Poema: "Namouna"
Autor: Alfred de Musset
Tradutor: Joaquim Serra
Ano: 1868
Revisão ortográfica: Iba Mendes (2020)
NAMOUNA
(ALFRED DE MUSSET)
(Fragmento)
O sofá em que Hassan estava deitado,
Era coisa no gênero formosa:
Pele de urso, de um urso delicado,
Sedoso como o arminho, ou como a rosa.
Hassan guardava um ar nobre e ousado,
Estava nu como Eva não culposa.
Como nu! me dirão, que história é essa?
Começa o poema nu, como isto finda?
Perdão, Senhor, o conto meu começa
Quando o herói sai do banho, em pelo ainda.
Concedam-lhe o perdão, feita a promessa
Repito: — estava nu, qual mão bem linda!
Nu qual prato, qual muro de uma igreja,
Como discurso vão da Academia...
A leitora não core, atenda e veja
Que, banida a nudez, ninguém diria
Que o SEU colo e a sua perna fazem inveja,
Pois se afirma o que vê-se à luz do dia.
Embora alegue o instante que entra em sege,
Que passa a ponte em dia de rajada,
Que a perna e p pé a roupa mal protege,
E que explica de mais um pé de fada...
Quanto a mim imagino que se almeje,
Que o resto diga o amante, oculte nada.
Onde o crime de estarmos à vontade,
Quando o calor referve e está daninho?
Acredite a leitora que, em verdade,
Estar na cama nu é um gostinho...
Se fosses minha o viras... ó deidade!
Gritarias um pouco, mas baixinho...
O que prezamos nós no ente querido?
Broche de ouro, pulseiras, brincos, pente?
Serão sedas, bordados do vestido?
Não, o que se ama em vós sois Vós somente.
Os enfeites são armas, praz à gente
Tomar armas depois de ter vencido.
Tudo é nu a não ser a hipocrisia,
Assim no imenso Céu, na terra imensa;
A infância, a divindade, a lousa fria,
As almas que de Deus gozam a presença,
E, portanto, o herói desta poesia
Continua a estar nu, se dão licença.
Reina silencio: a náiade peneira
Gotas finas, que vão escorregando
Sobre a pele do moço, em quanto brando
É o ruído da água na banheira,
A sair fugitiva, se escoando
Ao som da cantilena da torneira.
Já o sol se deitara no poente,
Era em setembro, um mês aqui bem feio,
Mas belíssimo em terras do Oriente.
Hassan fechou com o pé a porta à meio.
E, fumando ópio e aromas, feliz ente!
O sono convidava sem receio!
Bem que fosse de talhe sem grandeza,
Era homem valente e mui bem feito;
O semblante adornado de beleza,
Indicava o valor daquele peito.
Procurando fazê-lo mais perfeito,
A mãe, como que o fez com vagareza.
Era muito indolente, mas teimoso,
Delicado, macio, a pele fina,
Barba escura e gentil, mãos de menina,
Nobre aspecto viril, gesto nervoso.
Seus olhos tinham luz quase divina,
E os cabelos... eu fico silencioso.
Na Tartária dispensam tal usança,
Ele a moda adotou sendo estrangeiro,
Pois que tinha por pátria a bela França.
Hoje rico, ontem rude aventureiro,
Renegou do passado, e ao mar ligeiro,
Lançou família e pátria, única herança.
Ele era folgazão — mas de venetas,
Mau vizinho — , excelente camarada,
Muito fútil — , dizendo coisas certas,
Alma ingênua — , porém muito estragada,
Sincero horrivelmente — , mas em tretas
Amestrado... Recordam a serenada
Que canta Don Juan sob a janela?
— Que canção
tão travada de tristeza
Melancólica e terna que é aquela! —
Mas, ao canto acompanha com estranheza
A guitarra, num tom, numa presteza
Que parece zombar da canção bela!
A letra acaricia o instrumento,
Que pérfido maltrata a langue trova,
Como que faz ridículo o juramento
Zombando dos afetos que ele prova!...
Agrada essa ária assim. É coisa nova
O amar e trair num só momento?
Chora-se rindo — ás vezes o culpado
É a um tempo inocente; — a alma perjura
Pôde sincera ser — e o braço armado
Não c tirano sempre. — A criatura
É do bem e do mal uma mistura,
E Hassan como os mais era formado.
Na força da expressão era um bom moço:
Muito bom, muito moço, era excelente;
Mas, querendo uma coisa, era insistente,
Far-se-ia tão duro como osso!
Variava de gostos com alvoroço,
Era o oceano mudado em continente!
Sendo muito volúvel, quem diria
Que odiasse o imprevisto na sua vida!
Uma mosca no chão não pisaria,
Mas, se achasse-a no copo ou na comida,
Levava à pau a súcia que o servia!
Boa ou má era esta alma assim fundida?
Depois d'isto me cantem a ladainha,
Que a alma humana nos sirva de modelo;
Que estudemos o homem ao descrevê-lo!...
A alma humana de quem? A da vizinha?
Mas essa tem um molde menos belo
Que o molde onde vazaram-te, alma minha!
A vida é feita assim; esta que eu passo,
Inda endiabrada, é vida, eu o atesto...
Dizem que eu me retrato traço à traço
Neste herói; eu afirmo que isso é falso.
Tomo o nariz aqui, ali um gesto,
Deste a barba, de outro eu tomo o resto!
“Então criais um monstro, uma quimera,
Fazeis filho sem pai”... A graça é fina!
Quem diz isto, meu Deus, não considera
Nesta obra tão minha e tão divina!...
E, est pater
quem nuptiae... Não quisera
Vir agora falar língua latina!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...