1/19/2020

Poemas de B. Lopes (Brasões)



CONCERTANTE

Trajo de baile; embriagadora cauda;
Pulcro e níveo decote, amplo e deserto
De joia ou flor, em frente ao piano aberto
Percorre a partitura lauda a lauda.

Senhorial e deslumbrante, ofusca
O salão cheio da mais fina gente...
Eis que vibra o teclado, de repente,
Como um trinado, numa escala brusca.

Preludiava. Um frêmito indeciso.
Na linha rósea das senhoras passa:
Não há quem tenha assim tão nobre graça,
Quem mais eleve e humilhe num sorriso.

A régios golpes de águia, a inveja e a inópia
O seu contralto límpido suplanta,
Ao saírem-lhe as notas da garganta,
Como estrelas de uma áurea cornucópia.

Um quê de etéreo, que se não define
imprime às vozes do rimance lindo;
Vai na espiral da música subindo
A alma branca e dolente de Bellini.

Dá doçura ao mais doce dos maestros,
Traduzindo-lhe as mágoas e as quimeras;
Cantam, soluçam duas primaveras,
Uma na boca outra em seus dedos dextros!

Bênçãos maternas, quando o filho parte
Ou para a vida ou para a cova; tudo
Desliza sobre um flácido veludo,
Numa vibrante contextura de arte.

Livres, enfim, das mundanais lisonjas,
No claustro, à morta luz do alampadário,
Osculando Jesus no breviário
Monges de cera e amarguradas monjas.

Ermidas brancas, catedrais em festa,
Brocado de aras e ogivais damascos;
Sol coroando palmas e penhascos
E, em lança, abrindo o seio da floresta,

De cuja entranha partem brumas e asas,
Vivas palhetas, e um gorjeio de ouro;
Pombas cortando a luz de um dia loiro,
Sobre uma aldeia branquejando em casas.

Noivas entrando as enfeitadas portas,
De braço aos noivos, satisfeitas quase...
E, na nuvem sutil dos véus de gaze,
A prónuba ascensão das noivas mortas.

Ângelus de azul pálido, hora viúva
Nos lilases do ocaso amortalhada;
Tristes meditações de amado e amada,
Quando à vidraça tamborila a chuva.

Rosas de maio, místicos misteres,
Fontes chorosas e ermas borboletas:
Rescendência de pálidas violetas
Sobre o colo moreno das mulheres.

Ventos bravios; garra crispa de ondas
Na harpa sinistra e rota dos cordames
Embala a não, a flor de dois estames;
E, após, risadas e a canção nas mondas.

Rute cantando alegre nas searas,
Coroada de lúridas espigas:
Festa de moços e de raparigas
Sob o véu outonal das manhãs claras.

A infância rindo e a viuvez chorando!
Trompas, marchas de guerra e a própria guerra,
Tudo na nuvem de harmonias erra
Em frouxo, em brumo, em mal distinto bando.

Voos de valsa nos salões do fausto...
Esta afogueada, como flor purpúrea,
E vai outra embalada na luxúria,
Segura ao coração do par exausto.

Tudo me diz a lânguida sonata,
E tudo exprime, e tudo idealiza;
Mas só me fala, nítida e concisa,
Dessa estranha mulher, que me arrebata!
____________

O piano, mudo. Alta impressão nas almas;
E outra vez ela dominando a sala,
De pé, sorrindo a maviosa opala,
Num temporal de bravos e de palmas!

 

PÁGINA DE CARTA

Minha pálida senhora:
Hoje, estremunhado e insone,
Quando do albor do cretone
Pus a cabeça de fora,

Para entregar-me ao martírio
De te escrever esta carta,
Eu me supus a lagarta
Que sai de dentro de um lírio.

Doce tortura, contudo:
A de um romano calouro
Dando pamponilha de ouro
Sobre os lavores do escudo,

Que há de florear no torneio
De um circo cheio de aroma,
Em cuja bancada assoma
A dama do nosso enleio;

Lançando o olhar de ciúme
Para um lutador da praça;
E traz o cabelo em massa,
Todo lavado em perfume!

Pois eu bem sei que estas linhas
Vão te passar pela mente,
Como num vermelho poente
Um pelotão de andorinhas

Que de alva prata faceta
O verde-mar, aos salpicos,
Com o fino cinzel dos bicos
E a ponta de asa, em lanceta;

Rabiscando à flor das ondas
Leve, tão leve, que eu mesmo,
Bordando esta carta a esmo,
Nem quero que ma respondas!

Quero, entretanto, que a leias,
Para que aspires com ânsia
A capitosa fragrância
De que as palavras vão cheias;

Pois eu repassei tudo isto
Do óleo, não mais hoje em voga,
Que a rosa da sinagoga
Punha às melenas de Cristo...

E — oh! loira de Lachapelle!
Devia este meu bosquejo
Ser traçado, beijo a beijo,
No cetim de tua pele,

Deixando um sulco violáceo
Pelo teu corpo alvo e lindo,
— Roxa epomeia subindo
Colunatas de um palácio,

A equilibrar sem esforço
De arte belezas eternas:
A pompa de duas pernas
Sustendo a glória de um torso.

Que eu fuja da frase tosca
E só procure a riqueza
Da filigrana chinesa,
Rendilhada em prata fosca,

Com que dou vida a esta folha
De papel, como a paisagem,
Em microscópica imagem
Dá cor e vida a uma bolha,

Deves achar coisa estranha
E ficas, trêmula vespa,
Corpo dourado e asa crespa,
Segura à teia de aranha.

Mas vendo num rubro cinto
O sol, que, enfim, tudo pode.
Sacode as asas, sacode,
E larga do labirinto!


INSOLÊNCIA DA CARNE

Da escura dor que esta paixão conquista
Uma alegria audaz salta e gargalha,
Tal como um Mefistófeles farsista
Rompendo, rindo, a renda da mortalha.

Todo o perigo deste amor afronto!
Que a tua carne lúbrica embebeda
E me faz dar, divinamente tonto,
Em teu regaço deliciosa queda.

Que tem um erro, flor? Aos mais que importa
Que eu do vinho dos beijos me socorra,
Desde que para a luz se me abre a porta
Nesta, de mágoas, infernal masmorra?!

Dizendo irei a todos, na áurea trompa
Do verso, o mal que no meu seio medra;
Limpo, quem seja, me condene e rompa
A hostilidade com a primeira pedra.

Mais vinho! Mais a essência capitosa
De teu cabelo e de teu colo; é pouca
A que me vem da tua face em rosa...
Põe tua boca sobre a minha boca!

Já não tem a razão leis que me imponha;
Puros e justos nada têm que eu peque;
E se alguém rir quiser desta vergonha,
Esconde o rosto na asa de teu leque.

O ébano quente, a perfumosa treva
Da cabeleira olímpica desnastra,
E sobre a impudicícia — oh! filha de Eva!
Da minha doida embriaguez alastra...

De teu olhar o fluido me eletrize
Em tão paradisíaco regalo;
E nessa extrema e voluptuosa crise
Salte o teu seio para eu só beijá-lo.

Do pecado e do crime a apoteose
Com toda pompa o nosso amor celebre;
Tem cheiro, este excitante, em alta dose
Que me desvaire e me alucine a febre.

Corpo cheiroso, oh! delicado aroma
De mulher nova muito amada e forte,
Dá-me a luxúria dos festins de Roma
E, entre as névoas do sonho, o gozo e a morte!

Nem vejo mais! Tudo ante mim vacila...
Só vejo a taça em que a loucura sorvo...
Já tua trança desatada oscila
Num revérbero azul de asa de corvo...

Mais eu me rio, mais me aqueço e estorço,
Quanto mais o teu vinho me embriaga;
Sobe-me um calafrio pelo dorso,
E todo o espasmo do prazer me alaga!...

Venha depois a farejante hiena
Do ódio implacável me seguindo os passos,
Que há de me achar, oh! doce Madalena!
Crucificado e flébil nos teus braços!

 

A UMA INFELIZ

Minha franzina e pálida senhora:
Tens no inclinado e rórido semblante
A expressão desolada e sofredora
Do quase morto lírio do Levante.

Tu, que vieste da melancolia
— Religioso e doce misticismo!
Do alvo e cheiroso seio de Maria,
Desces a rampa festival do abismo.

Nesse declive pérfido da vida,
Claro, alegre, mendaz e todo em áscua,
Não volta nunca o bálsamo à ferida,
Não volta mais ao coração a páscoa!

A ave, que o peito inflado dilacera,
Garganteando nos beirais da estrada,
Não canta o sol nem salva a primavera
Vive chorando a asa materna e amada!

Se tua alma geme, lacerada e aflita,
Nas inclementes garras do desgosto,
Deixa em silêncio a lágrima bendita
Banhar-te a extrema palidez do rosto;

Que há de arrancar-te, alfim, dessa tristeza,
Num aromado nimbo de saudade,
Para as alturas mansas da pureza
O claro beijo da maternidade!

 

FIDALGA

Fosse o meu verso um escopro,
Fosse um buril esta pena,
E emergiria, serena,
Como animada de um sopro,

Essa, que a alvura propala,
Tomando Vênus por norma,
Ter o conjunto da forma
Todo lavrado em opala!

Essa por quem eu padeço,
Essa por quem dera tudo
Para tocar o veludo
Dos seus vestidos de preço.

Senhora por quem eu morro,
Vendo-lhe a pluma de garça,
Como um punhal - que disfarça.
Vir espetado no gorro.

Rainha e dona suprema
De todas as flores, todas!
Que há de ter carícias doidas
E delicadeza extrema

Para os finos heliótrops,
Lírios, jasmins, malvaíscos,
Tombando em vasos mouriscos,
Murchando n'água dos copos.

Mesmo para o seu canário
Cor de jaldes de Friburgo,
Roubado a um feld em Hamburgo,
Trazido por um corsário,

Que (a indiscrição não me intrigue)
Era um rapaz de Corinto,
Pistola e punhal no cinto,
Dono de um cão e de um brigue.

Com as pombas, com qualquer coisa
Que tenha vestígios de arte,
Toda a sua alma reparte,
Dá-lhes cuidado de esposa.

Tenho-lhe amor tão intenso,
Que já do verso extravasa:
Foi a luz dentro de casa,
Foi um perfume... no lenço!

Paixão, que outra força doma,
Mas que se a vê toda crespa
Como, raivosa, uma vespa
Por dentro de uma redoma.

É o meu poema de queixas
Essa rival das Ofélias;
Alva, da cor das camélias,
Loira, da cor das ameixas!

Primor, que em versos arranjo,
Ela o possui, como escravo:
Tem toda a, pompa de um Cravo
E o misticismo de um anjo,

Essa orquídea dos caprichos,
Que em seu róseo gabinete
Afoga os pés num tapete
Feito de paina de bichos.

E algumas bocas dão curso
À novidade seguinte:
Tem no chão, como um requinte,
Rara e branca pele de urso,

Que a língua apresenta, a gorja
E a boca de ares sanhudos,
Aberta em dentes agudos,
Rubras, lembrando uma forja;

Cabeça de pelo hirsuto,
Olho vidrado, de fera;
Garras de tigre e pantera,
Toda a fereza de um bruto,

Deitado ao lado da mesa
Onde ela invoca as imagens,
— Belo charão de ramagens,
Trabalho de arte chinesa.

Nem sei como eu me aproximo,
Por certo prisma risonho,
Dessa mulher, que é um sonho,
Dessa mulher, que é um mimo;

Que no trajo preto leva
Toda uma luz espontânea,
Como o diamante de Urânia
No estofo negro da treva.

Que essa titular esbelta,
Essa franzina fidalga
Tem a elegância da galga
E todo o aprumo de um celta.

Traz um perfume, que alarma
Todo o lugar onde passa:
Como as duquesas de raça,
Como as violetas de Parma;

Beleza cheia de audácia,
Dona do encanto das Musas,
Como a flor das andaluzas
É dona, enfim, de “la gracia!”
Mas deste amor todo o fausto,
O luxo, o ruído que encerra,
É como o esplendor da guerra,
A festa de um holocausto.

Fosse o meu verso um escopro,
Fosse um buril esta pena,
E emergiria, serena;
Como animada de um sopro,

Essa, que a alvura propala,
Tomando Vênus por norma,
Ter o conjunto da forma
Todo lavrado em opala!

 

ESTRELÁRIO
(A Oscar Rosas)

I
Como, indolente e a custo,
Fantasiando o extravagante quiosque
Todo de seda e de marfim vetusto,
Onde a hera se enrosque,

Gasta o seu tempo o japonês malandro,
Assim, minha querida,
Eu vou dispondo um trabalhoso meandro,
Um dourado arabesco,
Pelos beirais da tua alegre vida,
— Lago atufado de astros e ninfeias...

E farei do reduto pitoresco
O estrelário da rima e das ideias.

II
Quando eu te vejo flor, vem-me à cabeça
Uma linda pastora arcadiana,
Feita de porcelana,
Que eu já vi no boudoir de uma condessa.

Olhos travessos e maçãs salientes,
Se te mostras sorrindo;
São teus lábios, arqueados sobre os dentes,
Como dois gonos de laranja-cravo.
Cantando o verso lindo,
Que eu nesta avena trêmula acompanho,

Acompanha-te, escravo,
Dos ideais o fúlgido rebanho.

III
Olha este mar de rosas
Da mocidade, filha, como é lindo!
A fantasia, de asas milagrosas,
Vai cantando e fugindo

Sobre a larga, planura; e como brilha
Este luar estranho,
Como um véu escumilha,
Perfumado nó sândalo de um banho!...
Vamos seguir a fantasia alada,
Que rompe o canto e o páramo brilhante,

Oh! peregrina amante,
Do meu amor na gondola dourada!

IV
Amorosa e tafula
Pomba da mata, ebúrnea e delicada,
Que, aos primeiros incêndios d’alvorada,
Salta do ninho, e pula

De bromélia em bromélia, galho a galho,
Pipilante e modesta,
Entre o rumor e a garganteada festa
Dos tenores, com pérolas de orvalho
Sobre o matiz das plumas,
Que andam, ruflando pelo bosque, à toa...

Rompe o segredo e as brumas,
Abre as asas na luz, e canta, e voa!...

V
Compõe a trança e vamos,
De braço dado, pela vida afora:
Tudo palpita agora,
Ninhos e flores, pássaros e ramos,

Nesta manhã de amor; asas e albores
Vão matizando o espaço;
De manso cairão no teu regaço
Pérolas d’água, um temporal de flores!
Vamos vagar na perfumada plaga,
Oh! flor das Julietas,

Como, entre lírios e amarantos, vaga
Um par de borboletas.

VI
Não te desperta a música longínqua
Da rainha lira, em trovadora festa,
Nem as zarzuelas desta
Luz ruflante, aurorial, que se apropinqua.

Hoje, de tudo zombas,
Lírio aljofrado e estivo;
Vão só de afeto imaculadas pombas
Em teus sonhos roçar, de quando em quando.
Que do teu seio alvíssimo rebente
O amor, gloriosamente,

Num turbilhão festivo
De anjos sorrindo e pássaros trinando!

VII
Deixa meus olhos pretos,
Buliçosa menina de olhos pardos,
Réus de mil crimes, ídolo dos bardos,
Em nicho de sonetos.

E são lindos por quê? E nada dizes,
Toda cheia de rúbido vexame;
Bem percebo: felizes
Espelhos d’alma, pois há quem os ame
Com infantil recato,
Pelo galante e singular motivo:

Reproduzem, ao vivo,
Microscópico e lindo o teu retrato.

VIII
Vês tu, pálida moça,
Leve, pequeno, rústico, macio,
Aquele ninho em flor que se balouça
Sobre a esteira do rio?

É, minha vida, o tálamo propício
De avarento casal de aves pequenas,
Feito de musgo e penas
Num afetivo e mutuo sacrifício:
De lindos beija-flores
O delicado e morno domicilio...

Tenho eu, para aninhar-te, ave de amores,
A rosa de um idílio.

IX
Vejo-te; e sempre nesse lábio — rubro
E apetitoso pomo,
Pousa inquieto o sorriso, alegre como
Dourado inseto numa flor de outubro.

Há sol e aroma em teu vergel de amores,
Papeios de aves, frêmitos de beijos...
O meu? Tristonho e frio como os brejos,
Com invernadas sem luz, hastes sem flores,
Ninhos desmantelados
E asas mortas boiando num riacho...

Frios, inanimados,
Lá vão meus sonhos, desengano abaixo!...

X
Pensei partir sozinho,
Como um boêmio feliz, desconhecido,
Sem dar ao menos, triste e comovido,
Um ai! pelo caminho.

E partiria alegre, se assim fosse!
— O coração deserto,
Mas o lábio entreaberto
Num sorriso pueril, festivo e doce,
Tendo a vista embebida
Na encantadora e florida paisagem...

Mas levo o olhar, o coração e a vida
Cheios de tua imagem!...

XI
Vem à janela: aos pares,
Pelo tapis da balsa,
Como noivas e noivos numa valsa,
As borboletas giram pelos ares,

Ao ritmo inspirado,
Maravilhoso e peregrino misto
De risos e habaneras,
Que, tendo os alvos lírios por cenário,
Solta alegre, dulcíssimo, trinado,
O flautim de um canário.

Tua cabeça é isto:
Um bailado de alígeras quimeras!

XII
Esta tristeza amarga,
Esta saudade túrbida e violenta,
Que dentro em mim rebenta,
Como flor venenosa inculta e larga,

Toda a grandeza de minh'alma invade
E infiltra-me na veia
Do estro a plangente morbideza, que há de
Tornar-me a estrofe lacrimosa e feia.
Como nuvem que lança
Espessa nuvem de atra tempestade,

Pela minh'alma avança
Esta violenta e túrbida saudade!

 

DÉLIA

Esse ar, severo e torvo, de tragédia
Bem não te fica; e muito mais agrada
A ficção vaporosa e iluminada
De um olímpico trecho de comédia:

Nua, a forma divina, a prumo e nédia,
Dentro da madrepérola raiada
Em concha, à onda azul partindo, ousada,
A um par de cisnes empunhando a rédea;

Pó dourado no espaço; ouro espumante
Nos teus cabelos, todo um flavo instante,
Cheio de asas de rútilos insetos;

Engrinaldada pelas rosas da arte
Vem tu, cantando e rindo, debruçar-te
Nesta estreitada curva de sonetos.

 

A CUBANA

Estranho aspeto o desta flor! Crioula
De uma ilha talvez, pátria ridente,
Em que a luz queime e tenha, diariamente,
O brilho seco de uma lantejoula.

País claro, em que a alvíssima caçoula
Dos lírios murche, quando o sol no oriente,
E os plainos glaucos, áspera, ensanguente
De rubras flores a vernal papoula.

O corpo untuoso de lascívia hebraica,
Esta mulher, cujo destino ignoro,
Tem, que da fama os ídolos derruba;

E a mim, que a beijo, o vinho da Jamaica
Dá-me do lábio e, para mim, que a adoro,
Trouxe, nas carnes o verão de Cuba.

 

MISS ALMA

Formoso ser angélico, que deixas
Na esfera azul o iluminado friso
Do ouro fulvo e luzente das madeixas
E a claridade mansa de um sorriso;

Graça, feita de pérola e granizo,
Que as estrias do sol nas mãos enfeixas...
E assim tu vais, alada flor do Texas,
Como um anjo escalando o paraíso.

Misteriosa pomba, intrépida e alta,
Dos minaretes, numa tarde em brasas,
Que mais da glória o resplendor exalta...

Larva assombrosa, aérea e multiforme,
Na apoteose brilhante de um par de asas,
Deixando a seda de um casulo enorme!

 

GRISETTE

Daqueles céus e clima de Marselha
Traz, na lisa epiderme acetinada,
Ainda a alvura da neve pendurada
Em estalactite nos beirais de telha.

E é toda um quê simpático de ovelha
Fresca, arminosa, ebúrnea, ensaboada...
Tem o ar fresco e sadio de alvorada
E um aspeto gentil de flor vermelha.

Loira, tão loira como a deusa Ceres!
Entumece-lhe a carne um sangue farto
De arrás de barco ou moço de fálua;

Escandaliza a todas as mulheres,
Quando, pela manhã, deixando o quarto,
Leva o canário da alegria à rua!

 

SANGRINA

Rubra; rubro o vestuário e rubra a seda
Da umbrela aberta, ao jeito das caçoulas;
Com o cabelo alastrado de papoulas
Rompe o casulo verde da alameda.

De Habana, e a malagueta das crioulas,
— Sangue na guelra, espaventosa e treda,
Toda granada e punch em labareda,
Pondo na praça as criaturas tolas...

Como pandeiros, pende em cada orelha
Um halo de ouro, na explosão vermelha
De um perigoso e lúbrico salero;

E tanto mais provoca e escandaliza,
Por se saber ter vindo, a que aqui pisa,
Na sanguinária súcia de um toureiro!

 

ESTELA

Nápoles ri-se e, bêbedo, cascalha,
— Guizos na roupa, buzinando um corno,
Gondola a dentro, iluminada a giorno,
Que de luzes de cor o golfo coalha —

No Cosmorama vivido e canalha
Do seu olhar apaixonado e morno,
Quando, à mesa do lunch, homens em torno,
Ela sorri de uma lição bandalha.

Desafio insolente a toda prova
Os seus dois seios, de lascivo traço,
Apertados demais em seda nova;

E toda vibra quando se levanta
Daquele meio báquico e devasso:
Como que o vinho nos seus lábios canta!

 

SOFIA

Todo o ardor andaluz vibra e sacode
Seu corpo loiro e pequenino de ave,
Que rufle as asas e na luz se lave,
Sobre a agulha dourada de um pagode;

Flor peregrina donde a força explode,
— Águia nervosa espedaçando o entrave
Do amor faceiro ou de prisão mais grave,
Mas toda a força muscular de um bode!

Escorre-lhe de cima um sol dourado,
Se do flavo cabelo o pente arranca,
E é todo o corpo de Xerez lavado!...

O salero espanhol nos olhos tranca,
E aí vem, de pandeiro enguizolado,
A estudantina, ao luar de Salamanca!

 

DIVA

Vocifera a plateia, pintalgada
De aloiradas cabeças de cocotes
De papoula ao chapéu, e uma encarnada
Rosa sangrando a espuma dos decotes.

Preparam-se as lunetas na cerrada
Linha ansiosa e gentil dos camarotes,
Predominando a mancha delicada
Dos fidalgos buquês de miosótis.

Chamam-te os partidários irrequietos;
Pronunciam teu nome os indiscretos,
De alma suspensa e coração de rastro...

Pisas o palco; o público endoidece,
Tonto, na luz, como se ali tivesse
O estilhaço flamívomo de um astro!

 

ACROBATA

Lantejoulada flor! Lantejoulados
O dorso, o peito, o ventre e o veludilho
Das bombachas de escamas e vidrilho,
Ela me surge aos olhos deslumbrados.

Levando à boca os dedos apinhados,
Solta as asas de um beijo, e um riso, filho
Da canalhice, deixa ver o brilho
De um rosário de dentes esmaltados.

Subindo à corda a luminosa argila,
Para um trabalho do ar, inda não visto,
Ganha o aparelho numa pirueta;

E quando, alto e na luz, o corpo oscila,
Penso, trêmulo e pálido, que assisto
À aparição bizarra de um cometa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...