IMPRESSIONISTAS
(A César de Lima Campos)
I
Morto solar,
de velhas arcarias!
A arquitetura
podre, derrocada;
Torres caídas,
mármores de escada,
Grossas paredes
úmidas e frias.
Pela extensão
das câmaras vazias,
A nua ogiva,
de hera pendurada;
Rotos painéis,
a cúpula furada,
Larga sombra
de vastas galerias!
Por toda a ruína
um tumular sossego...
Só, por baixo
das árvores daninhas,
Zunem rápidas
asas de morcego...
No merencório
corpo da capela,
Para aquecer
as pobres andorinhas,
Entra um raio
de sol pela janela!
II
Nos alcantis aspérrimos
da ilhota,
Cheios de
musgo e arbustos enfezados,
Vão repousar alcíones,
chegados
De uma paragem
úmida e remota.
Mas quando os
pés nesses rochedos bota
Aquele par de estranhos
namorados,
De binóculo em
punho e braços dados,
Para mais
longe os pássaros enxota:
Um mundo de
asas pelo mar se espalha!
E, no rubro
clarão de uma fornalha,
Escalda o
poente, ensanguentando a frágoa.
Enquanto o par
não volta, a onda geme
E o barco
espera-o, de patrão ao leme,
— Mão no caniço
e linha dentro d’água.
III
Dão para o
golfo as duas janelinhas
Do seu chalé
de banho, provisório,
Edificado
sobre um promontório,
Todo cheio de
garças e andorinhas.
A perspectiva
e as virações marinhas
Melancolizam-lhe
o viver simplório,
Naquele ninho
esconso, roxo e flóreo,
Enramado de pâmpanos
e vinhas,
Como gentil
habitação da Holanda,
De gaiolas no
teto da varanda,
Quadros de
campo e rústica mobília...
Conchas,
búzios, corais sobre o console,
E ela entre
galgos, alquebrada e mole,.
Perto do mar e
longe da família!
IV
Tem a sua
cabana entre os abetos
E as
verdejantes árvores do Minho,
Aquela aldeã, aquele
diabinho
De lustrosos
cabelos e olhos pretos.
Quando o sol
nasce e a pomba sai do ninho,
E bicos de
aves abrem-se em duetos,
Pés, que se
ajustam num destes quartetos,
Mete-os,
descalços, no íngreme caminho,
Arrebanhando
as cabras e os novilhos,
Que pela
ervagem úmida dos trilhos
Vão retouçando
e mugem de alegria...
E vê-se a
aldeia: aljôfares de neve
Estrelejando
as messes; e de leve,
Cantam no
eirado e resplandece o dia!
V
E tu não
voltas, corça foragida
Do meu
albergue rústico e tranquilo!
Onde vais tu
achar um outro asilo,
Feliz e pobre,
que te adoce a vida?!
Das
trepadeiras vírides despida
Cai-me a
choupana, onde aninhou-se o grilo;
Nem mais um
trino, um trínulo pipilo
De andorinha,
nas telhas escondida!
Teias de
aranha e o musgo esverdeado
Cobrem o teto
e as midas paredes
Do nosso
quarto, mudo e abandonado;
Tristes e
murchas as orquídeas; morta
A madressilva
de olorosas redes,
Que era o
alpendre florífero da porta!...
VI
Trago-te
agora, em trêmulo debuxo,
Mal desenhado,
o nosso ninho agreste,
Conforme o
plano e explicações que deste,
— Claro, alegre,
pequeno, mas sem luxo.
Vê — um lar
amoroso e pequerrucho,
De fachada lirial
para o nordeste;
E um gramado
jardim, que talvez preste
Para fazer-se
um lago com repuxo.
Reina o bom
gosto, o nosso gosto, em tudo;
Saem das
beiras do telhado agudo
Pombas criando
e lambrequins chineses:
Cortinas
brancas na janela, em cujo
Fundo aparece
o rastozinho sujo
De um risonho
fedelho de dez meses!
VII
Habita a inglesa
um sítio de recreio,
Avarandado e
de gradil na frente.
Em cima — as
frondes do pomar virente,
O campo ao
lado e o muro de permeio.
Sai da cascata
um cristalino veio,
Que entre
seixos escapa-se fremente;
Um flamboyant
por fora do batente,
De borboletas
e de flores cheio!
E sobre o lago
do jardim florido,
De esquisita gramínea
guarnecido,
Como a moldura
de um redondo espelho,
No verde cru
das folhas espalmadas,
Pelos raios do
sol envernizadas,
Abre a corola
um nenúfar vermelho.
VIII
Abrem duas
janelas para a rua,
Com trepadeira
em arcos de taquara;
A cortina de
renda, larga e clara,
Alveja ao
fundo da vidraça nua.
Em frente o
mar, e sobre o mar a lua,
A estrelejar a
onda que não para;
Afiara asas por
cima e solta a vara,
N'água
brilhante, o mestre da fálua.
Ecos noturnos
e o rumor estranho
Da meninada
trêfega no banho
Voam da praia
ao chalezinho dela;
Move-se um
corpo de mulher, no escuro;
Gira, após, o
caixilho; e o luar puro
Ilumina-lhe o
busto na janela!
IX
Setembro
invade o azul de sol brilhante!
E em noites
quietas o luar ensopa
De claridades
lânguidas a copa
Da amendoeira
larga e florejante.
A primavera, a
deusa flutuante,
Nas borboletas
céleres galopa...
Em cada flor
uma ilusão se topa,
E um beijo, e
um riso em cada lábio amante!
Carregando
partículas de cisco,
Para fazer o
ninho nos pomares
Chega da serra
o passarinho arisco;
E é outro o
amor, outra a canção nas mondas,
Vida nas
praias, pombos d’água, aos pares,
Balanceados no
ápice das ondas!...
X
Fim de tarde
serena e violentada...
No céu — duas estrelas,
e arrepios
Na safira do
mar, toda coalhada
De emaranhados
mastros, de navios.
Longe, entre névoas,
traços fugidios.
De uma cidade
branca derramada
— Casas,
torreões e coruchéus esguios,
Por toda a
clara fita da enseada...
Aqui bem
perto, aqui, na argêntea praia,
Contra um
rochedo nu, calcário e rudo,
Do poente a
frouxa claridade estampa,
Balouçando-se
n'água, uma catraia;
E, agasalhados
no gibão felpudo,
Pescadores que
vão subindo a rampa...
XI
Lembrei-me, há
dias, de ir viver na roça,
Entre sombras
de chácara verdoenga,
Numa casinha,
a imitação flamenga,
Ou mesmo
dentro de uma pobre choça,
Sobre a
montanha; um sítio de araponga,
Onde, se tu me
acompanhar quiseres,
Acharás o
preciso aos teus misteres,
Prevendo o
caso de uma estada longa.
Mas que da
nossa habitação tranquila
Aviste-se o
caminho, a igreja, a vila,
O rio, a
ponte, as terras de lavoura...
Pode ser que a
mudança te aproveite
E eu veja ao
colo, a te chupar o leite,
Um róseo
anjinho de cabeça loira!
XII
Ensombra a
porta e as rústicas janelas,
Que às borboletas
brancas dão passagem,
Carramanchel
de rosas amarelas,
Estrelando a
verdura da ramagem.
Curva-se a
rede embaixo das capelas...
— Pé, cabeleira,
braços e roupagem,
Roçando o chão
e o pelo das chinelas
Tudo
transborda em confusão selvagem.
O morno sol,
coado numa fresta,
Morde-lhe a boca,
a pálpebra cerrada
E a mão, no
seio, em posição honesta...
E naquela
penumbra perfumada,
Como querendo arrebatá-la
à sesta
Solta um
canário trínula risada!
XIII
Um chalezinho
tosco, um ninho a jeito,
Para um casal
de alegres cotovias,
Entre um maciço
de árvores sombrias,
Pequenino,
romântico, bem feito;
Cortinas
brancas no rendado leito
De uma câmara
azul, e noites frias!
O sol vindo
aloirar todos os dias
A madressilva
sobre o parapeito;
Pombas
nervosas e arrufados pombos
Em pelejas
equívocas, aos tombos
Sobre o
telhado; orquídeas nas paredes;
Cheiros que exalam
quando rompe a aurora,
Canções,
risadas, pássaros por fora,
Dentro do
ninho, então — eu e Mercedes!
XIV
Guarda o
mastim, como fiel amigo,
Na quentura do
sol, deitado à porta,
O parreiral,
as árvores, a horta
E o que pertence
ao isolado abrigo.
Quatro casais de
pombos no telhado,
Batendo as asas
com ruidoso alento...
Além — nesgas
azuis de firmamento,
Embaixo — o
pasto e velho boi deitado.
Andam aragens
matinais e frescas
Castanholando
as palmas do coqueiro
Enredado de silvas
pitorescas...
Resplende o
sol! E, junto do moinho,
Entre os
brancos florões do jasmineiro,
Um beija-flor
dourado tece o ninho.
XV
Um ninho! um
ninho preso estreitamente
Ao pender
vicejante da colina;
O frontispício,
às tardes, ilumina
A flama de ouro
e púrpura do poente.
A hera trepa e
invade toda à frente:
Tapa a caliça
e o teto contamina,
Cai na janela,
em forma de cortina,
É desce à porta,
caprichosa e rente.
Rosas abertas,
lúbricas, vermelhas,
— Éden da
vista e pasto das abelhas,
Bordam o quadro
da gentil morada;
Dentro, todo o
requinte da elegância:
Quadros,
estofos, música, fragrância...
E a fidalga
senhora enfastiada!
VALE DE LÍRIOS
(A minha mulher)
Canção palomba
Há uns laivos
riços de papoula
No ocaso,
longe, além do outeiro,
Ocaso de ocre
e lantejoula;
E anda uma só,
tardia rola
A entristecer
o bosque inteiro:
Cativeiro, cativeiro;
Mas, de arma
ao ombro, o meu caminho
Eu vou
seguindo aventureiro;
E vou
pensando, então, sozinho,
Naquela voz de
passarinho
Que enche de mágoa
o caminheiro:
Cativeiro, cativeiro...
É quase noite,
e vejo perto
A pobre casa
de um roceiro;
Em derredor —
tudo deserto!
Mas há de
haver um rancho aberto,
Sem este
dístico agoureiro:
Cativeiro, cativeiro...
Meditativo e
extenuado,
Sentei-me no
alto de um terreiro,
Ouvindo sempre
do meu lado,
Onde alvacento
e sossegado
Abre-se em
flor um espinheiro:
Cativeiro, cativeiro...
Além, além,
tenra lavoura
De um montanhês
ou de um foreiro,
Da gente, enfim,
trabalhadora...
E em chama
rubra, em chama loira,
Queimadas vão
subindo o aceiro.
Cativeiro, cativeiro...
Deste outro
lado, estrada à riba,
A tropa e a
trova de um tropeiro;
Fulvos
listrões do Paraíba;
Rema, de covo
e pindaíba,
Tristonhamente
um canoeiro.
Cativeiro, cativeiro...
Descanso à porta
da choupana
O polvarinho,
a arma e o chumbeiro;
Tiro o chapéu,
e uma serrana
Dá-me a beber,
dá-me uma cana
Cortada ali no
seu canteiro...
Cativeiro, cativeiro...
Arranco a faca
da cintura...
(Sedento estou
como um rafeiro)
Olha-me a
ingênua criatura
Como quem diz:
se mais fartura
Meu pai
tivesse, ou então dinheiro...
Cativeiro, cativeiro...
A bendizer a
minha vinda
Ela estudava
um ar faceiro;
Eu olho-a
sempre, eu olho-a ainda...
Mas esta moça,
que é tão linda!
Mas este
olhar, que é tão fagueiro!
Cativeiro, cativeiro...
Já no silêncio
expira o dia,
Um dia quente
de janeiro;
Dá muito longe
— Ave Maria...
E uma cristã melancolia
Há no momento
derradeiro.
Cativeiro, cativeiro...
Quando ao
partir — é noite quase!
Quero ser
grato e cavalheiro,
Ela retruca à minha
frase:
— Pois com o
senhor, moço, se case
Uma lindeza de
dinheiro...
Cativeiro, cativeiro...
Agora amargo,
ermo e tristonho
Era o seu doce
olhar fagueiro;
Nem mais o
lábio era risonho
Quando, sem
luz, de pé me ponho,
Como um
fantasma, no terreiro...
Cativeiro) cativeiro...
Descarregar
minha espingarda
Eu quis,
depois, sobre o espinheiro...
Ai! pomba
rola, ai! rola tarda!
Hoje te
aninha, hoje te guarda
Meu coração,
de bandoleiro!
Cativeiro, cativeiro...
NOSSO PAI
— Bendito,
santo, louvado seja...
Coro de glória,
dentro da igreja,
Para a agonia
do espaço vem;
O óleo da mágoa
na tarde escorre,
Que é como um lírio:
rescende e morre.
Belém!...
Belém!...
Cabeças nuas e
mãos no peito,
Joelhos
quebrados; unção, respeito,
Mulheres e
homens no rosto têm;
E agora o
canto do excelso rito
É a melopeia
de um só Bendito:
Belém!...
Belém!...
A hora suprema
no azul roxeia;
E os casais tristes
da pobre aldeia,
Montes e vales
— roxos também!
Paixão dorida
por tudo e em tudo;
Na harpa
calada do instante mudo...
Belém!...
Belém!...
Sol do
Calvário que, enfim, morreste!
Tanta saudade,
tanto cipreste
No horto do
Sonho — Jerusalém.
Pretorianos de
lança em riste.
Que luz viúva,
que moça triste!
Belém!...
Belém!...
Pálio de seda
levando o padre...
— Que o Cão
Maldito nunca mais ladre
Contra a doçura
do Extremo Bem;
Samarra negra,
brancor de linho,
Como a pureza
de um cordeirinho...
Belém!...
Belém!...
Melancolia,
goivo nas almas;
E um pombo
branco, de asas espalmas,
Que a todos
toca, não o vê ninguém.
Flores e frutos,
plumagens de ave,
Tudo silente,
de roxo e grave.
Belém!...
Belém!...
Louvado seja,
doce Maria,
O Sacramento
da Eucaristia,
Bendito o fruto,
Jesus. Amém.
— Que fim de
tarde tão merencório!
Como o silêncio
de um oratório.
Belém!...
Belém!...
Pálio
estendido, céu estrelado,
Com o padre
simples, acompanhado
Da gente
humilde, que segue além...
E abrem contrita,
pungida tropa,
Irmãos
piedosos, de círio e opa.
Belém!...
Belém!...
Bronze
sagrado, pequeno sino
De som
plangente, mortuário e fino,
Vibrado sempre
por mão de alguém;
Ah! como a
tarde roxa esmaece,
Vivendo a
sombra, morrendo a prece...
Belém!...
Belém!
Alma exalante
de um flébil goivo,
Jesus ferido
seja teu noivo,
Votes à argila
manso desdém;
Vida e doçura,
esperança nossa,
Tua asa de
anjo por tudo roça!
Belém!...
Belém!...
Oh! Agnus
branco do Amor nascido,
Ouço o teu
brando, frouxo balido...
Imaculada,
casta Cecém,
Hóstia de
leite, Lua da torre,
Dê o teu trigo
Pão a quem morre!
Belém!...
Belém!...
MEIO DIA
I
Dantes, eu era
pobre menino...
Como estas
horas, como este sino,
Trazem-me
langue recordação!
Silenciava...
Conchego de asa
Por sobre as
telhas de minha casa,
Com pombas
brancas, que vêm e vão.
Blão!
II
Tão pobrezinho
que eu dantes era!
Nem tudo é
rosa nem primavera,
Céus estrelando,
florindo o chão;
Porque assim
enches, oh! minha infância,
De mais
saudade, de mais fragrância
A ermida
triste do coração?
Blão!
III
Luz modorrenta
do meio dia,
Banhando as
casas da freguesia,
Calmos
instantes de lassidão...
Pássaros
quietos, empoleirados;
De orelhas
murchas e olhos fechados,
Deitado à porta
meu velho cão.
Blão!
IV
— Cristo
nascera — clarina o galo:
Meu pai
mandando ver o cavalo,
Para a lavagem
mais a ração.
As cordas de ouro
da luz tinindo,
E um ar
parado, calmoso e lindo,
Narcotizava
toda a amplidão.
Blão!
V
Embora houvesse
muita pobreza,
Toalha branca
punha-se à mesa...
— Pão da
merenda, materno pão!
Depois,
voltados lá para a igreja,
Que sobre o
outeiro verde branqueja,
Todos rezavam
com devoção.
Blão!
VI
Hora solene do
dia a prumo!
Daquele teto
espirala o fumo,
Ringe a
moenda, bate o pilão;
Como que em
sonhos ora e repousa
A alma divina
de cada coisa,
Da luz na
quente fulguração.
Blão!
VII
Flores de
bruço sobre os barrancos;
É agora o vale
de lírios brancos
Capela, e
noivas em confissão...
Nem canto
alegre de voz humana!
Apenas o eco
de Graça e Hosana
Vibrado largo
na solidão:
Blão!
VIII
Nas poças de
água, verdes e pretas,
Espiral branca
de borboletas
Vejo subindo,
numa oblação,
Mas tudo em
doce recolhimento...
A terra, os
ares, o firmamento
Serenos,
graves, elíseos são.
Blão!
IX
A árvore fecha
no espaço ardente,
E há um sossego
morno e dormente
Na minha
simples habitação;
Suspendo a
ingênua, casta leitura,
Param os
eitos, para a costura,
Como que mesmo
para a razão...
Blão!
X
Quatro janelas
nesta varanda:
Daqui diviso numa
locanda
Homens, que, exaustos,
bebendo estão;
Creio que aquelas
longínquas terras,
E aquelas
pedras, e aquelas serras
Sejam as
mesmas do meu torrão.
Blão!
XI
O sol cáustica
depois das onze
E o pobre
espera que o santo bronze
À paz e à sombra
chame o cristão;
— Dependuradas
às longas foices
Cumbucas d’água,
laranjas doces,
Suspendem
todos a ocupação.
Blão!
XII
Café de caldo
pelas tigelas;
Lindas
caboclas, nédias donzelas,
Numa caseira
conversação...
— Dantes eu
era pobre menino,
Que a estas
horas tocava o sino,
Hoje de tanta
recordação...
Blão!
HORA DO CHÁ
Horas
mortiças, o chá na mesa,
Todos em roda
para o cavaco...
Que hábitos
lindos, de singeleza,
Os dessa
austera família inglesa!
Tico, taco;
Tico, taco.
Um rumorzinho
de pêndulo anda,
Dentre a
conversa, medido e fraco,
Sobre a cabeça
da loira Wanda,
Que enche de
graça toda a varanda.
Tico, taco;
Tico, taco.
Da loira
Wanda, que é já futura
De um rapaz
forte como um cossaco;
Que, de olhos
postos sobre a Escritura,
Vai lendo, a
linda da criatura!
Tico, taco;
Tico, taco.
Da loira Wanda
sentada em frente
Do rapaz
forte, de olhar velhaco,
Que,
gracejando continuamente,
É a alegria de
toda a gente...
Tico, taco;
Tico, taco.
Olhos de lírio,
trancas douradas
Rolando,
frouxas, sobre o casaco;
Lembra uma
doce flor de Bailadas
Daquele tempo
de espanholadas!
Tico, taco;
Tico, taco.
Rafaelesco par
de anjos rindo
De vovozinha
cheirar tabaco,
— Trêmulos
dedos a caixa abrindo,
De óculos
grandes e reluzindo...
Tico, taco;
Tico, taco.
Nos bandós
lisos do seu cabelo
Nem um só fio daqui
destaco,
Que alvo não
seja, da cor do gelo:
Toda ela é
neve, doçura e zelo.
Tico, taco;
Tico, taco.
Ao lado a
filha, de junto a um moço;
Se é pai dos
anjos, eu nisto empaco.
Tem barbas
loiras e rosto ensosso,
De fronte calva,
de corpo grosso.
Tico, taco;
Tico, taco.
Deve a senhora
ser sua esposa
(Mulher do de
amplo paletó saco)
E o chá na
mesa! Que linda coisa!
Toda a varanda
brilha e repousa.
Tico, taco;
Tico, taco.
Porcelaneja
sobre a toalha
Liso aparelho,
brilhante e opaco;
E o bule, ao
centro, que o aroma espalha,
Um guardanapo
claro agasalha.
Tico, taco;
Tico, taco.
E do relógio
sobre a parede
O rumorzinho
medido e fraco.
Serve chá
simples aos filhos, vede!
A de cabelo metido
em rede...
Tico, taco;
Tico, taco.
Horas
mortiças, o chá na mesa,
Todos em roda
para o cavaco.
Que hábitos
lindos, de singeleza,
Os dessa
austera família inglesa!
Tico, taco;
Tico, taco.
NA POUSADA
Esposa ao
canto, filhos à beira,
Tranquilo
durmo na minha esteira
Forrada e
larga, posta no chão.
Por alta noite
calmo desperto
E, de olhos
frouxos e ouvido aberto,
Ouço os
latidos, longe, de um cão:
Cão, cão; cão,
cão...
Pelo telhado
da casa nua
Tristonhamente
penetra a lua,
E eu fico todo
banhado em luz,
Entre bocejos,
abrindo os braços...
E dão-me os
raios, frios e baços,
Como se dessem
sobre uma cruz.
Atrás da caça,
que ao faro escapa,
Descendo à furna,
subindo à lapa,
— Alma perdida
na solidão,
É a voz
bravia, seca e roufenha,
Repercutindo
de brenha em brenha,
Daquele exausto,
misero cão:
Cão, cão; cão,
cão...
Abro a janela;
meu povo dorme.
Paz de
charneca, silêncio enorme
E um ruflo de
asas, fofo e sutil...
Eu só velando
como um duende!
Úmido pausa,
soturno esplende
O manto claro,
flóreo de abril.
Encho-me de
hirto, frio receio...
Virgem das
Dores, em quem eu creio,
Dá-me tu
forças e animação!
Que a estas
horas, Virgem das Dores,
Andam nas matas
os caçadores,
Dizem os
ladros daquele cão:
Cão, cão; cão,
cão...
A lua, a Santa
Mãe do Socorro,
Piedosa
estende por vale e morro,
Molhado em
pranto, de alvo palor,
O lençol bento
daquele Dia,
Quando em seu
colo morto jazia,
Lívido e roxo,
Nosso Senhor.
Todos repousam
no lugarejo;
Muros e ruas
banhados vejo
Do mesmo doce,
mudo clarão;
É além do adro
que sobe e desce
— Súplica estranha,
faminta prece,
O acuo errante
do triste cão:
Cão, cão; cão,
cão...
Há nestes
ermos, tardos luares
Cactos abertos
e nenúfares,
Ruínas,
ermidas, suspiros e ais!
Misericórdia,
dó e martírios,
Toda a doçura
de um vale de lírios,
Todas as
flores dos laranjais!
Como que vejo
no cemitério,
Cheio de rosas
e de mistério,
A alma dorida
de meu irmão...
E mais evoca,
me apavorando,
De roça em
roça, de quando em quando,
O grito rouco
do pobre cão:
Cão, cão; cão,
cão...
A capelinha
caiada, ao flanco,
Lembra-me aquela
de gesso branco,
Que eu dantes
tinha para brincar;
Ao pé da torre
de boca pasma,
Anda a
Saudade, branco fantasma,
Sob o polvilho
deste luar.
E, no silêncio
das horas mortas,
Fechadas todas
as sete portas
Da pequenina
povoação;
Lá vai sumindo
pela colina,
Dentro de um
tênue véu de neblina,
O eco perdido
da voz do cão:
Cão, cão; cão,
cão...
Ao romper d’alva
sigo viagem,
Mas não agora,
na farinhagem
Desta
assombrosa noite de Deus.
Que faço eu
triste pelas estradas,
Cheias de
vultos e almas penadas,
Quando em
repouso ficam os meus?!
Lá, me
contavam diversos casos
De fogo
andando nos rios rasos,
De quem viaja
pelo sertão...
Valha-te,
gente, Nossa Senhora!
E vai dobrando
por mato afora
O ermo latido
do pobre cão:
Cão, cão; cão,
cão...
MAURO
(Que Deus levou)
I
Envolto em
faixas, dentro do berço...
Andava eu
tonto, num gozo imerso,
— Gorro e
chinelas,
E o meu
caseiro terno de brim —
Forjando
nomes, vendo a folhinha...
O sol, saindo,
saudar-me vinha
Pelas janelas;
Trinava um
sino dentro de mim:
Dlim di lim,
Dlim di lim,
Dlim!
II
De leite e
rosa no seu toucado...
Sábado alegre
de batizado!
Foi para a
igreja,
Cheio de
fitas, rendas também;
Via-se em
todos um ar de festa.
Nós dois ficamos
em casa, à testa
Da áurea
bandeja,
Ouvindo o sino
cantar além:
Dlém de lém,
Dlém de lém,
Dlém!
III
Amortalhado no
caixãozinho...
Lá vai meu
filho pelo caminho
Florido e
claro,
Vibrando as
asas de luz e som...
Leva este
beijo, flor de minh'alma,
Além da tua
capela e palma!
Choro e reparo
Que o sino
agora mudou de tom:
Dlom do lom,
Dlom do lom,
Dlom!
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