a mata se condensa,
Cai
no meio da tela: um povo estranho a eriça;
Sobre
o altar tosco pau ergue-se em cruz imensa.
Da
armada a gente se ajoelha; a luz golfa maciça
Sobre
a clareira; e um frade, ao ar, que a selva incensa,
Nas
terras do Brasil reza a primeira missa.
A CRISÁLIDA
(A Capistrano de Abreu)
Cai
das pedras a fonte: iria o chamalote
D’água
arrufada ao sol — a joia do seu manto;
E
uma mulher, quebrando o belo talhe, entanto
Parece
que procura apanhá-lo num pote.
A
atitude em que está levanta-lhe o saiote,
E
desce-lhe o corpete; é vê-la assim um encanto;
Tem
a moleza e o ardor da barra de ouro, enquanto
Coalha
na lingoteira o fúlvido lingote.
São
amplos os quadris; os dois pequenos peitos
Têm
brancuras e azuis, são duros e perfeitos;
Sai
do colo o fulgor da porcelana fina.
Crisálida
ideal, donde irrompe a Frineia,
Tem
a força que doma, a graça que fascina...
E
na carne a rugir panteras de alcateia...
SANGUÍNEA
(A Alberto de Oliveira)
Longe...
vasto horizonte retalhado
De
serras cor de um glauco-azul, distantes;
Brumas
por cima, como véus flutuantes;
Perto...
o fragor das músicas do prado.
O
acre, o intenso bálsamo exalado
Da
mata, onde andam Faunos, como dantes;
Rochedos
ideais, e as espumantes
Águas
do rio às cristas pendurado.
Um
cheiro bom das coisas, que embriaga;
A
luz que sobe, sobe, embebe, alaga
O
azul enorme; a gárrula manhã,
Correndo a ouro e pérolas as nuvens...
Ora!... Deus plagiando um quadro a Rubens?!...
Quando isto vir, o que dirá Rembrandt?!
GRAVURA
MISTERIOSA
Por
quê? Não sei: mas tu entras nesta gravura.
Olha.
— Um torso auroral de deusa, o oval nitente
Da
alva barriga, o incêndio, o alarido, a fartura
Da
trança, em que ela esconde o que tem de serpente.
Há
na tela, em cada ângulo, o esboço inteligente
De
um sileno, os dois pés de cabra, a catadura
Impossível,
grotesca e austera, impertinente
E
lasciva, obliquando o olhar à formosura.
Mato;
anões; grifos maus entre enigmas; orgias
De
quimeras floreando uma banalidade;
O
infinito a fugir por baixo de arcarias
Finas,
atorçalando o vago e a obscuridade...
E
eu quantas vezes vi que tu dali saías,
Como
um silfo atravessa o aranhol de uma grade!
A FONTE QUE EXTASIA
(A Arthur Azevedo)
Por
soberbos degraus de mármore luzente
Sobe-se
ao chafariz de bronze; e despenhada
Em
pérolas sutis e em grãos de ouro a corrente
D’água
cai como gaza apenas arrufada.
De
um lado a embebe, a doira, a iria o sol cadente,
E
doutro a fere a sombra aérea e desmaiada,
Que
vem de uns véus de opala, em que anda envolto o ambiente...
Afoga-se
em silêncio a abóbada azulada.
Duas
pombas irmãs na nítida brancura,
Tendo
os pés cor-de-rosa à borda da bacia,
Bebem,
rugando o colo: — enquanto a água murmura,
E
um amor de metal, que encima o aquário, espia...
Uma
linda mulher, que a jarra encher procura,
Deixa
que ela transborde e ante o amor se extasia.
PAISAGEM NOS ALPES
(A Garcia Redondo)
É
noite. — Invade a tela a luz azinhavrada.
Água
larga, folheada em mica iriante e aço,
Vem
de longe: após lambe astrágalos da arcada,
Que
uma ponte romana ergue aos ombros no espaço.
A
lua, como uma ave imensa depenada,
Paira
sobre a torrente; em monte enterra o braço
Na
água, que foge, espuma, urra, ulula entalada,
Enquanto
a um tempo a envolve em sombra de espinhaço.
O
leito é abrupto, vasto, os ângulos cosidos
De
raquítica relva, e o vento, que murmura,
Anda
no pinheiral, vê-se aos ramos torcidos.
Sobre
a ponte um chalé das rochas se pendura,
E
ouve-se um grande cão enchendo o ar de ladridos,
E
um lobo a uivar, que surge a meio da espessura.
O
pai saiu: a mãe sai, e o filhinho deixa
No
berço, um anjo rubro em céu do Espanholeto;
E
vai serena e forte, e vai sem uma queixa,
Com
seu amor, que é de ódio e de ternura feito.
A
um Terra-Nova escuro, um cão à casa afeito,
Fia
a flor dessa carne, e o ouro dessa madeixa:
Ai!
de quem nesse lírio, o seu tesouro, mexa;
Ai!
de quem se aproxime, estranho e alheio, ao leito!
E
enquanto dorme e ri, e ri e dorme a criança,
Como
em torno de um barco o mar as vagas lança,
Cerca-a
do seu olhar, e interroga-a... O que quer?...
E
o paternal carinho o engrandece e ilumina,
Como
auréola ardente em cabeça divina,
Como
em virgem, que sonha, um sonho de mulher...
UM TIGRE AO LUAR
(A Felix Ferreira)
Cai
no bosque o luar... Como o luar é lindo!...
A
abóbada do céu tem os leites da opala.
Um
cheiro penetrante e doce a mata exala,
Nuns
fantásticos véus os ombros encobrindo.
No
silêncio, em que jaz, contudo está-se ouvindo
A
meiga voz, a voz de amor, com que ela fala;
A
sombra, que soluça, a luz num beijo embala...
Desce
um vago tremor do firmamento infindo.
Como
numa aquarela, escoam-se os caminhos...
Há
passos no moital... há barulho nos ninhos...
Há
Dríades na relva... há deuses pelo ar...
Um
sabiá rompe o canto à beira da floresta,
Enquanto
um tigre vem solenemente à festa,
E
escuta-o sob o pálio aberto do luar...
RUBENS
Um
conde italiano, moço e airoso,
Enfim
suspende o toque da guitarra;
E
inda retalha a esplêndida fanfarra
O
ambiente morno, lúbrico, cheiroso.
Um
negro esbelto, fino e musculoso,
Vermiculada
de ouro argêntea jarra
Sustém
na salva; impertinente gozo
Lança
ao vestido da duquesa a garra.
Pinta
Rubens a eleita: — aí vem, aí passa;
Olha-a,
erguido o pincel; passou; — mistura
Nova
tinta; compõe: a doma, a enlaça.
Palmas
ao mestre; a triunfal pintura
Venceu:
de hoje em diante à eterna graça
Junta
o poema da cor a formosura.
(A Arthur Barreiros)
Tintinam
taças dos cristais mais finos
Da
Boêmia no mármore da mesa;
Fervem
ainda os vinhos purpurinos
Das
jarras de ouro; a sala esplende acesa.
Principescos
senhores, femininos
Rostos,
que fulgem de ideal beleza,
Juntos,
e em vários grupos peregrinos,
Conversam:
canta entanto uma duquesa.
Enquanto
mãos de artista e de fidalgo
Tiram
de um cravo a música escolhida,
Brincam
sobre o tapete um negro e um galgo.
A
sala é um céu, um firmamento a vida...
E
entre eles, — grave a pálida figura, —
Van-Dyck
estuda uns toques de pintura.
ALBERTO
DURER
Mas...
por que Durer dava a eternidade
Do
seu nome imortal, com tanto esmero,
Para
salvar do olvido a fealdade,
Como
que diz: eu devo, eu posso, eu quero?
Dele
se ouvia: — O tempo é meu, quem há de
Erguer
o tempo contra mim? — E o Homero,
E
o Hesíodo da cor, tremendo e fero,
Enchia
o monstruoso de verdade.
E
viva horrivelmente a natureza
Se
estorcia na tela e na gravura
Do
grande artista, a um fogo enorme acesa.
Quem
nos explica pois essa loucura,
E
a causa dessa intérmina tristeza?
Que
mal lhe fez, um dia, a formosura?...
OVÍDIO
Com
que dor tu deixaste Roma, e em Roma
O
coração, que em ti foi tudo, ó poeta!
A
glória ia a embalar-te a vida inquieta,
E
um belo sol de amor, que a doira, a soma.
Teu
plectro a Orfeu os sons mais doces toma;
Tem
o teu surto incircunscrita meta;
A
inveja, um cão sem asas, jamais doma
A
uma águia o voo, a um gênio obra que enceta.
Ao
exílio embora o ódio te sagra, o exílio
Dá
mais doçura ao hexâmetro latino;
Há
todo um campo em flor num teu idílio.
Na
dor, que em ti pranteia, alvora um hino;
Fulge
a lágrima dele em cílio e cílio;
Cantar,
sofrer, ser deus, foi teu destino.
GRAVURA DE BOTTICELLI
(A Luiz Murat)
Sobe
de um vão tonilho ao estrondear de vozes,
Que
urram, rangem mordendo a lôbrega floresta:
Na
clâmide romana, e sob os louros resta
Parado
o mantuano ante as bestas ferozes.
A
púrpura, que rola até aos pés, empresta
Uma
austera tristeza ao companheiro; atrozes
Gritos
golpeando o ar, que a noite em pranto infesta,
Dão-lhes
ao rosto a cor das lívidas cloroses.
Pragueja,
ulula o horror do desesperado eterno:
Sombras
em multidões regougam, rugem... O inferno
Entornou
sobre a tela o escopro de um gigante.
Embalde!...
A tela, a pedra, o bronze não aguenta
Os
sóis negros chispando em meio da tormenta,
Em
que andam gênio, amor, e as cóleras de Dante...
NÚPCIAS DE ARTAXERXES
(A Valentim Magalhães)
O
sândalo, que enerva, o nardo, que embriaga,
Nas
caçoulas queimado em fumo se desata,
Que
se enrosca em festões na vasta colunata;
A
harpa curva estremece à fina mão que a afaga.
Dentre
as colunas vê-se o azul, que em luz se alaga,
Tamareiras
gentis, nopais de sombra grata:
O
alto estrado real de mármore e de prata
Mancha
um jorro de sol, como uma enorme chaga.
Artaxerxes
de pé ao lado da judia
Tem
o prazer da fera, — uma calma sombria. —
Dá
tons de sangue a luz à festa nupcial.
Da
África e da Ásia a força e o orgulho aos pés avista:
E
o seu olhar, que lambe a esplêndida conquista,
Darda
em torno a algidez aguda do punhal.
UM
CRISTO ALEMÃO
Há
um Cristo alemão de um cunho peregrino:
Fronte
espaçosa sob uma cabeça loura,
Escrínio
que o ideal puríssimo entesoura,
Barba
bem penteada, e rosto feminino,
Longo
cílio, que adoça a luz do olhar divino,
Pele
branca, que o sol do Oriente apenas doura,
Uma
boca gentil, que para o beijo fora,
Se
ela não fora para outro melhor destino.
Nada
altera esse gesto eterno de bondade;
Guarda
ainda a beleza, a graça, a majestade,
Entre
dois homens vis, nu, em sangue, na cruz.
Gosto
deste ideal: a dor mais o levanta.
Por
seu suplício, por sua obra grande e santa...
Merecia
ser Deus o pálido Jesus.
A
APANHADEIRA DE CONCHAS
Fantástica
explosão de ouro e pedrarias!...
Rendilhados
Kremlins em chama... O sol declina...
Soprando
torto búzio, impa o vento, e na fina
Areia
arrasta à dança as nereidas bravias.
Recortam-se
num fundo azul as serranias,
E
os navios aquém arfam, e os ilumina,
Esculpindo-os
no ar, a tarde purpurina,
Na
nota escura das ígneas oleografias.
Pobre
mulher na praia, acaso, neste instante,
Colhendo
conchas, só, — ouvindo a cantilena
Das
vagas, com um sorriso agarrado ao semblante,
Como
a alga ao seixo, alvar, vil, mesquinha, pequena,
Pelo
oceano estendendo a sombra de um gigante,
Dava
um toque de vida humana à vasta cena.
(Ao paisagista Décio
Freire)
Há nas serras, em arco, a forma da moldura
Que fecha em roda a vasta e límpida aquarela:
O claro-escuro é bom; tem perspectiva a tela;
Vibram toques de luz no céu de tal doçura
Que a mesma noite ri e aos astros se mistura;
Dorme-lhe o oceano aos pés, como o leão da novela;
Ao terral, que chegou, a água apenas murmura;
Duas barcas de pesca arfam por cima dela.
Da indolência em que a vaga embala-se e flutua;
Como um corcel do mar, que o dorso de repente
Dardo em chama feriu — salta, avança, recua...
Do alto viso do monte, entre árvores, em frente,
Fisga-lhe as flechas de ouro a caçadora nua,
E ao largo-verde flanco as torce lentamente...
Do crespo mar azul brancas gaivotas
Voam — de leite e neve o céu manchando,
E vão abrindo às regiões remotas
As asas, em silêncio, à tarde, e em bando.
Depois se perdem pelo espaço ignotas,
O ninho das estrelas procurando:
Cerras os cílios, com teu dedo notas
Que elas vêm outra vez o azul furando.
Uma na vaga buliçosa dorme,
Uma revoa em cima, outra mais baixo...
E ronca o abismo do oceano enorme...
Cai o sol, como já queimado facho...
Do lado oposto espia a noite informe...
Tu me perguntas se isto é belo?... e eu acho...
Dorme a cidade. A noite à fronte dela assenta
O áureo resplendor de estrelas, com que c’roa
Os mártires também; a brisa sonolenta
Perpassa, e ouve-se quase o cair da garoa.
À pesca. — Enche a maré ruflando: esta hora é boa.
A vaga oscila, vem, cai, soluça, rebenta,
Como um beijo de amor na areia, em doce e lenta
Carícia: a água festeja a alígera canoa.
O pescador então, fincando o remo, lança
O pássaro marinho à vaga azul, que range,
Ferve: canta-lhe após a rir uma esperança.
Mas súbito pegão, que as asas foscas tange,
Nos anéis de uma serpe invisível, que avança,
Vibra-lhe a lua, como ensanguentado alfanje...
PINTURA A FRESCO
Como um cisne pousado na lagoa,
Por onde as asas cor de neve estende,
E que, se ao fundo azul do céu não voa,
O fundo azul das mansas águas fende...
Assim a fina, a quérula canoa,
Que lado a lado as duas velas prende,
Talha, como estilete, o mar com a proa,
Que todo em ouro e pérolas se acende.
Sentado ao leme o canoeiro aspira
A acre aragem, que vem como uma lira
Cantar-lhe à marcha doce e preguiçosa.
Fundem morros e céus num arabesco...
E o quadro assim ao sol parece um fresco
Que um Rubens pinta ouvindo um Cimarosa.
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