CONCERTANTE
Trajo de
baile; embriagadora cauda;
Pulcro e níveo
decote, amplo e deserto
De joia ou
flor, em frente ao piano aberto
Percorre a
partitura lauda a lauda.
Senhorial e
deslumbrante, ofusca
O salão cheio
da mais fina gente...
Eis que vibra
o teclado, de repente,
Como um
trinado, numa escala brusca.
Preludiava. Um
frêmito indeciso.
Na linha rósea
das senhoras passa:
Não há quem
tenha assim tão nobre graça,
Quem mais eleve
e humilhe num sorriso.
A régios
golpes de águia, a inveja e a inópia
O seu
contralto límpido suplanta,
Ao saírem-lhe
as notas da garganta,
Como estrelas
de uma áurea cornucópia.
Um quê de etéreo,
que se não define
imprime às vozes
do rimance lindo;
Vai na espiral
da música subindo
A alma branca e
dolente de Bellini.
Dá doçura ao
mais doce dos maestros,
Traduzindo-lhe
as mágoas e as quimeras;
Cantam,
soluçam duas primaveras,
Uma na boca
outra em seus dedos dextros!
Bênçãos
maternas, quando o filho parte
Ou para a vida
ou para a cova; tudo
Desliza sobre
um flácido veludo,
Numa vibrante
contextura de arte.
Livres, enfim,
das mundanais lisonjas,
No claustro, à
morta luz do alampadário,
Osculando Jesus
no breviário
Monges de cera
e amarguradas monjas.
Ermidas
brancas, catedrais em festa,
Brocado de
aras e ogivais damascos;
Sol coroando
palmas e penhascos
E, em lança,
abrindo o seio da floresta,
De cuja
entranha partem brumas e asas,
Vivas
palhetas, e um gorjeio de ouro;
Pombas
cortando a luz de um dia loiro,
Sobre uma
aldeia branquejando em casas.
Noivas
entrando as enfeitadas portas,
De braço aos
noivos, satisfeitas quase...
E, na nuvem sutil
dos véus de gaze,
A prónuba
ascensão das noivas mortas.
Ângelus de
azul pálido, hora viúva
Nos lilases do
ocaso amortalhada;
Tristes
meditações de amado e amada,
Quando à vidraça
tamborila a chuva.
Rosas de maio,
místicos misteres,
Fontes
chorosas e ermas borboletas:
Rescendência
de pálidas violetas
Sobre o colo
moreno das mulheres.
Ventos
bravios; garra crispa de ondas
Na harpa
sinistra e rota dos cordames
Embala a não,
a flor de dois estames;
E, após,
risadas e a canção nas mondas.
Rute cantando
alegre nas searas,
Coroada de
lúridas espigas:
Festa de moços
e de raparigas
Sob o véu outonal
das manhãs claras.
A infância
rindo e a viuvez chorando!
Trompas,
marchas de guerra e a própria guerra,
Tudo na nuvem
de harmonias erra
Em frouxo, em
brumo, em mal distinto bando.
Voos de valsa
nos salões do fausto...
Esta
afogueada, como flor purpúrea,
E vai outra
embalada na luxúria,
Segura ao
coração do par exausto.
Tudo me diz a
lânguida sonata,
E tudo
exprime, e tudo idealiza;
Mas só me
fala, nítida e concisa,
Dessa estranha
mulher, que me arrebata!
____________
O piano, mudo.
Alta impressão nas almas;
E outra vez ela
dominando a sala,
De pé,
sorrindo a maviosa opala,
Num temporal
de bravos e de palmas!
PÁGINA DE CARTA
Minha pálida
senhora:
Hoje,
estremunhado e insone,
Quando do
albor do cretone
Pus a cabeça
de fora,
Para
entregar-me ao martírio
De te escrever
esta carta,
Eu me supus a
lagarta
Que sai de
dentro de um lírio.
Doce tortura, contudo:
A de um romano
calouro
Dando
pamponilha de ouro
Sobre os
lavores do escudo,
Que há de
florear no torneio
De um circo
cheio de aroma,
Em cuja
bancada assoma
A dama do
nosso enleio;
Lançando o
olhar de ciúme
Para um lutador
da praça;
E traz o cabelo
em massa,
Todo lavado em
perfume!
Pois eu bem
sei que estas linhas
Vão te passar
pela mente,
Como num
vermelho poente
Um pelotão de
andorinhas
Que de alva
prata faceta
O verde-mar,
aos salpicos,
Com o fino
cinzel dos bicos
E a ponta de asa,
em lanceta;
Rabiscando à flor
das ondas
Leve, tão
leve, que eu mesmo,
Bordando esta
carta a esmo,
Nem quero que
ma respondas!
Quero, entretanto,
que a leias,
Para que
aspires com ânsia
A capitosa fragrância
De que as
palavras vão cheias;
Pois eu
repassei tudo isto
Do óleo, não
mais hoje em voga,
Que a rosa da
sinagoga
Punha às melenas
de Cristo...
E — oh! loira
de Lachapelle!
Devia este meu
bosquejo
Ser traçado,
beijo a beijo,
No cetim de tua
pele,
Deixando um
sulco violáceo
Pelo teu corpo
alvo e lindo,
— Roxa epomeia
subindo
Colunatas de
um palácio,
A equilibrar
sem esforço
De arte belezas
eternas:
A pompa de
duas pernas
Sustendo a glória
de um torso.
Que eu fuja da
frase tosca
E só procure a
riqueza
Da filigrana chinesa,
Rendilhada em
prata fosca,
Com que dou
vida a esta folha
De papel, como
a paisagem,
Em
microscópica imagem
Dá cor e vida
a uma bolha,
Deves achar coisa
estranha
E ficas, trêmula
vespa,
Corpo dourado
e asa crespa,
Segura à teia
de aranha.
Mas vendo num
rubro cinto
O sol, que, enfim,
tudo pode.
Sacode as
asas, sacode,
E larga do labirinto!
INSOLÊNCIA DA CARNE
Da escura dor
que esta paixão conquista
Uma alegria
audaz salta e gargalha,
Tal como um Mefistófeles
farsista
Rompendo,
rindo, a renda da mortalha.
Todo o perigo
deste amor afronto!
Que a tua
carne lúbrica embebeda
E me faz dar,
divinamente tonto,
Em teu regaço
deliciosa queda.
Que tem um
erro, flor? Aos mais que importa
Que eu do
vinho dos beijos me socorra,
Desde que para
a luz se me abre a porta
Nesta, de mágoas,
infernal masmorra?!
Dizendo irei a
todos, na áurea trompa
Do verso, o
mal que no meu seio medra;
Limpo, quem
seja, me condene e rompa
A hostilidade
com a primeira pedra.
Mais vinho!
Mais a essência capitosa
De teu cabelo
e de teu colo; é pouca
A que me vem
da tua face em rosa...
Põe tua boca
sobre a minha boca!
Já não tem a
razão leis que me imponha;
Puros e justos
nada têm que eu peque;
E se alguém
rir quiser desta vergonha,
Esconde o
rosto na asa de teu leque.
O ébano
quente, a perfumosa treva
Da cabeleira olímpica
desnastra,
E sobre a impudicícia
— oh! filha de Eva!
Da minha doida
embriaguez alastra...
De teu olhar o
fluido me eletrize
Em tão
paradisíaco regalo;
E nessa
extrema e voluptuosa crise
Salte o teu
seio para eu só beijá-lo.
Do pecado e do
crime a apoteose
Com toda pompa
o nosso amor celebre;
Tem cheiro,
este excitante, em alta dose
Que me
desvaire e me alucine a febre.
Corpo cheiroso,
oh! delicado aroma
De mulher nova
muito amada e forte,
Dá-me a luxúria
dos festins de Roma
E, entre as névoas
do sonho, o gozo e a morte!
Nem vejo mais!
Tudo ante mim vacila...
Só vejo a taça
em que a loucura sorvo...
Já tua trança
desatada oscila
Num revérbero
azul de asa de corvo...
Mais eu me
rio, mais me aqueço e estorço,
Quanto mais o
teu vinho me embriaga;
Sobe-me um calafrio
pelo dorso,
E todo o espasmo
do prazer me alaga!...
Venha depois a
farejante hiena
Do ódio
implacável me seguindo os passos,
Que há de me
achar, oh! doce Madalena!
Crucificado e
flébil nos teus braços!
A UMA INFELIZ
Minha franzina
e pálida senhora:
Tens no
inclinado e rórido semblante
A expressão
desolada e sofredora
Do quase morto
lírio do Levante.
Tu, que vieste
da melancolia
— Religioso e
doce misticismo!
Do alvo e
cheiroso seio de Maria,
Desces a rampa
festival do abismo.
Nesse declive
pérfido da vida,
Claro, alegre,
mendaz e todo em áscua,
Não volta
nunca o bálsamo à ferida,
Não volta mais
ao coração a páscoa!
A ave, que o
peito inflado dilacera,
Garganteando
nos beirais da estrada,
Não canta o
sol nem salva a primavera
Vive chorando
a asa materna e amada!
Se tua alma
geme, lacerada e aflita,
Nas
inclementes garras do desgosto,
Deixa em silêncio
a lágrima bendita
Banhar-te a
extrema palidez do rosto;
Que há de
arrancar-te, alfim, dessa tristeza,
Num aromado
nimbo de saudade,
Para as
alturas mansas da pureza
O claro beijo
da maternidade!
FIDALGA
Fosse o meu
verso um escopro,
Fosse um buril
esta pena,
E emergiria,
serena,
Como animada
de um sopro,
Essa, que a
alvura propala,
Tomando Vênus
por norma,
Ter o conjunto
da forma
Todo lavrado
em opala!
Essa por quem
eu padeço,
Essa por quem
dera tudo
Para tocar o
veludo
Dos seus
vestidos de preço.
Senhora por
quem eu morro,
Vendo-lhe a pluma
de garça,
Como um punhal
- que disfarça.
Vir espetado
no gorro.
Rainha e dona
suprema
De todas as
flores, todas!
Que há de ter
carícias doidas
E delicadeza
extrema
Para os finos
heliótrops,
Lírios,
jasmins, malvaíscos,
Tombando em
vasos mouriscos,
Murchando n'água
dos copos.
Mesmo para o
seu canário
Cor de jaldes
de Friburgo,
Roubado a um feld em Hamburgo,
Trazido por um
corsário,
Que (a
indiscrição não me intrigue)
Era um rapaz
de Corinto,
Pistola e
punhal no cinto,
Dono de um cão
e de um brigue.
Com as pombas,
com qualquer coisa
Que tenha
vestígios de arte,
Toda a sua alma
reparte,
Dá-lhes
cuidado de esposa.
Tenho-lhe amor
tão intenso,
Que já do
verso extravasa:
Foi a luz
dentro de casa,
Foi um perfume...
no lenço!
Paixão, que
outra força doma,
Mas que se a
vê toda crespa
Como, raivosa,
uma vespa
Por dentro de
uma redoma.
É o meu poema
de queixas
Essa rival das
Ofélias;
Alva, da cor
das camélias,
Loira, da cor
das ameixas!
Primor, que em
versos arranjo,
Ela o possui,
como escravo:
Tem toda a,
pompa de um Cravo
E o misticismo
de um anjo,
Essa orquídea
dos caprichos,
Que em seu róseo
gabinete
Afoga os pés num
tapete
Feito de paina
de bichos.
E algumas bocas
dão curso
À novidade
seguinte:
Tem no chão,
como um requinte,
Rara e branca
pele de urso,
Que a língua
apresenta, a gorja
E a boca de
ares sanhudos,
Aberta em
dentes agudos,
Rubras,
lembrando uma forja;
Cabeça de pelo
hirsuto,
Olho vidrado,
de fera;
Garras de
tigre e pantera,
Toda a fereza
de um bruto,
Deitado ao
lado da mesa
Onde ela
invoca as imagens,
— Belo charão
de ramagens,
Trabalho de arte
chinesa.
Nem sei como
eu me aproximo,
Por certo
prisma risonho,
Dessa mulher,
que é um sonho,
Dessa mulher,
que é um mimo;
Que no trajo
preto leva
Toda uma luz espontânea,
Como o diamante
de Urânia
No estofo
negro da treva.
Que essa
titular esbelta,
Essa franzina
fidalga
Tem a
elegância da galga
E todo o
aprumo de um celta.
Traz um
perfume, que alarma
Todo o lugar
onde passa:
Como as duquesas
de raça,
Como as
violetas de Parma;
Beleza cheia
de audácia,
Dona do
encanto das Musas,
Como a flor
das andaluzas
É dona, enfim,
de “la gracia!”
Mas deste amor
todo o fausto,
O luxo, o ruído
que encerra,
É como o
esplendor da guerra,
A festa de um
holocausto.
Fosse o meu
verso um escopro,
Fosse um buril
esta pena,
E emergiria,
serena;
Como animada
de um sopro,
Essa, que a
alvura propala,
Tomando Vênus
por norma,
Ter o conjunto
da forma
Todo lavrado
em opala!
ESTRELÁRIO
(A Oscar Rosas)
I
Como,
indolente e a custo,
Fantasiando o
extravagante quiosque
Todo de seda e
de marfim vetusto,
Onde a hera se
enrosque,
Gasta o seu
tempo o japonês malandro,
Assim, minha
querida,
Eu vou
dispondo um trabalhoso meandro,
Um dourado
arabesco,
Pelos beirais da
tua alegre vida,
— Lago atufado
de astros e ninfeias...
E farei do
reduto pitoresco
O estrelário
da rima e das ideias.
II
Quando eu te
vejo flor, vem-me à cabeça
Uma linda
pastora arcadiana,
Feita de porcelana,
Que eu já vi
no boudoir de uma condessa.
Olhos
travessos e maçãs salientes,
Se te mostras
sorrindo;
São teus
lábios, arqueados sobre os dentes,
Como dois gonos
de laranja-cravo.
Cantando o
verso lindo,
Que eu nesta avena
trêmula acompanho,
Acompanha-te,
escravo,
Dos ideais o
fúlgido rebanho.
III
Olha este mar
de rosas
Da mocidade,
filha, como é lindo!
A fantasia, de
asas milagrosas,
Vai cantando e
fugindo
Sobre a larga,
planura; e como brilha
Este luar estranho,
Como um véu escumilha,
Perfumado nó sândalo
de um banho!...
Vamos seguir a
fantasia alada,
Que rompe o
canto e o páramo brilhante,
Oh! peregrina
amante,
Do meu amor na
gondola dourada!
IV
Amorosa e
tafula
Pomba da mata,
ebúrnea e delicada,
Que, aos
primeiros incêndios d’alvorada,
Salta do
ninho, e pula
De bromélia em
bromélia, galho a galho,
Pipilante e
modesta,
Entre o rumor
e a garganteada festa
Dos tenores,
com pérolas de orvalho
Sobre o matiz
das plumas,
Que andam,
ruflando pelo bosque, à toa...
Rompe o
segredo e as brumas,
Abre as asas na
luz, e canta, e voa!...
V
Compõe a
trança e vamos,
De braço dado,
pela vida afora:
Tudo palpita
agora,
Ninhos e
flores, pássaros e ramos,
Nesta manhã de
amor; asas e albores
Vão matizando
o espaço;
De manso cairão
no teu regaço
Pérolas d’água,
um temporal de flores!
Vamos vagar na
perfumada plaga,
Oh! flor das
Julietas,
Como, entre lírios
e amarantos, vaga
Um par de
borboletas.
VI
Não te
desperta a música longínqua
Da rainha lira,
em trovadora festa,
Nem as
zarzuelas desta
Luz ruflante,
aurorial, que se apropinqua.
Hoje, de tudo
zombas,
Lírio
aljofrado e estivo;
Vão só de afeto
imaculadas pombas
Em teus sonhos
roçar, de quando em quando.
Que do teu
seio alvíssimo rebente
O amor,
gloriosamente,
Num turbilhão
festivo
De anjos
sorrindo e pássaros trinando!
VII
Deixa meus
olhos pretos,
Buliçosa
menina de olhos pardos,
Réus de mil
crimes, ídolo dos bardos,
Em nicho de
sonetos.
E são lindos
por quê? E nada dizes,
Toda cheia de
rúbido vexame;
Bem percebo:
felizes
Espelhos d’alma,
pois há quem os ame
Com infantil
recato,
Pelo galante e
singular motivo:
Reproduzem, ao
vivo,
Microscópico e
lindo o teu retrato.
VIII
Vês tu, pálida
moça,
Leve, pequeno,
rústico, macio,
Aquele ninho
em flor que se balouça
Sobre a
esteira do rio?
É, minha vida,
o tálamo propício
De avarento
casal de aves pequenas,
Feito de musgo
e penas
Num afetivo e
mutuo sacrifício:
De lindos
beija-flores
O delicado e
morno domicilio...
Tenho eu, para
aninhar-te, ave de amores,
A rosa de um idílio.
IX
Vejo-te; e
sempre nesse lábio — rubro
E apetitoso
pomo,
Pousa inquieto
o sorriso, alegre como
Dourado inseto
numa flor de outubro.
Há sol e aroma
em teu vergel de amores,
Papeios de
aves, frêmitos de beijos...
O meu?
Tristonho e frio como os brejos,
Com invernadas
sem luz, hastes sem flores,
Ninhos
desmantelados
E asas mortas
boiando num riacho...
Frios,
inanimados,
Lá vão meus
sonhos, desengano abaixo!...
X
Pensei partir sozinho,
Como um boêmio
feliz, desconhecido,
Sem dar ao
menos, triste e comovido,
Um ai! pelo
caminho.
E partiria
alegre, se assim fosse!
— O coração
deserto,
Mas o lábio
entreaberto
Num sorriso
pueril, festivo e doce,
Tendo a vista
embebida
Na encantadora
e florida paisagem...
Mas levo o
olhar, o coração e a vida
Cheios de tua
imagem!...
XI
Vem à janela:
aos pares,
Pelo tapis da
balsa,
Como noivas e
noivos numa valsa,
As borboletas
giram pelos ares,
Ao ritmo
inspirado,
Maravilhoso e
peregrino misto
De risos e
habaneras,
Que, tendo os
alvos lírios por cenário,
Solta alegre, dulcíssimo,
trinado,
O flautim de
um canário.
Tua cabeça é
isto:
Um bailado de
alígeras quimeras!
XII
Esta tristeza
amarga,
Esta saudade
túrbida e violenta,
Que dentro em
mim rebenta,
Como flor
venenosa inculta e larga,
Toda a
grandeza de minh'alma invade
E infiltra-me
na veia
Do estro a
plangente morbideza, que há de
Tornar-me a
estrofe lacrimosa e feia.
Como nuvem que
lança
Espessa nuvem
de atra tempestade,
Pela minh'alma
avança
Esta violenta
e túrbida saudade!
DÉLIA
Esse ar,
severo e torvo, de tragédia
Bem não te
fica; e muito mais agrada
A ficção
vaporosa e iluminada
De um olímpico
trecho de comédia:
Nua, a forma
divina, a prumo e nédia,
Dentro da madrepérola
raiada
Em concha, à onda
azul partindo, ousada,
A um par de cisnes
empunhando a rédea;
Pó dourado no
espaço; ouro espumante
Nos teus cabelos,
todo um flavo instante,
Cheio de asas de
rútilos insetos;
Engrinaldada
pelas rosas da arte
Vem tu,
cantando e rindo, debruçar-te
Nesta
estreitada curva de sonetos.
A CUBANA
Estranho aspeto
o desta flor! Crioula
De uma ilha
talvez, pátria ridente,
Em que a luz
queime e tenha, diariamente,
O brilho seco
de uma lantejoula.
País claro, em
que a alvíssima caçoula
Dos lírios
murche, quando o sol no oriente,
E os plainos
glaucos, áspera, ensanguente
De rubras
flores a vernal papoula.
O corpo
untuoso de lascívia hebraica,
Esta mulher,
cujo destino ignoro,
Tem, que da
fama os ídolos derruba;
E a mim, que a
beijo, o vinho da Jamaica
Dá-me do lábio
e, para mim, que a adoro,
Trouxe, nas
carnes o verão de Cuba.
MISS ALMA
Formoso ser
angélico, que deixas
Na esfera azul
o iluminado friso
Do ouro fulvo
e luzente das madeixas
E a claridade
mansa de um sorriso;
Graça, feita
de pérola e granizo,
Que as estrias
do sol nas mãos enfeixas...
E assim tu
vais, alada flor do Texas,
Como um anjo
escalando o paraíso.
Misteriosa
pomba, intrépida e alta,
Dos minaretes,
numa tarde em brasas,
Que mais da glória
o resplendor exalta...
Larva
assombrosa, aérea e multiforme,
Na apoteose
brilhante de um par de asas,
Deixando a
seda de um casulo enorme!
GRISETTE
Daqueles céus
e clima de Marselha
Traz, na lisa
epiderme acetinada,
Ainda a alvura
da neve pendurada
Em estalactite
nos beirais de telha.
E é toda um
quê simpático de ovelha
Fresca,
arminosa, ebúrnea, ensaboada...
Tem o ar
fresco e sadio de alvorada
E um aspeto
gentil de flor vermelha.
Loira, tão
loira como a deusa Ceres!
Entumece-lhe a
carne um sangue farto
De arrás de
barco ou moço de fálua;
Escandaliza a
todas as mulheres,
Quando, pela
manhã, deixando o quarto,
Leva o canário
da alegria à rua!
SANGRINA
Rubra; rubro o
vestuário e rubra a seda
Da umbrela
aberta, ao jeito das caçoulas;
Com o cabelo
alastrado de papoulas
Rompe o casulo
verde da alameda.
De Habana, e a
malagueta das crioulas,
— Sangue na guelra,
espaventosa e treda,
Toda granada e
punch em labareda,
Pondo na praça
as criaturas tolas...
Como
pandeiros, pende em cada orelha
Um halo de ouro,
na explosão vermelha
De um perigoso
e lúbrico salero;
E tanto mais
provoca e escandaliza,
Por se saber
ter vindo, a que aqui pisa,
Na sanguinária
súcia de um toureiro!
ESTELA
Nápoles ri-se
e, bêbedo, cascalha,
— Guizos na
roupa, buzinando um corno,
Gondola a
dentro, iluminada a giorno,
Que de luzes
de cor o golfo coalha —
No Cosmorama
vivido e canalha
Do seu olhar
apaixonado e morno,
Quando, à mesa
do lunch, homens em torno,
Ela sorri de
uma lição bandalha.
Desafio insolente
a toda prova
Os seus dois
seios, de lascivo traço,
Apertados
demais em seda nova;
E toda vibra
quando se levanta
Daquele meio
báquico e devasso:
Como que o
vinho nos seus lábios canta!
SOFIA
Todo o ardor
andaluz vibra e sacode
Seu corpo loiro
e pequenino de ave,
Que rufle as
asas e na luz se lave,
Sobre a agulha
dourada de um pagode;
Flor peregrina
donde a força explode,
— Águia
nervosa espedaçando o entrave
Do amor
faceiro ou de prisão mais grave,
Mas toda a
força muscular de um bode!
Escorre-lhe de
cima um sol dourado,
Se do flavo
cabelo o pente arranca,
E é todo o corpo
de Xerez lavado!...
O salero espanhol
nos olhos tranca,
E aí vem, de
pandeiro enguizolado,
A estudantina,
ao luar de Salamanca!
DIVA
Vocifera a plateia,
pintalgada
De aloiradas
cabeças de cocotes
De papoula ao chapéu,
e uma encarnada
Rosa sangrando
a espuma dos decotes.
Preparam-se as
lunetas na cerrada
Linha ansiosa
e gentil dos camarotes,
Predominando a
mancha delicada
Dos fidalgos buquês
de miosótis.
Chamam-te os
partidários irrequietos;
Pronunciam teu
nome os indiscretos,
De alma
suspensa e coração de rastro...
Pisas o palco;
o público endoidece,
Tonto, na luz,
como se ali tivesse
O estilhaço
flamívomo de um astro!
ACROBATA
Lantejoulada
flor! Lantejoulados
O dorso, o
peito, o ventre e o veludilho
Das bombachas
de escamas e vidrilho,
Ela me surge
aos olhos deslumbrados.
Levando à boca
os dedos apinhados,
Solta as asas de
um beijo, e um riso, filho
Da canalhice,
deixa ver o brilho
De um rosário
de dentes esmaltados.
Subindo à corda
a luminosa argila,
Para um
trabalho do ar, inda não visto,
Ganha o aparelho
numa pirueta;
E quando, alto
e na luz, o corpo oscila,
Penso, trêmulo
e pálido, que assisto
À aparição
bizarra de um cometa.
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