A VÊNUS
MISTERIOSA
Onde
se perde aquela gente toda?
Agarrados
às suas longas tranças
Andam
velhos, arrastam-se crianças,
E
a mocidade rola ebriada e doida.
Do
céu descem-lhe pássaros em boda,
Cantam,
metendo-a em luxuriantes danças:
E
mudas, baixas, tímidas e mansas
O
chão as feras lambem-lhe de roda.
Não
há carne que em nós não chore e grite
Por
seu corpo, onde estão sempre em festejo
Bocas
de auroras, rubras de apetite.
Vênus
mais Vênus, sem mostrar mais pejo,
Dá-nos
a fome, acende-a, e não permite
Pôr
no pó, que ergue aos pés, fugindo, um beijo!...
O ETERNO ENGANO
Quantas
vezes passar fremindo apanho
De
um ser, que não se vê, a voz ardente,
Como
o vento carrega uma semente,
Que há de
florir bem cedo, achando amanho:
Ouve-a
também teu coração contente;
Corre
em teu sangue um murmúrio estranho;
Metes
teu corpo em luz do céu num banho;
Tua
alma a sombra dela ao perto sente
Envolver-te
num beijo. — A flor que cheira,
Pelo
perfume é que se denuncia;
Tu
colhes, sem mais ver, logo a primeira;
Era
a primeira que no vale abria;
A
mais branca, a melhor guarda-a a balseira,
Lírio
igual a ti mesma, e igual ao dia...
TO WISH
Minha
tristeza é como a noite funda
Lançada
sobre os astros turbulentos,
Com
que o céu todo se enche, alastra, inunda
Ao
murmúrio lúbrico dos ventos,
Como
sobre esperança moribunda,
O
lençol, que se atira aos lazarentos,
Como
em muros de velhos monumentos
Do
tempo o musgo e a sombra vagabunda.
E
essa dor vaga, amplíssima, infinita,
Dentro
de mim, fora de mim se agita,
Como
um mar sobre trevas recostado.
Que
sol erguido pelo espaço infindo
Dera-me
a luz... a luz de um rosto lindo...
Melhor
do que isso, a luz de um rosto amado?...
LATONA
A
mãe tem medo: ouve-se distante
O
perlar argentino da voz sua;
E
olho da sala vagamente a rua,
Enquanto
a sinto longe alegre e errante.
Manda-me
os filhos um a um adiante:
Depois
vem ela: voa? anda? flutua?
Não
sei. — Vem bela, pálida, radiante,
Como
depois que a noite se acentua,
E
o ouro o céu vermicula em vasta zona,
Que
o azul em tons mais lânguidos desmaia...
E
no meio da luz, que ri, Latona
Frisa
o monte, inflamando o mar e a praia...
Assim
vem ela, assim vem a Madona,
Bem
como a luz entre as estrelas raia...
PELA
TARDE
...quoedam
flere voluptas...
OVÍDIO
Num
assento de mármore, que doura
O
tempo, e o sol, que vai passando, olhá-la
É
ver a tarde triste e cismadora
Diante
de um verde, que flutua e a embala.
Velho
raio de luz desce a animá-la:
É
a brancura numa sombra loura,
Como
num quadro, cujo fundo fora
Pensado
adrede por quem quer pintá-la.
Arfa
o silêncio no seu rosto lindo,
Enquanto
os olhos seus pairam pregados
No
azul, mais forte sempre, o céu tingindo.
E
ao barulho dos leques espalmados,
Vê,
sem ver, os pavões, que vão subindo
Dois
a dois, beira a beira dos telhados...
O MADRIGAL DAS ROSAS
Quando
em grupo, enlaçada, e de joelhos
A
chusma triunfal das rosas toma
Ares
de quem à luz quer dar conselhos,
Num
barulho sem fim de cor e aroma
Salta
sobre os minúsculos artelhos,
E
com a fronte a arder da acesa coma,
Cobrindo
rostos bons, gentis, vermelhos,
Dos varandins
pela esmeralda assoma:
Dizem
todas ao sol com dor, com pejo,
Num
madrigal, que o amor delas resume,
Que
ele lhes leva a vida e o olor num beijo;
Meio a rir, meio em iras de ciúme,
Responde o sol, golpeado de um desejo:
— Dou-lhes o beijo, e negam-me o perfume?...
NO
LEITO
Como
estátua de mármore, na cama
Feita
de linho, e sobre o nevoeiro
De
rendas, em que rola o travesseiro,
Que
luar doce o corpo teu derrama.
Azula-o
brandamente etérea chama,
Molha-o
a luz do teu olhar fagueiro;
E
o sol, nos teus dois sóis prisioneiro,
Embalde
ir para o céu forceja e clama.
Deixa-o
ir. — Fica tu serena e casta
No
calor desta alcova pequenina,
Que
a imensa curva azul talvez mais vasta.
Deixa-me
após na luz que me fascina,
Deste
céu em que estás, e que me basta,
Cair
morto aos teus pés, mulher divina.
UMA
PRINCESA ANTIGA
Tem
a grandeza antiga e peregrina
Das
mulheres da Bíblia, e da Odisseia:
Anda,
fala, aparece... e se imagina
Ou
Palas ou Judite ou Diana ou Réa.
Mas
quando ao campo os passos seus destina,
Sua
estatura avulta: — então é Déa:
Jove,
para a espiar da azul cortina,
Deixa
os deuses no Olimpo em assembleia.
Juno
descora... E ela no cercado,
Numa
das mãos erguendo os seus vestidos,
Com
outra lança às aves pão cortado,
E
vê longe, entre os capins crescidos,
O
velho boi de Homero, um boi malhado,
De
passo tardo e chifres retorcidos.
OUVINDO-A
Tu
movendo a cabeça, a boca, o braço,
Como
a vidente de um antigo rito,
Dizes
que mundos luminosos faço...
E
então nos olhos teus meus olhos fito.
Do
pasmo, com que em ti me prendo e enlaço,
Zombas
com gesto irônico, esquisito,
E
sinto que por ti me foge o espaço,
E
rolam sóis, e cava-se o infinito.
E
enquanto arranjas essa melopeia,
Enfiando
uma ideia noutra ideia,
Enquanto
esses castelos de ouro arrumas,
Eu
vou boiando em tua voz sonora,
Como
nau, pano ao vento, azuis em fora,
Entre
as flores de prata das espumas.
SICUT SERPENS
Tens
da virgem cristã a graça e o pejo,
Que
de um certo desgarre não te exime;
E
uma tristeza de mulher sublime,
Junto
à lascívia dum brutal desejo.
És
bela... e pura, creio-te, se vejo
Teu
rosto aonde a palidez se imprime;
E
o teu corpo, que dobra, como um vime,
Que
dobra mesmo ao hálito de um beijo...
És
pura, se te vejo de repente,
Se
não me vem de súbito a lembrança
Da
luz dos olhos teus molhada e quente,
Que
como serpe, sai do ninho, e avança,
E
em roscas de ouro luminoso — a gente
Enrola
no teu corpo de criança.
NATUREZA
INTERROGADA
Rosas,
jasmins, bons dias; açucenas,
Festas
e sóis; rir, minhas feiticeiras!
Rolai,
brincai, voejai... mas vede... asneiras
Em
cima delas, não, gentis falenas.
Alegres
todas, rancho de pequenas!...
Margaridas,
corimbos das balseiras,
Grotais
do bosque, relva das clareiras,
Luz
perfumada das manhãs serenas,
Sombra
doce do trêmulo arvoredo,
Rio
a cantar às costas do fraguedo,
Veiga
e céu, ninhos, pássaros, rosais...
Rosais,
pássaros, ninhos, céus e veiga,
Sede-me
bons, falai: quando ela chega,
Que
faz ela? que diz?... que diz? que faz?
PERDÃO
AOS DEUSES
Castas
brancuras virginais que cria
A
terra, e que a mulher, o lírio e a rosa
Têm
em si, são a sombra gloriosa
Do
clarão que é teu peplo, e em ti radia...
Se
a luz coalhasse, como tu seria
Quente,
rija, brilhante e cetinosa:
Se
de um bloco de luz branca e cheirosa
Deus
te não fez... então não te fazia.
Perdoo
a esse, e aos mais, o esquecimento
De
terem feito um céu sem pensamento...
Se
algum respeito mesmo inda revelo
É
que o último golpe de martelo,
Que
tinha de acabar o firmamento,
Pôde
só acabar teu rosto belo.
AMAZONA
Oh!
Era uma amazona verdadeira,
Quando
montava o seu gentil cavalo:
Vinha-lhe
em luz ao rosto o fundo abalo,
Que
ia beber na rápida carreira!
Chapéu
preto emplumado; a cabeleira
Lá
dentro, como um sol dentro de um valo:
Um
chicotinho só para guiá-lo...
Antes
raio de luz na mão faceira.
Buscava
ao longe as veigas mais secretas:
Acordava
ao galope a gruta rouca,
Olhavam-na
as estrelas inquietas...
E
ela voava assim como uma louca,
Dentro
dos olhos carregando as setas,
Levando
o arco atravessado à boca.
UM
CINZELADOR
Há,
gentil criatura, um poeta que cinzela
A
frase como um velho ourives florentino,
Que
torce o ouro, e mistura a prata, e que martela
De
um golpe, o vaso iriante, adamascado e fino.
Eu
queria-lhe o gênio; amara-lhe o destino;
Lavrara
com carícia a estrofe, e punha nela
Asas,
sóis, muito aroma, o alarido de um hino,
E
o azul... todo esse azul que o infinito apainela.
Para
o rico ideal tenho a matéria-prima:
Obedece-me
a luz, domestiquei a rima,
Guardo
a música presa aos metros rugidores.
Neste
trabalho a mão pode bem ser que trema...
Mas
se tu queres, se desejas um diadema,
Vais
ter em mim já um desses cinzeladores.
GRUPO
(A Manuel de Mello)
Figura
graciosa e encantadora
De
uma criança ao caulim talhada,
Vedes
nos braços de gentil senhora
Ali
no banco do jardim sentada.
Como
a cabeça é grande comparada
Com
todo o corpo!... e que cabelo a doura!
Rasga-lhe
a fronte cristalina estrada,
Onde
brinca em nudez a manhã loura.
Na
atitude, da mãe e na do filho,
Desce
do sol, que vai morrendo, um brilho,
Que
enche de um riso tímido o vergel.
Parece
o grupo esplêndido e tranquilo
Feito
de uma das Virgens de Murillo,
Tendo
ao colo um Jesus de Rafael.
OFÉLIA
É
duma palidez que deslumbra e fascina:
Tem
nos olhos clarões da chama que arde, enquanto
Rui,
no ocidente aceso, a última Alhambra em ruína:
Se
canta, os rouxinóis calam-se ao ouvir seu canto.
Sai
do centro de um lírio; anda à roda, à surdina,
De
olor suave embalando-a; arrasta, impondo espanto,
Trapos
de luz nos pés, restos de sóis no pranto;
E
o céu é um vasto nimbo azul, que ela ilumina.
Enlouqueceu?
Que ser estranho a leva e a enleia?
Não
é mais leve na água e mais bela a sereia.
Quem
é? Quem vai como ela em tão longo noivado?
Ofélia,
és tu, ideal do amor, que eternamente,
Solto
o auroral cabelo, e às ervas enrolado,
Vemos
fugir, cantando, a fio da corrente.
O MELHOR CANTINHO
Boiava
como em ondas de perfume,
Movendo
os braços nus e os pés pequenos;
E
a voz sutil de pérfidos venenos
Vinha
do quadro, que envolvia o nume.
No
grande leito a alcova se resume,
E
era a concha em que andava aquela Vênus:
As
sedas por ali cantavam trenos
Tão
meigos como o arrulho de um queixume.
O
trêmulo fulgir do branco linho,
A
renda que alfaiava o travesseiro,
O
cortinado um pouco em desalinho;
A
cama, o espelho amplíssimo fronteiro...
E
ela dentro, tornava aquele ninho
O
cantinho melhor do mundo inteiro...
VÊNUS E
MADONA
Tens
no teu corpo o azul, que esta hora explica,
Na
brancura, que o artista ama e imagina,
Quando
aos liriais quinze anos da menina
Na
mulher, que ela encerra, os sóis salpica.
És
a Virgem que Sanzio santifica,
—
Ao colo o filho, — esplêndida e divina,
Cheia
de graça, de modéstia rica,
Mas
cópia fiel da amante, a Fornarina.
A
luz, que a estrela mescla à noite escura
É
como a luz da humana felicidade;
É
na sombra que canta a luz mais pura.
E
tu tens o que a vida ideal procura,
Tens
da Madona a eterna castidade,
Tens
da Vênus a eterna formosura.
ENTRE A CALMA E A TEMPESTADE
Por
que me destes olhos, para vê-la,
E
me destes ouvidos, para ouvi-la,
Deuses,
se junto a mim não posso tê-la,
Se
não posso de longe enfim segui-la?
Sem
ela a vida fora-me tranquila,
Mas
em meu céu lançada aquela estrela,
Que
tão meiga e suave em mim cintila,
Não
pude mais, não quis de então perdê-la.
Acho
melhor a inquietação que sinto
Dentro
de mim, que meu sossego extinto:
Faz-me
bem, há delícia inda em tal dor;
Sofrer
por ela a todo instante é gozo;
Prefiro
a luta a intérmino repouso,
Prefiro
à eterna paz o eterno amor.
La verginella è simile alla rosa.
ARIOSTO
É
toda virgem lírio branco, ou rosa,
Que
entre espinhos nasceu, e anda guardada,
Que
é vestida de fulva luz radiosa,
Da
terra, e céu, e sol enamorada;
E
um nicho de perfume habita, e agrada
Como
flor; mas abelha sequiosa
Teima
com o inseto e a doida passarada
A
ver quem mimos seus primeiro goza.
Se
conserva inocente e intacto o seio,
É
sempre bela: é bela enquanto é pura;
Mas
se alguém arrancá-la ao encanto veio,
Desmaia
logo a sua formosura,
E
o amor, que tanto a ebriou, e lhe era enleio,
O
amor noutros vergéis amor procura.
CARLOTA
Desatas
o corpete, e abres o seio,
Como
a cecém a virginal corola,
Depois
o teu olhar, cantando, rola,
Dando
as voltas sublimes de um gorjeio,
Num
ritornello, num suave enleio,
Que
em doidas festas teu filhinho enrola,
E
cais num largo e fundo devaneio,
Que
te unindo a ele só, do mais te isola.
Como
ao vento, que passa, a luz de um círio,
Vendo
o teu rosto, que um luar desbota,
Teus
peitos brancos, como o cacto ou o lírio,
Treme
minha alma de emoção ignota,
E
então compreendo Werther em delírio
Ante
a imagem serena de Carlota...
Primeiro
hão de correr
Pera
traz rios e mar,
Nas
coisas discórdia haver,
Que
a mim me falecer
Desejo
de inda a gozar.
Bernardim Ribeiro – Églogas
Sonho
de amor, estrela peregrina
Por
céus onde se azula a primavera,
Rosa
ideal de um éden, que imagina
Quem
se refoge na mais alta esfera,
Sombra
de luz que me segreda: Espera.
Mão
que atravessa abismos, e se inclina,
Trazendo
a transbordar cheia a cratera
De
uma bebida cálida e divina;
Cimos
que busco, cimos, que não vejo,
Eu
para vós adejo... adejo... adejo...
Sois tão
longe, eu bem sei; tão longe! embora:
O
Anjo da Fé murmura-me: Caminha...
E
eu digo: — Vem, ó tu, que hás de ser minha:
Por
que tardas assim? — Que te demora?...
LA POVERINA
Vi
num quadro, talvez cópia de Tintoretto,
Uma
gentil fanciulla, errante e poverina,
Que
eu guardara na glória em fogo de um soneto,
Como
num áureo escrínio a pérola mais fina.
Como
o fundo, em que estava, era estranha ruína;
Magra,
entretanto forte, um mármore perfeito,
E
acesa de clarões, como um diamante preto,
Tempestua-lhe
à espádua a grenha leonina.
A
dor fulva do luar toda a pintura exala.
Nero
no Coliseu, nas Termas Caracala,
Crê-se
que inda lá dentro em longa orgia estão.
Roma
arranjando a ossada às púrpuras da lua,
Olha,
sem levantar-se, a bela deusa nua,
E
o templo e o altar da deusa em pedras pelo chão...
A GOTA
D’ÁGUA
Não
há pedra que a água não consuma;
Sem
ferir-se, a água fere a pedra dura;
Quer
tempo: e gota e gota, uma após uma,
A
beija, a encanta, a enlaça, a envolve, a fura.
Caminha
mais: rendilha-se de espuma;
E
enquanto existe rocha, e a gota dura,
A
água trabalha, até que enfim murmura,
Sem
ter, sob os seus pés, mais rocha alguma.
Fez
dela um berço, em que anos mil porfia,
Agora
ao sol, agora à luz da lua,
Para
urdir nesse berço a penedia!...
Hoje,
nele espreguiça-se e flutua;
E
ri de um fauno astuto e vil, que espia
Náiade
ao colo seu dormida e nua...
SONHAR!
t’was like a sweet dream...
T. Moore — Lolla
Rookh
Sonho
às vezes... levando-a desta fria
Estância
a um paço em zonas levantinas,
Num
lago, em cujas margens haveria
Cactos,
rotins, bambus e casuarinas,
Onde
em junco pintado de harmonia
Com
o céu, e o verde d’água, e a cor das finas
Porcelanas,
que o sol inflama, iria
Ela
beirando a fímbria das colinas.
Das
grandes aves do Oriente as penas
De
ouro e esmeraldas, prasios e turquezas
Dar-lhe-iam
sombra ao lácteo rosto apenas.
E
em honra à flor mais branca das devesas,
Lhe
entornaria a noite nas melenas
O
escrínio azul das pérolas acesas.
NUVEM
Criança
de olhar límpido e tranquilo,
Esculturada,
como lavro as odes,
Quando
de espaço e olímpico as burilo,
Cheias de
canto e luz, como os pagodes:
Tu
só entendes, tu somente podes,
Lendo,
ouvir o que em si tem de sigilo:
E
o ouro delas, — e é só o escrínio abri-lo,
Como
aos astros nos céus faz Deus, sacodes.
Ouves
ondear na estrofe o teu perfume;
Vês
o universo, que uma voz resume;
Há
loureiros nuns sons, há sóis, e mais...
E
não têm conta as pérolas que arranca
Teu
dedo à espuma, que as envolve, ó branca...
Branca
nuvem de uns brancos ideais!...
MULHER
TRISTE
Quando
ela passa como um sol ou luz,
Rasgando
o fundo azul ao firmamento,
Sinto
em torno de mim o irradiamento
De
alguma coisa leve que flutua...
Um
leve estremecer de carne nua...
Um
ruído de vida sonolento...
Um
barulho de rosas... e o contento
Dos
lírios brancos pela espádua sua.
E
o ambiente de aroma em que ela nada!?
E
a nesga azul na pálpebra pousada
A
espremer-lhe no olhar clarões de aurora!?
Mas
tudo, tudo, imerso em funda mágoa...
Parece,
como a estrela dentro da água,
Que
é dentro de uma lágrima que mora...
A MÃE
Tinha
uma graça infinda... uma estranheza
Na
cor do rosto fina e desmaiada;
Um
toque de ouro na imortal beleza...
E
a noite, enfim, dos olhos estrelada!
Uma
gorda criança pendurada
À
mama chupa em langue morbideza,
E,
entre a opala e o rubor de aurora acesa,
Sai-lhe
o bico da boca entrecerrada.
Uma
das mãos já túmida e vermelha
Suspende
e abraça o filho; a outra semelha
Na
brancura, que um leve azul tempera,
Obra
de arte, que um chim pintasse em louça,
Enquanto
dentro, — em cada olhar da moça, —
Nada
em luz, canta e ri uma Quimera.
FAREWELL
É
noite. — Pela curva azul celeste
Fervem
astros no enorme firmamento:
Coração,
alma, e sangue, e pensamento
O
pélago do céu profundo investe.
Ó
sóis, quem essas clâmides vos veste?
Ó
nebulosas, quem vos roja ao vento?
Ó
abismo pesado e sonolento,
Quem
te abriu? ou tu mesmo te fizeste?...
Ilhas
de ouro, serenas, luzidias,
Que
alvo procura o vosso eterno adejo?
Para
quem são as vossas harmonias?
Sois
belas... sois... Mas até logo... Vejo
Que
falta às vossas músicas sombrias
O
murmúrio do seu casto beijo.
DE
MENINA A MOÇA
Que
é isso então? Que incógnita tristeza
A
um estranho prazer se lhe mistura?
Revolve
em torno, dentro em si procura
De
um tal enigma ter qualquer certeza.
Tem-na
em seus fios novo encanto presa;
Doce,
como a serpente da escritura,
Embala-a
o amor na voz da formosura,
Luxuosa
chega e o afirma a natureza.
Andava
alegre e andava atormentada,
Vendo
num largo céu azul, que abria,
A
alva, que aí vem, e deuses de emboscada...
Calhandra
perto lhe apontava o dia,
E
já manhã, mas inda em névoa enleada,
Tudo
nela cantava e tudo ria...
IGNOTA DEA (PELO AZUL)
Se
houver na terra quem entenda este meu canto,
Um
anjo, um Eloá, espírito de luz,
Que
escadas de cetim faz de escadas de pranto,
E
muda em raios de ouro os cravos duma cruz;
E
acolhe um aleijão da sorte sem espanto,
Sem
asco, sem terror, com seus dois braços nus,
Que
estenda sobre mim as dobras do seu manto,
Que
me leve consigo onde o céu o conduz;
Consigo
se quiser levar-me ao paraíso,
Basta
só que me acolha à sombra do seu riso
E abra, e
arqueie, e me estenda um cantinho da mão:
E
fazendo baixar até mim sua imagem,
Murmure
entre aflição e esperança: — Coragem,
Sempre
algum coração quer outro coração...
ÀS
PORTAS DE ALHAMBRA
A
tristeza, que os olhos teus inunda,
Sobe-te
da alma, à espessa treva presa:
E
tudo que ela encerra, e nela abunda,
Se
esconde nessa nuvem de tristeza.
Vejo-te
assim, fantástica princesa,
Mendiga
à noite, pálida, errabunda,
Como
a miséria lúgubre e profunda,
Às
portas duma Alhambra em festa acesa.
Nasceste
gêmea com a Aurora, e és filha
Da
luz; e a luz do céu em ti rebrilha:
Fez-te
rainha a formosura, ó flor.
Porém
teu pobre coração vazio
Faz-te
morrer de fome, e sede, e frio
Às
portas de ouro dessa Alhambra, o amor.
CADÁVER
DE VIRGEM
Estava
no caixão como num leito,
Palidamente
fria e adormecida;
As
mãos cruzadas sobre o casto peito,
E
em cada olhar sem luz um sol sem vida.
Pés
atados com fita em nó perfeito,
De
roupas alvas de cetim vestida,
O
torso duro, rígido, direito,
A
face calma, lânguida, abatida...
O
diadema das virgens sobre a testa,
Níveo
lírio entre as mãos, toda enfeitada,
Mas
como noiva que cansou da festa...
Por
seis cavalos brancos arrancada,
Onde
vais tu dormir a longa sesta
Na
mole cama em que te vi deitada?
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