1/19/2020

Obra poética de B. Lopes (Brasões)


IMPRESSIONISTAS
(A César de Lima Campos)

I
Morto solar, de velhas arcarias!
A arquitetura podre, derrocada;
Torres caídas, mármores de escada,
Grossas paredes úmidas e frias.

Pela extensão das câmaras vazias,
A nua ogiva, de hera pendurada;
Rotos painéis, a cúpula furada,
Larga sombra de vastas galerias!

Por toda a ruína um tumular sossego...
Só, por baixo das árvores daninhas,
Zunem rápidas asas de morcego...

No merencório corpo da capela,
Para aquecer as pobres andorinhas,
Entra um raio de sol pela janela!

II
Nos alcantis aspérrimos da ilhota,
Cheios de musgo e arbustos enfezados,
Vão repousar alcíones, chegados
De uma paragem úmida e remota.

Mas quando os pés nesses rochedos bota
Aquele par de estranhos namorados,
De binóculo em punho e braços dados,
Para mais longe os pássaros enxota:

Um mundo de asas pelo mar se espalha!
E, no rubro clarão de uma fornalha,
Escalda o poente, ensanguentando a frágoa.

Enquanto o par não volta, a onda geme
E o barco espera-o, de patrão ao leme,
— Mão no caniço e linha dentro d’água.

III
Dão para o golfo as duas janelinhas
Do seu chalé de banho, provisório,
Edificado sobre um promontório,
Todo cheio de garças e andorinhas.

A perspectiva e as virações marinhas
Melancolizam-lhe o viver simplório,
Naquele ninho esconso, roxo e flóreo,
Enramado de pâmpanos e vinhas,

Como gentil habitação da Holanda,
De gaiolas no teto da varanda,
Quadros de campo e rústica mobília...

Conchas, búzios, corais sobre o console,
E ela entre galgos, alquebrada e mole,.
Perto do mar e longe da família!

IV
Tem a sua cabana entre os abetos
E as verdejantes árvores do Minho,
Aquela aldeã, aquele diabinho
De lustrosos cabelos e olhos pretos.

Quando o sol nasce e a pomba sai do ninho,
E bicos de aves abrem-se em duetos,
Pés, que se ajustam num destes quartetos,
Mete-os, descalços, no íngreme caminho,

Arrebanhando as cabras e os novilhos,
Que pela ervagem úmida dos trilhos
Vão retouçando e mugem de alegria...

E vê-se a aldeia: aljôfares de neve
Estrelejando as messes; e de leve,
Cantam no eirado e resplandece o dia!

V
E tu não voltas, corça foragida
Do meu albergue rústico e tranquilo!
Onde vais tu achar um outro asilo,
Feliz e pobre, que te adoce a vida?!

Das trepadeiras vírides despida
Cai-me a choupana, onde aninhou-se o grilo;
Nem mais um trino, um trínulo pipilo
De andorinha, nas telhas escondida!

Teias de aranha e o musgo esverdeado
Cobrem o teto e as midas paredes
Do nosso quarto, mudo e abandonado;

Tristes e murchas as orquídeas; morta
A madressilva de olorosas redes,
Que era o alpendre florífero da porta!...

VI
Trago-te agora, em trêmulo debuxo,
Mal desenhado, o nosso ninho agreste,
Conforme o plano e explicações que deste,
— Claro, alegre, pequeno, mas sem luxo.

Vê — um lar amoroso e pequerrucho,
De fachada lirial para o nordeste;
E um gramado jardim, que talvez preste
Para fazer-se um lago com repuxo.

Reina o bom gosto, o nosso gosto, em tudo;
Saem das beiras do telhado agudo
Pombas criando e lambrequins chineses:

Cortinas brancas na janela, em cujo
Fundo aparece o rastozinho sujo
De um risonho fedelho de dez meses!

VII
Habita a inglesa um sítio de recreio,
Avarandado e de gradil na frente.
Em cima — as frondes do pomar virente,
O campo ao lado e o muro de permeio.

Sai da cascata um cristalino veio,
Que entre seixos escapa-se fremente;
Um flamboyant por fora do batente,
De borboletas e de flores cheio!

E sobre o lago do jardim florido,
De esquisita gramínea guarnecido,
Como a moldura de um redondo espelho,

No verde cru das folhas espalmadas,
Pelos raios do sol envernizadas,
Abre a corola um nenúfar vermelho.

VIII
Abrem duas janelas para a rua,
Com trepadeira em arcos de taquara;
A cortina de renda, larga e clara,
Alveja ao fundo da vidraça nua.

Em frente o mar, e sobre o mar a lua,
A estrelejar a onda que não para;
Afiara asas por cima e solta a vara,
N'água brilhante, o mestre da fálua.

Ecos noturnos e o rumor estranho
Da meninada trêfega no banho
Voam da praia ao chalezinho dela;

Move-se um corpo de mulher, no escuro;
Gira, após, o caixilho; e o luar puro
Ilumina-lhe o busto na janela!

IX
Setembro invade o azul de sol brilhante!
E em noites quietas o luar ensopa
De claridades lânguidas a copa
Da amendoeira larga e florejante.

A primavera, a deusa flutuante,
Nas borboletas céleres galopa...
Em cada flor uma ilusão se topa,
E um beijo, e um riso em cada lábio amante!

Carregando partículas de cisco,
Para fazer o ninho nos pomares
Chega da serra o passarinho arisco;

E é outro o amor, outra a canção nas mondas,
Vida nas praias, pombos d’água, aos pares,
Balanceados no ápice das ondas!...

X
Fim de tarde serena e violentada...
No céu — duas estrelas, e arrepios
Na safira do mar, toda coalhada
De emaranhados mastros, de navios.

Longe, entre névoas, traços fugidios.
De uma cidade branca derramada
— Casas, torreões e coruchéus esguios,
Por toda a clara fita da enseada...

Aqui bem perto, aqui, na argêntea praia,
Contra um rochedo nu, calcário e rudo,
Do poente a frouxa claridade estampa,

Balouçando-se n'água, uma catraia;
E, agasalhados no gibão felpudo,
Pescadores que vão subindo a rampa...

XI
Lembrei-me, há dias, de ir viver na roça,
Entre sombras de chácara verdoenga,
Numa casinha, a  imitação flamenga,
Ou mesmo dentro de uma pobre choça,

Sobre a montanha; um sítio de araponga,
Onde, se tu me acompanhar quiseres,
Acharás o preciso aos teus misteres,
Prevendo o caso de uma estada longa.

Mas que da nossa habitação tranquila
Aviste-se o caminho, a igreja, a vila,
O rio, a ponte, as terras de lavoura...

Pode ser que a mudança te aproveite
E eu veja ao colo, a te chupar o leite,
Um róseo anjinho de cabeça loira!

XII
Ensombra a porta e as rústicas janelas,
Que às borboletas brancas dão passagem,
Carramanchel de rosas amarelas,
Estrelando a verdura da ramagem.

Curva-se a rede embaixo das capelas...
— Pé, cabeleira, braços e roupagem,
Roçando o chão e o pelo das chinelas
Tudo transborda em confusão selvagem.

O morno sol, coado numa fresta,
Morde-lhe a boca, a pálpebra cerrada

E a mão, no seio, em posição honesta...
E naquela penumbra perfumada,
Como querendo arrebatá-la à sesta
Solta um canário trínula risada!

XIII
Um chalezinho tosco, um ninho a jeito,
Para um casal de alegres cotovias,
Entre um maciço de árvores sombrias,
Pequenino, romântico, bem feito;

Cortinas brancas no rendado leito
De uma câmara azul, e noites frias!
O sol vindo aloirar todos os dias
A madressilva sobre o parapeito;

Pombas nervosas e arrufados pombos
Em pelejas equívocas, aos tombos
Sobre o telhado; orquídeas nas paredes;

Cheiros que exalam quando rompe a aurora,
Canções, risadas, pássaros por fora,
Dentro do ninho, então — eu e Mercedes!

XIV
Guarda o mastim, como fiel amigo,
Na quentura do sol, deitado à porta,
O parreiral, as árvores, a horta
E o que pertence ao isolado abrigo.

Quatro casais de pombos no telhado,
Batendo as asas com ruidoso alento...
Além — nesgas azuis de firmamento,
Embaixo — o pasto e velho boi deitado.

Andam aragens matinais e frescas
Castanholando as palmas do coqueiro
Enredado de silvas pitorescas...

Resplende o sol! E, junto do moinho,
Entre os brancos florões do jasmineiro,
Um beija-flor dourado tece o ninho.

XV
Um ninho! um ninho preso estreitamente
Ao pender vicejante da colina;
O frontispício, às tardes, ilumina
A flama de ouro e púrpura do poente.

A hera trepa e invade toda à frente:
Tapa a caliça e o teto contamina,
Cai na janela, em forma de cortina,
É desce à porta, caprichosa e rente.

Rosas abertas, lúbricas, vermelhas,
— Éden da vista e pasto das abelhas,
Bordam o quadro da gentil morada;

Dentro, todo o requinte da elegância:
Quadros, estofos, música, fragrância...
E a fidalga senhora enfastiada!


VALE DE LÍRIOS
(A minha mulher)

Canção palomba
Há uns laivos riços de papoula
No ocaso, longe, além do outeiro,
Ocaso de ocre e lantejoula;
E anda uma só, tardia rola
A entristecer o bosque inteiro:
Cativeiro, cativeiro;

Mas, de arma ao ombro, o meu caminho
Eu vou seguindo aventureiro;
E vou pensando, então, sozinho,
Naquela voz de passarinho
Que enche de mágoa o caminheiro:
Cativeiro, cativeiro...

É quase noite, e vejo perto
A pobre casa de um roceiro;
Em derredor — tudo deserto!
Mas há de haver um rancho aberto,
Sem este dístico agoureiro:
Cativeiro, cativeiro...

Meditativo e extenuado,
Sentei-me no alto de um terreiro,
Ouvindo sempre do meu lado,
Onde alvacento e sossegado
Abre-se em flor um espinheiro:
Cativeiro, cativeiro...

Além, além, tenra lavoura
De um montanhês ou de um foreiro,
Da gente, enfim, trabalhadora...
E em chama rubra, em chama loira,
Queimadas vão subindo o aceiro.
Cativeiro, cativeiro...

Deste outro lado, estrada à riba,
A tropa e a trova de um tropeiro;
Fulvos listrões do Paraíba;
Rema, de covo e pindaíba,
Tristonhamente um canoeiro.
Cativeiro, cativeiro...

Descanso à porta da choupana
O polvarinho, a arma e o chumbeiro;
Tiro o chapéu, e uma serrana
Dá-me a beber, dá-me uma cana
Cortada ali no seu canteiro...
Cativeiro, cativeiro...

Arranco a faca da cintura...
(Sedento estou como um rafeiro)
Olha-me a ingênua criatura
Como quem diz: se mais fartura
Meu pai tivesse, ou então dinheiro...
Cativeiro, cativeiro...

A bendizer a minha vinda
Ela estudava um ar faceiro;
Eu olho-a sempre, eu olho-a ainda...
Mas esta moça, que é tão linda!
Mas este olhar, que é tão fagueiro!
Cativeiro, cativeiro...

Já no silêncio expira o dia,
Um dia quente de janeiro;
Dá muito longe — Ave Maria...
E uma cristã melancolia
Há no momento derradeiro.
Cativeiro, cativeiro...

Quando ao partir — é noite quase!
Quero ser grato e cavalheiro,
Ela retruca à minha frase:
— Pois com o senhor, moço, se case
Uma lindeza de dinheiro...
Cativeiro, cativeiro...

Agora amargo, ermo e tristonho
Era o seu doce olhar fagueiro;
Nem mais o lábio era risonho
Quando, sem luz, de pé me ponho,
Como um fantasma, no terreiro...
Cativeiro) cativeiro...

Descarregar minha espingarda
Eu quis, depois, sobre o espinheiro...
Ai! pomba rola, ai! rola tarda!
Hoje te aninha, hoje te guarda
Meu coração, de bandoleiro!
Cativeiro, cativeiro...

 

NOSSO PAI

— Bendito, santo, louvado seja...
Coro de glória, dentro da igreja,
Para a agonia do espaço vem;
O óleo da mágoa na tarde escorre,
Que é como um lírio: rescende e morre.
Belém!... Belém!...

Cabeças nuas e mãos no peito,
Joelhos quebrados; unção, respeito,
Mulheres e homens no rosto têm;
E agora o canto do excelso rito
É a melopeia de um só Bendito:
Belém!... Belém!...

A hora suprema no azul roxeia;
E os casais tristes da pobre aldeia,
Montes e vales — roxos também!
Paixão dorida por tudo e em tudo;
Na harpa calada do instante mudo...
Belém!... Belém!...

Sol do Calvário que, enfim, morreste!
Tanta saudade, tanto cipreste
No horto do Sonho — Jerusalém.
Pretorianos de lança em riste.
Que luz viúva, que moça triste!
Belém!... Belém!...

Pálio de seda levando o padre...
— Que o Cão Maldito nunca mais ladre
Contra a doçura do Extremo Bem;
Samarra negra, brancor de linho,
Como a pureza de um cordeirinho...
Belém!... Belém!...

Melancolia, goivo nas almas;
E um pombo branco, de asas espalmas,
Que a todos toca, não o vê ninguém.
Flores e frutos, plumagens de ave,
Tudo silente, de roxo e grave.
Belém!... Belém!...

Louvado seja, doce Maria,
O Sacramento da Eucaristia,
Bendito o fruto, Jesus. Amém.
— Que fim de tarde tão merencório!
Como o silêncio de um oratório.
Belém!... Belém!...

Pálio estendido, céu estrelado,
Com o padre simples, acompanhado
Da gente humilde, que segue além...
E abrem contrita, pungida tropa,
Irmãos piedosos, de círio e opa.
Belém!... Belém!...

Bronze sagrado, pequeno sino
De som plangente, mortuário e fino,
Vibrado sempre por mão de alguém;
Ah! como a tarde roxa esmaece,
Vivendo a sombra, morrendo a prece...
Belém!... Belém!

Alma exalante de um flébil goivo,
Jesus ferido seja teu noivo,
Votes à argila manso desdém;
Vida e doçura, esperança nossa,
Tua asa de anjo por tudo roça!
Belém!... Belém!...

Oh! Agnus branco do Amor nascido,
Ouço o teu brando, frouxo balido...
Imaculada, casta Cecém,
Hóstia de leite, Lua da torre,
Dê o teu trigo Pão a quem morre!
Belém!... Belém!...
 

MEIO DIA

I
Dantes, eu era pobre menino...
Como estas horas, como este sino,
Trazem-me langue recordação!
Silenciava... Conchego de asa
Por sobre as telhas de minha casa,
Com pombas brancas, que vêm e vão.
Blão!

II
Tão pobrezinho que eu dantes era!
Nem tudo é rosa nem primavera,
Céus estrelando, florindo o chão;
Porque assim enches, oh! minha infância,
De mais saudade, de mais fragrância
A ermida triste do coração?
Blão!

III
Luz modorrenta do meio dia,
Banhando as casas da freguesia,
Calmos instantes de lassidão...
Pássaros quietos, empoleirados;
De orelhas murchas e olhos fechados,
Deitado à porta meu velho cão.
Blão!

IV
— Cristo nascera — clarina o galo:
Meu pai mandando ver o cavalo,
Para a lavagem mais a ração.
As cordas de ouro da luz tinindo,
E um ar parado, calmoso e lindo,
Narcotizava toda a amplidão.
Blão!

V
Embora houvesse muita pobreza,
Toalha branca punha-se à mesa...
— Pão da merenda, materno pão!
Depois, voltados lá para a igreja,
Que sobre o outeiro verde branqueja,
Todos rezavam com devoção.
Blão!

VI
Hora solene do dia a prumo!
Daquele teto espirala o fumo,
Ringe a moenda, bate o pilão;
Como que em sonhos ora e repousa
A alma divina de cada coisa,
Da luz na quente fulguração.
Blão!

VII
Flores de bruço sobre os barrancos;
É agora o vale de lírios brancos
Capela, e noivas em confissão...
Nem canto alegre de voz humana!
Apenas o eco de Graça e Hosana
Vibrado largo na solidão:
Blão!

VIII
Nas poças de água, verdes e pretas,
Espiral branca de borboletas
Vejo subindo, numa oblação,
Mas tudo em doce recolhimento...
A terra, os ares, o firmamento
Serenos, graves, elíseos são.
Blão!

IX
A árvore fecha no espaço ardente,
E há um sossego morno e dormente
Na minha simples habitação;
Suspendo a ingênua, casta leitura,
Param os eitos, para a  costura,
Como que mesmo para a razão...
Blão!

X
Quatro janelas nesta varanda:
Daqui diviso numa locanda
Homens, que, exaustos, bebendo estão;
Creio que aquelas longínquas terras,
E aquelas pedras, e aquelas serras
Sejam as mesmas do meu torrão.
Blão!

XI
O sol cáustica depois das onze
E o pobre espera que o santo bronze
À paz e à sombra chame o cristão;
— Dependuradas às longas foices
Cumbucas d’água, laranjas doces,
Suspendem todos a ocupação.
Blão!

XII
Café de caldo pelas tigelas;
Lindas caboclas, nédias donzelas,
Numa caseira conversação...
— Dantes eu era pobre menino,
Que a estas horas tocava o sino,
Hoje de tanta recordação...
Blão!
 

HORA DO CHÁ

Horas mortiças, o chá na mesa,
Todos em roda para o cavaco...
Que hábitos lindos, de singeleza,
Os dessa austera família inglesa!
Tico, taco;
Tico, taco.

Um rumorzinho de pêndulo anda,
Dentre a conversa, medido e fraco,
Sobre a cabeça da loira Wanda,
Que enche de graça toda a varanda.
Tico, taco;
Tico, taco.

Da loira Wanda, que é já futura
De um rapaz forte como um cossaco;
Que, de olhos postos sobre a Escritura,
Vai lendo, a linda da criatura!
Tico, taco;
Tico, taco.

Da loira Wanda sentada em frente
Do rapaz forte, de olhar velhaco,
Que, gracejando continuamente,
É a alegria de toda a gente...
Tico, taco;
Tico, taco.

Olhos de lírio, trancas douradas
Rolando, frouxas, sobre o casaco;
Lembra uma doce flor de Bailadas
Daquele tempo de espanholadas!
Tico, taco;
Tico, taco.

Rafaelesco par de anjos rindo
De vovozinha cheirar tabaco,
— Trêmulos dedos a caixa abrindo,
De óculos grandes e reluzindo...
Tico, taco;
Tico, taco.

Nos bandós lisos do seu cabelo
Nem um só fio daqui destaco,
Que alvo não seja, da cor do gelo:
Toda ela é neve, doçura e zelo.
Tico, taco;
Tico, taco.

Ao lado a filha, de junto a um moço;
Se é pai dos anjos, eu nisto empaco.
Tem barbas loiras e rosto ensosso,
De fronte calva, de corpo grosso.
Tico, taco;
Tico, taco.

Deve a senhora ser sua esposa
(Mulher do de amplo paletó saco)
E o chá na mesa! Que linda coisa!
Toda a varanda brilha e repousa.
Tico, taco;
Tico, taco.

Porcelaneja sobre a toalha
Liso aparelho, brilhante e opaco;
E o bule, ao centro, que o aroma espalha,
Um guardanapo claro agasalha.
Tico, taco;
Tico, taco.

E do relógio sobre a parede
O rumorzinho medido e fraco.
Serve chá simples aos filhos, vede!
A de cabelo metido em rede...
Tico, taco;
Tico, taco.


Horas mortiças, o chá na mesa,
Todos em roda para o cavaco.
Que hábitos lindos, de singeleza,
Os dessa austera família inglesa!
Tico, taco;
Tico, taco.


NA POUSADA

Esposa ao canto, filhos à beira,
Tranquilo durmo na minha esteira
Forrada e larga, posta no chão.
Por alta noite calmo desperto
E, de olhos frouxos e ouvido aberto,
Ouço os latidos, longe, de um cão:
Cão, cão; cão, cão...

Pelo telhado da casa nua
Tristonhamente penetra a lua,
E eu fico todo banhado em luz,
Entre bocejos, abrindo os braços...
E dão-me os raios, frios e baços,
Como se dessem sobre uma cruz.

Atrás da caça, que ao faro escapa,
Descendo à furna, subindo à lapa,
— Alma perdida na solidão,
É a voz bravia, seca e roufenha,
Repercutindo de brenha em brenha,
Daquele exausto, misero cão:
Cão, cão; cão, cão...

Abro a janela; meu povo dorme.
Paz de charneca, silêncio enorme
E um ruflo de asas, fofo e sutil...
Eu só velando como um duende!
Úmido pausa, soturno esplende
O manto claro, flóreo de abril.

Encho-me de hirto, frio receio...
Virgem das Dores, em quem eu creio,
Dá-me tu forças e animação!
Que a estas horas, Virgem das Dores,
Andam nas matas os caçadores,
Dizem os ladros daquele cão:
Cão, cão; cão, cão...

A lua, a Santa Mãe do Socorro,
Piedosa estende por vale e morro,
Molhado em pranto, de alvo palor,
O lençol bento daquele Dia,
Quando em seu colo morto jazia,
Lívido e roxo, Nosso Senhor.

Todos repousam no lugarejo;
Muros e ruas banhados vejo
Do mesmo doce, mudo clarão;
É além do adro que sobe e desce
— Súplica estranha, faminta prece,
O acuo errante do triste cão:
Cão, cão; cão, cão...

Há nestes ermos, tardos luares
Cactos abertos e nenúfares,
Ruínas, ermidas, suspiros e ais!
Misericórdia, dó e martírios,
Toda a doçura de um vale de lírios,
Todas as flores dos laranjais!

Como que vejo no cemitério,
Cheio de rosas e de mistério,
A alma dorida de meu irmão...
E mais evoca, me apavorando,
De roça em roça, de quando em quando,
O grito rouco do pobre cão:
Cão, cão; cão, cão...

A capelinha caiada, ao flanco,
Lembra-me aquela de gesso branco,
Que eu dantes tinha para brincar;
Ao pé da torre de boca pasma,
Anda a Saudade, branco fantasma,
Sob o polvilho deste luar.

E, no silêncio das horas mortas,
Fechadas todas as sete portas
Da pequenina povoação;
Lá vai sumindo pela colina,
Dentro de um tênue véu de neblina,
O eco perdido da voz do cão:
Cão, cão; cão, cão...

Ao romper d’alva sigo viagem,
Mas não agora, na farinhagem
Desta assombrosa noite de Deus.
Que faço eu triste pelas estradas,
Cheias de vultos e almas penadas,
Quando em repouso ficam os meus?!

Lá, me contavam diversos casos
De fogo andando nos rios rasos,
De quem viaja pelo sertão...
Valha-te, gente, Nossa Senhora!
E vai dobrando por mato afora
O ermo latido do pobre cão:
Cão, cão; cão, cão...
 

MAURO
(Que Deus levou)

I
Envolto em faixas, dentro do berço...

Andava eu tonto, num gozo imerso,
— Gorro e chinelas,
E o meu caseiro terno de brim —
Forjando nomes, vendo a folhinha...
O sol, saindo, saudar-me vinha
Pelas janelas;
Trinava um sino dentro de mim:
Dlim di lim,
Dlim di lim,
Dlim!

II
De leite e rosa no seu toucado...
Sábado alegre de batizado!
Foi para a igreja,
Cheio de fitas, rendas também;
Via-se em todos um ar de festa.
Nós dois ficamos em casa, à testa
Da áurea bandeja,
Ouvindo o sino cantar além:
Dlém de lém,
Dlém de lém,
Dlém!

III
Amortalhado no caixãozinho...
Lá vai meu filho pelo caminho
Florido e claro,
Vibrando as asas de luz e som...
Leva este beijo, flor de minh'alma,
Além da tua capela e palma!
Choro e reparo
Que o sino agora mudou de tom:
Dlom do lom,
Dlom do lom,
Dlom!

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