1/12/2020

Poemas de Luís Delfino (Algas e Musgos)



A VÊNUS MISTERIOSA


Onde se perde aquela gente toda?
Agarrados às suas longas tranças
Andam velhos, arrastam-se crianças,
E a mocidade rola ebriada e doida.

Do céu descem-lhe pássaros em boda,
Cantam, metendo-a em luxuriantes danças:
E mudas, baixas, tímidas e mansas
O chão as feras lambem-lhe de roda.

Não há carne que em nós não chore e grite
Por seu corpo, onde estão sempre em festejo
Bocas de auroras, rubras de apetite.

Vênus mais Vênus, sem mostrar mais pejo,
Dá-nos a fome, acende-a, e não permite
Pôr no pó, que ergue aos pés, fugindo, um beijo!...



O ETERNO ENGANO

Quantas vezes passar fremindo apanho
De um ser, que não se vê, a voz ardente,
Como o vento carrega uma semente,
Que há de florir bem cedo, achando amanho:
Ouve-a também teu coração contente;
Corre em teu sangue um murmúrio estranho;
Metes teu corpo em luz do céu num banho;
Tua alma a sombra dela ao perto sente

Envolver-te num beijo. — A flor que cheira,
Pelo perfume é que se denuncia;
Tu colhes, sem mais ver, logo a primeira;

Era a primeira que no vale abria;
A mais branca, a melhor guarda-a a balseira,
Lírio igual a ti mesma, e igual ao dia...



TO WISH


Minha tristeza é como a noite funda
Lançada sobre os astros turbulentos,
Com que o céu todo se enche, alastra, inunda
Ao murmúrio lúbrico dos ventos,

Como sobre esperança moribunda,
O lençol, que se atira aos lazarentos,
Como em muros de velhos monumentos
Do tempo o musgo e a sombra vagabunda.

E essa dor vaga, amplíssima, infinita,
Dentro de mim, fora de mim se agita,
Como um mar sobre trevas recostado.

Que sol erguido pelo espaço infindo
Dera-me a luz... a luz de um rosto lindo...
Melhor do que isso, a luz de um rosto amado?...

LATONA

A mãe tem medo: ouve-se distante
O perlar argentino da voz sua;
E olho da sala vagamente a rua,
Enquanto a sinto longe alegre e errante.

Manda-me os filhos um a um adiante:
Depois vem ela: voa? anda? flutua?
Não sei. — Vem bela, pálida, radiante,
Como depois que a noite se acentua,

E o ouro o céu vermicula em vasta zona,
Que o azul em tons mais lânguidos desmaia...
E no meio da luz, que ri, Latona

Frisa o monte, inflamando o mar e a praia...
Assim vem ela, assim vem a Madona,
Bem como a luz entre as estrelas raia...



PELA TARDE

...quoedam flere voluptas...

OVÍDIO

Num assento de mármore, que doura
O tempo, e o sol, que vai passando, olhá-la
É ver a tarde triste e cismadora
Diante de um verde, que flutua e a embala.

Velho raio de luz desce a animá-la:
É a brancura numa sombra loura,
Como num quadro, cujo fundo fora
Pensado adrede por quem quer pintá-la.

Arfa o silêncio no seu rosto lindo,
Enquanto os olhos seus pairam pregados
No azul, mais forte sempre, o céu tingindo.

E ao barulho dos leques espalmados,
Vê, sem ver, os pavões, que vão subindo
Dois a dois, beira a beira dos telhados...



O MADRIGAL DAS ROSAS

Quando em grupo, enlaçada, e de joelhos
A chusma triunfal das rosas toma
Ares de quem à luz quer dar conselhos,
Num barulho sem fim de cor e aroma

Salta sobre os minúsculos artelhos,
E com a fronte a arder da acesa coma,
Cobrindo rostos bons, gentis, vermelhos,
Dos varandins pela esmeralda assoma:

Dizem todas ao sol com dor, com pejo,
Num madrigal, que o amor delas resume,
Que ele lhes leva a vida e o olor num beijo;

Meio a rir, meio em iras de ciúme,
Responde o sol, golpeado de um desejo:
— Dou-lhes o beijo, e negam-me o perfume?...


NO LEITO


Como estátua de mármore, na cama
Feita de linho, e sobre o nevoeiro
De rendas, em que rola o travesseiro,
Que luar doce o corpo teu derrama.

Azula-o brandamente etérea chama,
Molha-o a luz do teu olhar fagueiro;
E o sol, nos teus dois sóis prisioneiro,
Embalde ir para o céu forceja e clama.

Deixa-o ir. — Fica tu serena e casta
No calor desta alcova pequenina,
Que a imensa curva azul talvez mais vasta.

Deixa-me após na luz que me fascina,
Deste céu em que estás, e que me basta,
Cair morto aos teus pés, mulher divina.


UMA PRINCESA ANTIGA


Tem a grandeza antiga e peregrina
Das mulheres da Bíblia, e da Odisseia:
Anda, fala, aparece... e se imagina
Ou Palas ou Judite ou Diana ou Réa.

Mas quando ao campo os passos seus destina,
Sua estatura avulta: — então é Déa:
Jove, para a espiar da azul cortina,
Deixa os deuses no Olimpo em assembleia.

Juno descora... E ela no cercado,
Numa das mãos erguendo os seus vestidos,
Com outra lança às aves pão cortado,

E vê longe, entre os capins crescidos,
O velho boi de Homero, um boi malhado,
De passo tardo e chifres retorcidos.



OUVINDO-A


Tu movendo a cabeça, a boca, o braço,
Como a vidente de um antigo rito,
Dizes que mundos luminosos faço...
E então nos olhos teus meus olhos fito.

Do pasmo, com que em ti me prendo e enlaço,
Zombas com gesto irônico, esquisito,
E sinto que por ti me foge o espaço,
E rolam sóis, e cava-se o infinito.

E enquanto arranjas essa melopeia,
Enfiando uma ideia noutra ideia,
Enquanto esses castelos de ouro arrumas,

Eu vou boiando em tua voz sonora,
Como nau, pano ao vento, azuis em fora,
Entre as flores de prata das espumas.

 

SICUT SERPENS


Tens da virgem cristã a graça e o pejo,
Que de um certo desgarre não te exime;
E uma tristeza de mulher sublime,
Junto à lascívia dum brutal desejo.

És bela... e pura, creio-te, se vejo
Teu rosto aonde a palidez se imprime;
E o teu corpo, que dobra, como um vime,
Que dobra mesmo ao hálito de um beijo...

És pura, se te vejo de repente,
Se não me vem de súbito a lembrança
Da luz dos olhos teus molhada e quente,

Que como serpe, sai do ninho, e avança,
E em roscas de ouro luminoso — a gente
Enrola no teu corpo de criança.



NATUREZA INTERROGADA


Rosas, jasmins, bons dias; açucenas,
Festas e sóis; rir, minhas feiticeiras!
Rolai, brincai, voejai... mas vede... asneiras
Em cima delas, não, gentis falenas.

Alegres todas, rancho de pequenas!...
Margaridas, corimbos das balseiras,
Grotais do bosque, relva das clareiras,
Luz perfumada das manhãs serenas,

Sombra doce do trêmulo arvoredo,
Rio a cantar às costas do fraguedo,
Veiga e céu, ninhos, pássaros, rosais...

Rosais, pássaros, ninhos, céus e veiga,
Sede-me bons, falai: quando ela chega,
Que faz ela? que diz?... que diz? que faz?



PERDÃO AOS DEUSES


Castas brancuras virginais que cria
A terra, e que a mulher, o lírio e a rosa
Têm em si, são a sombra gloriosa
Do clarão que é teu peplo, e em ti radia...

Se a luz coalhasse, como tu seria
Quente, rija, brilhante e cetinosa:
Se de um bloco de luz branca e cheirosa
Deus te não fez... então não te fazia.

Perdoo a esse, e aos mais, o esquecimento
De terem feito um céu sem pensamento...
Se algum respeito mesmo inda revelo

É que o último golpe de martelo,
Que tinha de acabar o firmamento,
Pôde só acabar teu rosto belo.


AMAZONA


Oh! Era uma amazona verdadeira,
Quando montava o seu gentil cavalo:
Vinha-lhe em luz ao rosto o fundo abalo,
Que ia beber na rápida carreira!

Chapéu preto emplumado; a cabeleira
Lá dentro, como um sol dentro de um valo:
Um chicotinho só para guiá-lo...
Antes raio de luz na mão faceira.

Buscava ao longe as veigas mais secretas:
Acordava ao galope a gruta rouca,
Olhavam-na as estrelas inquietas...

E ela voava assim como uma louca,
Dentro dos olhos carregando as setas,
Levando o arco atravessado à boca.


UM CINZELADOR


Há, gentil criatura, um poeta que cinzela
A frase como um velho ourives florentino,
Que torce o ouro, e mistura a prata, e que martela
De um golpe, o vaso iriante, adamascado e fino.

Eu queria-lhe o gênio; amara-lhe o destino;
Lavrara com carícia a estrofe, e punha nela
Asas, sóis, muito aroma, o alarido de um hino,
E o azul... todo esse azul que o infinito apainela.

Para o rico ideal tenho a matéria-prima:
Obedece-me a luz, domestiquei a rima,
Guardo a música presa aos metros rugidores.

Neste trabalho a mão pode bem ser que trema...
Mas se tu queres, se desejas um diadema,
Vais ter em mim já um desses cinzeladores.



GRUPO

(A Manuel de Mello)

Figura graciosa e encantadora
De uma criança ao caulim talhada,
Vedes nos braços de gentil senhora
Ali no banco do jardim sentada.

Como a cabeça é grande comparada
Com todo o corpo!... e que cabelo a doura!
Rasga-lhe a fronte cristalina estrada,
Onde brinca em nudez a manhã loura.

Na atitude, da mãe e na do filho,
Desce do sol, que vai morrendo, um brilho,
Que enche de um riso tímido o vergel.

Parece o grupo esplêndido e tranquilo
Feito de uma das Virgens de Murillo,
Tendo ao colo um Jesus de Rafael.



OFÉLIA


É duma palidez que deslumbra e fascina:
Tem nos olhos clarões da chama que arde, enquanto
Rui, no ocidente aceso, a última Alhambra em ruína:
Se canta, os rouxinóis calam-se ao ouvir seu canto.

Sai do centro de um lírio; anda à roda, à surdina,
De olor suave embalando-a; arrasta, impondo espanto,
Trapos de luz nos pés, restos de sóis no pranto;
E o céu é um vasto nimbo azul, que ela ilumina.

Enlouqueceu? Que ser estranho a leva e a enleia?
Não é mais leve na água e mais bela a sereia.
Quem é? Quem vai como ela em tão longo noivado?

Ofélia, és tu, ideal do amor, que eternamente,
Solto o auroral cabelo, e às ervas enrolado,
Vemos fugir, cantando, a fio da corrente.


O MELHOR CANTINHO

Boiava como em ondas de perfume,
Movendo os braços nus e os pés pequenos;
E a voz sutil de pérfidos venenos
Vinha do quadro, que envolvia o nume.

No grande leito a alcova se resume,
E era a concha em que andava aquela Vênus:
As sedas por ali cantavam trenos
Tão meigos como o arrulho de um queixume.

O trêmulo fulgir do branco linho,
A renda que alfaiava o travesseiro,
O cortinado um pouco em desalinho;

A cama, o espelho amplíssimo fronteiro...
E ela dentro, tornava aquele ninho
O cantinho melhor do mundo inteiro...



VÊNUS E MADONA


Tens no teu corpo o azul, que esta hora explica,
Na brancura, que o artista ama e imagina,
Quando aos liriais quinze anos da menina
Na mulher, que ela encerra, os sóis salpica.

És a Virgem que Sanzio santifica,
— Ao colo o filho, — esplêndida e divina,
Cheia de graça, de modéstia rica,
Mas cópia fiel da amante, a Fornarina.

A luz, que a estrela mescla à noite escura
É como a luz da humana felicidade;
É na sombra que canta a luz mais pura.

E tu tens o que a vida ideal procura,
Tens da Madona a eterna castidade,
Tens da Vênus a eterna formosura.



ENTRE A CALMA E A TEMPESTADE


Por que me destes olhos, para vê-la,
E me destes ouvidos, para ouvi-la,
Deuses, se junto a mim não posso tê-la,
Se não posso de longe enfim segui-la?

Sem ela a vida fora-me tranquila,
Mas em meu céu lançada aquela estrela,
Que tão meiga e suave em mim cintila,
Não pude mais, não quis de então perdê-la.

Acho melhor a inquietação que sinto
Dentro de mim, que meu sossego extinto:
Faz-me bem, há delícia inda em tal dor;

Sofrer por ela a todo instante é gozo;
Prefiro a luta a intérmino repouso,
Prefiro à eterna paz o eterno amor.



A VIRGEM

La verginella è simile alla rosa.

ARIOSTO

É toda virgem lírio branco, ou rosa,
Que entre espinhos nasceu, e anda guardada,
Que é vestida de fulva luz radiosa,
Da terra, e céu, e sol enamorada;

E um nicho de perfume habita, e agrada
Como flor; mas abelha sequiosa
Teima com o inseto e a doida passarada
A ver quem mimos seus primeiro goza.

Se conserva inocente e intacto o seio,
É sempre bela: é bela enquanto é pura;
Mas se alguém arrancá-la ao encanto veio,

Desmaia logo a sua formosura,
E o amor, que tanto a ebriou, e lhe era enleio,
O amor noutros vergéis amor procura.



CARLOTA


Desatas o corpete, e abres o seio,
Como a cecém a virginal corola,
Depois o teu olhar, cantando, rola,
Dando as voltas sublimes de um gorjeio,

Num ritornello, num suave enleio,
Que em doidas festas teu filhinho enrola,
E cais num largo e fundo devaneio,
Que te unindo a ele só, do mais te isola.

Como ao vento, que passa, a luz de um círio,
Vendo o teu rosto, que um luar desbota,
Teus peitos brancos, como o cacto ou o lírio,

Treme minha alma de emoção ignota,
E então compreendo Werther em delírio
Ante a imagem serena de Carlota...

 

O ANJO DA FÉ

Primeiro hão de correr
Pera traz rios e mar,
Nas coisas discórdia haver,
Que a mim me falecer
Desejo de inda a gozar.

Bernardim Ribeiro – Églogas

Sonho de amor, estrela peregrina
Por céus onde se azula a primavera,
Rosa ideal de um éden, que imagina
Quem se refoge na mais alta esfera,

Sombra de luz que me segreda: Espera.
Mão que atravessa abismos, e se inclina,
Trazendo a transbordar cheia a cratera
De uma bebida cálida e divina;

Cimos que busco, cimos, que não vejo,
Eu para vós adejo... adejo... adejo...
Sois tão longe, eu bem sei; tão longe! embora:

O Anjo da Fé murmura-me: Caminha...
E eu digo: — Vem, ó tu, que hás de ser minha:
Por que tardas assim? — Que te demora?...

 

LA POVERINA


Vi num quadro, talvez cópia de Tintoretto,
Uma gentil fanciulla, errante e poverina,
Que eu guardara na glória em fogo de um soneto,
Como num áureo escrínio a pérola mais fina.

Como o fundo, em que estava, era estranha ruína;
Magra, entretanto forte, um mármore perfeito,
E acesa de clarões, como um diamante preto,
Tempestua-lhe à espádua a grenha leonina.

A dor fulva do luar toda a pintura exala.
Nero no Coliseu, nas Termas Caracala,
Crê-se que inda lá dentro em longa orgia estão.

Roma arranjando a ossada às púrpuras da lua,
Olha, sem levantar-se, a bela deusa nua,
E o templo e o altar da deusa em pedras pelo chão...


A GOTA D’ÁGUA


Não há pedra que a água não consuma;
Sem ferir-se, a água fere a pedra dura;
Quer tempo: e gota e gota, uma após uma,
A beija, a encanta, a enlaça, a envolve, a fura.

Caminha mais: rendilha-se de espuma;
E enquanto existe rocha, e a gota dura,
A água trabalha, até que enfim murmura,
Sem ter, sob os seus pés, mais rocha alguma.

Fez dela um berço, em que anos mil porfia,
Agora ao sol, agora à luz da lua,
Para urdir nesse berço a penedia!...

Hoje, nele espreguiça-se e flutua;
E ri de um fauno astuto e vil, que espia
Náiade ao colo seu dormida e nua...



SONHAR!

t’was like a sweet dream...

T. Moore — Lolla Rookh

Sonho às vezes... levando-a desta fria
Estância a um paço em zonas levantinas,
Num lago, em cujas margens haveria
Cactos, rotins, bambus e casuarinas,

Onde em junco pintado de harmonia
Com o céu, e o verde d’água, e a cor das finas
Porcelanas, que o sol inflama, iria
Ela beirando a fímbria das colinas.

Das grandes aves do Oriente as penas
De ouro e esmeraldas, prasios e turquezas
Dar-lhe-iam sombra ao lácteo rosto apenas.

E em honra à flor mais branca das devesas,
Lhe entornaria a noite nas melenas
O escrínio azul das pérolas acesas.



NUVEM


Criança de olhar límpido e tranquilo,
Esculturada, como lavro as odes,
Quando de espaço e olímpico as burilo,
Cheias de canto e luz, como os pagodes:

Tu só entendes, tu somente podes,
Lendo, ouvir o que em si tem de sigilo:
E o ouro delas, — e é só o escrínio abri-lo,
Como aos astros nos céus faz Deus, sacodes.

Ouves ondear na estrofe o teu perfume;
Vês o universo, que uma voz resume;
Há loureiros nuns sons, há sóis, e mais...

E não têm conta as pérolas que arranca
Teu dedo à espuma, que as envolve, ó branca...
Branca nuvem de uns brancos ideais!...



MULHER TRISTE


Quando ela passa como um sol ou luz,
Rasgando o fundo azul ao firmamento,
Sinto em torno de mim o irradiamento
De alguma coisa leve que flutua...

Um leve estremecer de carne nua...
Um ruído de vida sonolento...
Um barulho de rosas... e o contento
Dos lírios brancos pela espádua sua.

E o ambiente de aroma em que ela nada!?
E a nesga azul na pálpebra pousada
A espremer-lhe no olhar clarões de aurora!?

Mas tudo, tudo, imerso em funda mágoa...
Parece, como a estrela dentro da água,
Que é dentro de uma lágrima que mora...



A MÃE


Tinha uma graça infinda... uma estranheza
Na cor do rosto fina e desmaiada;
Um toque de ouro na imortal beleza...
E a noite, enfim, dos olhos estrelada!

Uma gorda criança pendurada
À mama chupa em langue morbideza,
E, entre a opala e o rubor de aurora acesa,
Sai-lhe o bico da boca entrecerrada.

Uma das mãos já túmida e vermelha
Suspende e abraça o filho; a outra semelha
Na brancura, que um leve azul tempera,

Obra de arte, que um chim pintasse em louça,
Enquanto dentro, — em cada olhar da moça, —
Nada em luz, canta e ri uma Quimera.



FAREWELL


É noite. — Pela curva azul celeste
Fervem astros no enorme firmamento:
Coração, alma, e sangue, e pensamento
O pélago do céu profundo investe.

Ó sóis, quem essas clâmides vos veste?
Ó nebulosas, quem vos roja ao vento?
Ó abismo pesado e sonolento,
Quem te abriu? ou tu mesmo te fizeste?...

Ilhas de ouro, serenas, luzidias,
Que alvo procura o vosso eterno adejo?
Para quem são as vossas harmonias?

Sois belas... sois... Mas até logo... Vejo
Que falta às vossas músicas sombrias
O murmúrio do seu casto beijo.



DE MENINA A MOÇA


Que é isso então? Que incógnita tristeza
A um estranho prazer se lhe mistura?
Revolve em torno, dentro em si procura
De um tal enigma ter qualquer certeza.

Tem-na em seus fios novo encanto presa;
Doce, como a serpente da escritura,
Embala-a o amor na voz da formosura,
Luxuosa chega e o afirma a natureza.

Andava alegre e andava atormentada,
Vendo num largo céu azul, que abria,
A alva, que aí vem, e deuses de emboscada...

Calhandra perto lhe apontava o dia,
E já manhã, mas inda em névoa enleada,
Tudo nela cantava e tudo ria...


IGNOTA DEA (PELO AZUL)

Se houver na terra quem entenda este meu canto,
Um anjo, um Eloá, espírito de luz,
Que escadas de cetim faz de escadas de pranto,
E muda em raios de ouro os cravos duma cruz;

E acolhe um aleijão da sorte sem espanto,
Sem asco, sem terror, com seus dois braços nus,
Que estenda sobre mim as dobras do seu manto,
Que me leve consigo onde o céu o conduz;

Consigo se quiser levar-me ao paraíso,
Basta só que me acolha à sombra do seu riso
E abra, e arqueie, e me estenda um cantinho da mão:

E fazendo baixar até mim sua imagem,
Murmure entre aflição e esperança: — Coragem,
Sempre algum coração quer outro coração...



ÀS PORTAS DE ALHAMBRA


A tristeza, que os olhos teus inunda,
Sobe-te da alma, à espessa treva presa:
E tudo que ela encerra, e nela abunda,
Se esconde nessa nuvem de tristeza.

Vejo-te assim, fantástica princesa,
Mendiga à noite, pálida, errabunda,
Como a miséria lúgubre e profunda,
Às portas duma Alhambra em festa acesa.

Nasceste gêmea com a Aurora, e és filha
Da luz; e a luz do céu em ti rebrilha:
Fez-te rainha a formosura, ó flor.

Porém teu pobre coração vazio
Faz-te morrer de fome, e sede, e frio
Às portas de ouro dessa Alhambra, o amor.



CADÁVER DE VIRGEM


Estava no caixão como num leito,
Palidamente fria e adormecida;
As mãos cruzadas sobre o casto peito,
E em cada olhar sem luz um sol sem vida.

Pés atados com fita em nó perfeito,
De roupas alvas de cetim vestida,
O torso duro, rígido, direito,
A face calma, lânguida, abatida...

O diadema das virgens sobre a testa,
Níveo lírio entre as mãos, toda enfeitada,
Mas como noiva que cansou da festa...

Por seis cavalos brancos arrancada,
Onde vais tu dormir a longa sesta
Na mole cama em que te vi deitada?

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