VIA CRUCIS
Aquele mente; aquele ali não só me nega,
Como me ultraja; este outro engrandece-me, e odeia!...
E nunca ilusionou-me o canto da sereia;
E vi sempre que a glória aos Cáucasos nos leva!...
Passai, Proteus, passai, na indômita refrega,
Que arranca o rio ao leito, e muda em lodo a areia:
A torrente, que arrasta o furacão, é cega;
E eu amo a calma, a paz, a luz, que vem da ideia.
Sinto em mim novo ser, um ser novo e divino,
Quando um caluniador of’rece-me o destino,
Para poder ser bom, perdoando-lhe o mal.
Infame e vil, não quero a folha de um loureiro;
Imaculado, e puro, e intemerato obreiro,
Prefiro ser o sangue a ter sido o punhal.
E então a rocha dura da montanha,
Grande, como um pedaço do infinito,
Lá por dentro em seu torso de granito,
Não é à mágoa universal estranha?
Quando uma a outra, em largo amplexo, apanha,
Pela fatalidade desse atrito,
A voz humana acusa, e trai num grito,
E vê-se o fogo que elas têm na entranha.
Consolo à dor também ninguém lhe oponha,
Quando enfim dos latíbulos de um cofre,
No rumor largo da expansão medonha,
Saem-lhe do seio lágrimas de chofre...
A pedra pensa, e porque pensa, sonha;
A pedra vive, e porque vive, sofre...
O sábio cardeal Ximenes, já bem velho,
Arcebispo e ministro ao lado de Fernando
E Isabel, ambos reis, um dia desejando
Dar na vulgata, e em mais de uma língua, o Evangelho,
Fez imprimir a Bíblia, esse polido espelho
Das tradições cristãs, sacrário venerando
De poesia e de história, em Alcalá; e ao mando
Juntou para Brocário, o editor, o conselho.
Tudo que em arte é bem, rico em tipografia,
O velino, a vinheta, a estampa, a iluminura
Em volatas de cor e em rubro espasmo ardia.
E quando creu assim ter preso um povo, — o cura
Não viu Deus, que atacava aí dentro a ditadura,
E à liberdade e à luz a alma da Espanha abria!...
Dormindo nós, o espírito tem olhos.
É um cego, não vê, quando acordamos.
Ésquilo
Não, Ésquilo, não creio no que dizes:
Quando se dorme, o espírito então vela?!
Quando se dorme são os infelizes,
Que, em carro de ouro, a providência atrela.
Nenhum tormento aspérrimo os flagela:
Nem têm da luz aos nítidos matizes
Amor, ou ambição, que os torça, e nela
Não sofre uma alma as navalhadas crises.
O sono é doce bálsamo nas chagas,
E faz parar as lágrimas vertidas,
Como a pesca das pérolas nas vagas.
Ah! que seriam de milhões de vidas,
Sem dar-lhes, noite, a morte, com que apagas
A dor que grita o fundo das feridas?...
Veio. — De um jato só do mundo americano
Vasto império arrancou, aos reis domesticado;
E entregou sem fragor ao velho e augusto oceano
Um velho e augusto rei num trono espedaçado.
Ter um novo país de pronto alevantado,
Sem pranto de ninguém, sem traição, crime ou dano,
Reformador feliz, mais feliz que o soldado,
Não houve a um grande esforço um maior prêmio humano.
Mas chegou de improviso um formidável dia,
E o povo em torno dele, alheado e absorto, via
Desprender-se, oscilar, ruir de um céu azul
Do seu destino imenso a enorme estrela acesa:
Foi sua audácia — olvido; o olvido — uma fraqueza...
Certo fora, sem ela, o Washington do Sul...
Quando ela veio, com a grande calma
Da força que triunfa, e que perdoa,
Entre estrelas andava, e era tão boa,
Que o chão em palmas foi-lhe uma só palma.
Chegou, enchendo tudo de sua alma...
Que faz? onde erra agora? em que céus voa?
Por vale e monte o nome seu não soa:
Que crime à garra adunca a tem, a empalma?
O infortúnio do tempo, um dia, achou-o;
Viu no monstro a beleza de Antinoo,
No traidor viu o espírito do forte;
E de então, como à flor a gota d’água,
Sinto que dobra a minha fronte mágoa,
Que ódio não turva, ou medo ao exílio e à morte...
OS EVANGELIZADORES
Homens de bem, mentis; mas eu vos compreendo:
Vós não fazeis a Deus este cobarde insulto
De diminuir-lhe o grande, o misterioso vulto...
Tomo como virtude o vosso crime horrendo.
Quase que vos perdoo, e este preito vos rendo,
Que vós sabeis o que há de ridículo e estulto
Nessa história de sangue, e nesse imenso culto
Que nasceu de Jesus, no Gólgota morrendo...
Pode espalhar mais sóis sobre o nosso caminho,
Aos espinhos da vida arrancar um espinho,
Ser Prometeu, e ao céu ir roubar a verdade...
Sendo tudo quimera, excetuando as dores,
Por que não lhe deixar um sonho... Ó sonhadores,
Prendeis assim a um sonho eterno a humanidade...
(A Medeiros e
Albuquerque)
Quando à noite sozinho, alheado e mudo,
Passam por mim, num turbilhão medonho,
Mundos que palpo, e que não são contudo:
Busco em vão quem os fez e os leva, e ponho
A olhar-me: existo? quem sou eu? e estudo
Se isto, que vejo inda acordado, é sonho...
Há dentro em nós recordações trazidas
De outras terras e céus, num vago enleio:
Lembranças de sofrer jamais perdidas,
Sofrer que unir-se às nossas mágoas veio?
Num deus... deus que agoniza, há muito, eu creio,
Que a não ser, jovens mães estremecidas,
Nunca irrompera mais do vosso seio
A dor com toda dor das outras vidas...
Por uma escada feita de diamantes,
Obra de rara e incógnita estrutura,
Vou subindo, subindo ao céu, à altura
Dos olhos seus, esferas rutilantes.
De cima deles desço, alguns instantes,
Aos abismos em que sua alma pura
Deve estar em nudez: lá ‘stá; fulgura;
Encontro-a; é ela; e volto, como dantes;
Sim: é ela: Lá ‘stá de esplendor cheia;
Ebria-me, seduz, prende-me, enleia;
Mas saber o que quero a empresa é vã.
Aí fulgem só imagens escolhidas,
Reais no fundo, em luz e em cor mentidas,
Como a Ronda Noturna de Rembrandt.
Trazes um coração dentro do peito,
Um casto ideal, um forte pensamento,
Tu és honesto? Vai para o convento,
Como à Ofélia mandou um dia Hamleto.
Quem à virtude só der o seu preito,
Para encontrar no sono a calma e o alento,
Busque o sepulcro, não procure o leito:
Se viver, viverá do seu tormento.
Vida é delírio: vê rosais, escuta
Canções, com que alma embala a mente insana;
Se a razão volta, o quadro então permuta,
Vem de novo o sofrer, que a febre engana:
À mesa, em que se senta a escória em luta,
Não tem lugar a flor da raça humana.
Esta infinita Sede do infinito,
Não a contenta e farta coisa alguma:
Vê só de todo o mar em cima a espuma;
E não vê senão forma, ou culto, ou rito.
Acha que o espaço é uma boca, e o grito
Que a síntese da vida enfim resuma,
Que sai dela, é de um sofrimento escrito
No céu, na terra, além por tudo em suma.
Andar nisto um mistério atroz se sente!...
Quando um beijo arfa ao encontro de outro beijo,
Trai a gozo um gemido ali presente.
Será por isso então que o amor nos mente?
Pois que o amor, sob o impulso do desejo,
É a dor que fecunda a dor somente.
Fui-me viver nas sombras da floresta,
Viver aí só, aí só buscar repouso,
E a serena alegria, e o íntimo gozo
Do céu cheio de luz, da terra em festa.
Pois olhem, nada disto achei, e ouso
Crer que ninguém a paz haurira nesta
Mentida calma: um véu delicioso
Cobre o ódio, a traição, que o campo infesta.
Fura o bisso da túnica impoluta
Do lírio a larva imunda e o inseto: — e ouço
O rumor surdo de áspera disputa
Do berço à flor, do pranto em grito ao fosso:
E dão o amor da vida e o horror da luta
Armas ao verme, espantos ao colosso...
Quando eu julgava e cria intérmino este espaço,
Jamais pude entendê-lo, e andava mais contente:
Hoje que dizem ter um fim, acho-me em frente
Ao maior, mais profundo e lúgubre embaraço.
Tem um limite então provado? Ergue-se o braço,
E não achando mais o vácuo eternamente
Encontra um muro, um muro enorme de repente:
Que de hipóteses vãs, que me enleiam, não faço!...
Para isto tudo!... E além? Por mais que a razão torça,
Não compreendo o céu e não entendo a força!
Procuro: é o universo um coxo, um cego, um mudo?
Eu noto só que a morte em vida se renova,
Que ao mesmo tempo a cova é berço e é berço a cova,
E que tudo anda em nós, como Deus anda em tudo.
Do amor a áscua fatal eternamente acesa
O homem nivela ao verme, e a um universo o iguala;
Mas traiu, o que a deu, nada perdendo em dá-la;
Parece força; ilude: — é apenas fraqueza.
Nela se banha, e inova, e enflora a natureza;
A alma branca do lírio o aroma branco exala.
Sem pudor, como um cão, quem arma esta surpresa,
Uiva à dor pela boca esquálida da vala.
Como os cisnes, em grupo, espraiam-se nos lagos,
Deuses vão pelo espaço, em bando, a rir do aflito
Lutar, em que imos nós, presas de uns sonhos vagos.
Que lhes importa? Sempre o gozo última um grito:
E a morte há de sair de um beijo e dois afagos
E dar mais luz aos céus, e mais céus ao infinito.
Pôr sobre a vasta dor humana um sol tranquilo,
Como ao gorjal de um cão um vil guiso amarelo!
Porém que obreiro ousou pensar somente aquilo?
E feito, e posto ali, quem ousou achar belo?
Sei que o esboço escondeu, sei que guarda o sigilo:
Como o meu nome é cepo, o seu nome é cutelo:
Quero vê-lo, e não vem; chamo-o, e não há de ouvi-lo;
Mas embora: ao seu ódio o meu ódio nivelo.
É um tormento o amor, maior tormento a vida.
Desce à cova o universo, escorralha caída
Dum em outro mistério e um grito em torno disto;
E disto em cima um Deus imenso, eterno, infindo,
Surdo, pacato, bom, farto, contente, rindo
De Prometeu um dia, e outro dia de Cristo...
E a dor sentada à porta, à chuva, ao vento, espera;
Sabe que ela há de entrar; sabe que há de ter hora:
Deixem contente o lar a rir, que logo chora;
Só pela voz da flor gorjeia a primavera.
Antes deste universo arfar a dor não era:
Sair de si a dor, a dor não pode agora,
É dor, mau grado seu, como a aurora é da aurora,
Como a rosa é da veiga, e o fogo é da cratera.
Fatal, como é a sombra, ela se arrasta e inclina:
Preferira cantar, como um pássaro trina,
Ser a alegria em vez de ser a dor... mais nada.
Lágrima eterna presa a um soluço infinito
Sou eu, és tu, a terra, o mar, o céu, num grito
De dor, que a própria dor solta aterrorizada...
Dizem que é bom sofrer, que a dor descerra a porta
Das esferas azuis, onde ouro e jalde é tudo:
Mas estando o sepulcro eternamente mudo,
Mudo todo universo, — o crer num céu, que importa?
Ir num mesmo caixão uma esperança morta
De um morto sonho ao lado!... ó deuses, não me iludo.
Do infinito aos seus dois pontos, quem vai? E o agudo
Grito da terra muito embaixo o espaço corta...
Deixa, eterna miséria, o eterno horror do obscuro:
Por que sou? deste mal a causa em vão procuro;
Para explicá-lo só um crime enorme resta.
Vamos. Erga-se altar à deusa da alegria:
Quem, na ebriez do cantar, notará dia a dia
Que por um que faltou canta um outro na festa?...
A CEGA
A vida... quem a fez, fez a dor: punhalada;
Fez-se o mar, pôs-se nele um crime: a tempestade;
Inventou-se o terror servindo à crueldade;
Fez-se a flor, nela dorme o veneno: emboscada.
Fez-se a rosa, o que é bom, para o espinho: cilada;
Fez-se o céu, um abismo; outro, o inferno: maldade;
Fez-se o verme, um horror, torpe inutilidade;
Enfim o homem fez Deus: Deus fez isto, e mais nada.
Deus não ama a ninguém, como a ninguém odeia;
Do seu nome, isto só, toda a terra está cheia;
Como nós, qualquer vício ele em si mesmo traz.
A força será sempre essa louca, essa cega
Que tudo deixa, e logo em tudo outra vez pega,
E, Penélope eterna, anda, faz e desfaz?...
Ser César, dominar o mundo inteiro,
Ser Colombo, inventar um continente,
Ser Homero, brandir a lira ardente,
Que vale? — É o universo um grande argueiro.
Tudo é mesquinho, e vão, e passageiro,
Inútil no passado, e no presente,
Sonho, oásis que ilude, e foge, e mente
Na fútil obra do orgulhoso obreiro.
É ser grande, ter isso? — Isso é ventura?
Só no palhal, que à beira do caminho,
Da fisga de um rochedo se pendura,
No sítio em urzes, de árvores maninho,
Há, — e quem sabe?! — uma alegria pura,
Pregada à sombra, como ao galho o ninho...
Sempre o enorme ringir desse eterno problema!
E o conúbio da luz de orbes pontuando a esfera!...
E essa dúvida amarga, essa ânsia, que nos queima,
No cairel desta vasta e lôbrega cratera.
Não há sol que não morra; estrela que não trema:
E o que dizem os céus aos céus, quem assevera?
Que canta em ritmo estranho o universal poema?
Se Deus é Deus, enfim para ser Deus, que espera?
Há no verme a ironia? Há no espaço uma ideia?
O que fez está feito? O que disse, está disto?
Por que não compõe Ele uma nova epopeia?
Se doutros Prometeus, que hão de vir, não receia,
Que quer de nós, que quer, dispondo do infinito?
Por que os mundos que move entre dois grãos de areia?
Não te perdoo o mal que me fizeste,
Ó Deus, porque me sinto humilde e escravo,
Mesmo se insulto os sóis, se a pugna travo
Com o vasto espaço, onde os teus sóis puseste.
Que sei? — Tu prestas? Há quem saiba, e preste?
Por que geme e espumara este mar bravo
De amor, que tudo assoma, inunda, investe,
Em que meu corpo, irado, ou mancho ou lavo?
Eu que desejo ou quero com certeza?
Para que ponto arrasta-me a corrente,
Que ora sigo, ora fujo, e volto, e, presa,
Leva-me enfim irresistivelmente,
De queda em queda, aflito e sem defesa,
Vencido eterno, eterno descontente?...
A um princípio, que adeja alto em céu impoluto,
Que mão alguma alcança, e império algum assusta,
Curvo-me: e a consciência aplaude esta ação justa.
Vença o belo: por ele eu vivo, eu sofro, eu luto.
Arma-me estranho deus um braço resoluto,
A fé meteu-me bronze à espádua, e a fez robusta;
Fecha-me dentro em si o bem, como um reduto,
E o amor, complicação daquela ideia augusta.
Descer ao eterno abismo, — o coração — quem ousa?
Da alma branca de Abel se em nós há qualquer coisa,
Em Caim todos têm o mesmo sangue irmão.
A quem pois o meu colo hei de baixar? Mostrai-o.
De golpe a estátua de ouro a pó reduz o raio;
Dê, se quer, o universo ao pó um culto: eu não...
VIRGÍLIO E PASCAL
Quando penso em Pascal, quando em Virgílio penso,
Diante deste universo em giro eterno, diante
Do fim, da causa, e autor da máquina possante,
A incógnito terror o espírito suspenso;
O silêncio por tudo impassível; sem senso
A instável criação, reviva e agonizante,
Nascendo, para só morrer no mesmo instante,
Todo caminho obscuro; à razão tudo infenso:
A ver quase arrasada essa mudez feroz,
Quisera tê-los hoje entre nós, o gigante
Nos números montado, e o poeta, a luz do Dante,
Bela estrela de Roma augusta à fronte acesa...
Não ‘stá cheia de Deus a grande natureza,
A grande natureza está cheia de sóis...
Na terra é grande a cólera das almas;
Boas são as que só têm menos ódios;
No deserto é que dão mais verdes palmas:
O mar e o vento, um mesmo deus sacode-os.
A pérola, que brilha, e esplende, e azula,
É a moléstia de um molusco apenas;
Do dia a ausência é que abre e vermicula
De astros as noites límpidas, serenas.
Quem, louco! tem o orgulho da verdade?
Donde virão os bons ou maus conselhos?
Grãos de areia, ante o espaço e a eternidade,
Valeis menos ou mais que os sóis vermelhos?
Se é cheia a própria luz de escuridade,
Ante quem dobrarei meus dois joelhos?!...
Fluxo e refluxo enfim do indomável oceano,
Leva-o neste oscilar o seu destino eterno,
Gota e gota perdendo o seu sangue ano e ano,
Sem édens nunca achar e sem sair do inferno.
Sobre o esqueleto nu do mar há de o galerno
Soprar um dia sem ter que encher um só pano,
Morta a vaga sem um grito de pelicano,
E amortalhado o sol em seu lençol de inverno.
Homem, ridente luz, homem prantiosa treva,
Que Adão fez revoltoso, e humilde e bom fez Eva,
Que encheste a terra e o céu do pó do teu barulho,
Fazendo a cada passo o bronze ecoar da história,
Ora um clamor de luto, ora um rumor de glória,
Que foi de ti com todo o teu banal orgulho?...
Triunfará a Ciência, e os seus batalhadores
Os selos quebrarão dos mitos consagrados?
Se ela não triunfar, que importa? Estão lançados
Os destinos da vida em moldes superiores.
As loucas soluções de escravos e senhores,
Os sonhos vãos adrede escritos e sonhados,
Semelham os dobrões e os florins de ouro usados
Que acabaram nas mãos de antigos possuidores.
Águia, que o céu domina, águia, que desce o abismo,
Homem, há no teu pleito um eterno heroísmo;
Tens a grandeza e tens a amargura dos mares.
Para o ideal da existência, e para a luta imensa,
Não basta crer, quer mais o que medita e pensa:
Quer provada a verdade, a que há de erguer altares.
E quando a criação triunfante o espaço enchia,
Das esferas azuis, onde ouro e jalde é tudo:
Era austera verdade a sagrada alegria,
E era um riso a manhã, e um sorriso era a sesta.
Disto nada ficou: disto nada nos resta.
Jeová armara à vida uma insídia, e caía
O homem nela: e ora em sangue um cadáver dizia
Que era, já pela morte, a dádiva funesta.
Ser ignoto, amontoa as cóleras no cenho:
Chame seu o Teu crime um qualquer vil conselho,
De Ti, da noite eterna um vão terror não tenho.
Marca o ponto que lamba o cão do sol vermelho;
Meta ao jugo o universo o teu poder ferrenho;
Força, esmaga-me, és Ódio: Ódio, eu não me ajoelho.
O CÉSAR ADRIANO
Não venceste, assassino; e era nobre o teu fito,
No culto à Guerra e ao Belo, a arte humana e divina!
E entre os grandes e os bons querendo o nome escrito,
Tiraste à Tivoli a pedra travertina,
À Ibéria a prata e o ouro, o ferro à Palestina,
Os mármores à Frígia, os pórfiros ao Egito,
O alvo jaspe à Lacônia, à Tessália o granito,
A pérola à Golconda, à Gália a turmalina.
Semeaste a ponte, o templo, a terma em toda parte,
Deu-te auréolas Minerva, e deu-te louros Marte:
Em deus atravessaste o Coliseu e o Foro,
Chegaste à História, e ao Olimpo inda a chegar, um
triste
Ensanguentado espectro ergueu-se, olhou-te, e ouviste
Bradar: — Para. — E paraste à voz de Apolodoro.
Fartou o povo-rei até a saciedade
Com o espumante falerno e os rubis de Marsala;
O César Antonino, o grande Caracala
Pode por cima dele ir da Terma à cidade:
Se lhe dá tudo, pão, festas, e liberdade,
E o sangue do estrangeiro... o fétido, que exala
No circo o leão e o tigre esfaimados, invade,
Mas recua ante o olor dos sândalos da sala.
Na piscina ele nu entre belezas nuas,
Brancas, no alvo esplendor das semicurvas luas,
Dão horas ao amor, palpitando aos pedaços.
Jamais a consciência o crime lhe importuna:
Quem pisa o mundo e aos pés leva Deus e a Fortuna
Pode esmagar o oceano entre o anel dos dois braços...
Eu caminhava... Enchia o campo olente aragem:
Como uma rosa enorme, há pouco, o sol nascera;
E num vasto rumor de aurífera poeira
Erguia-se outro sol do fundo da paisagem.
A luz, que tem na loira aurora o louro pajem,
Que faz brotar a flor dos olhos da caveira,
Que crava no deserto intérmino a miragem,
E ante a qual abre o céu, como o leque a palmeira,
De longe, aureolar um santo parecia!
Quando perto cheguei, a última agonia
Vi de um cão; pobre galo esgravatava o cisco
Por entre vidros, terra, e algumas pedras toscas;
Fervilhava por cima um turbilhão de moscas...
E era nisso que a luz pusera o augusto disco!...
O pranto sobre o pranto é necessário à vida,
Como é preciso a gota em cima doutra gota,
Esta de pedra sai, que tenha a entranha rota,
Como aquela sai da alma esmagada e partida.
Para a viga melhor ser curvada e torcida,
Dentro d’água se deita, e aí fica um tempo imota;
Assim a água do seio; assim a água da grota:
Não há água que corra e se suma perdida.
Arqueia o corpo e a alma humilha, isto é verdade;
Mas porque a torna mole, e suprime a dureza,
É que ela serve e é boa à pobre humanidade.
Da nossa frágil carne e nosso orgulho presa,
O que podemos nós contra a fatalidade,
Se temos contra nós a própria natureza?
Há uma grande e lúgubre tristeza
Que outra, creras maior, nem inda iguala,
Que não encontra irmã na natureza:
De que jamais ninguém falou, nem fala.
Não anda, ao amor, que trai, gemendo presa;
Tem-nas todas a morte, e a não exala;
Não sai da cova, não a cospe a vala;
É sofrimento e a um tempo uma surpresa.
Não é, mau grado, a lágrima que esfria,
Sem ter achado o coração preciso,
Com outra ao pé de si, em companhia:
A dor suprema é rir, num paraíso,
Rir só, sem ter o rir de outra alegria,
Que é mais doce chorar que rir tal riso.
Quando às vezes procuro um nome que resuma
O que sou? por que sou? por onde vamos indo?...
Se penso, não encontro o belo em coisa alguma:
Se não penso, acho mais ou menos tudo lindo...
Um som prende outro som, cobre a espuma outra espuma
De um grande sonho, como um vasto mar infindo;
Se irrequieto o abandono, e outro caminho cindo,
É tudo arneiro, estepe, ou rocha, ou vento, ou bruma.
Por mais que eu clame a um deus, um deus qualquer que
seja,
Para mudar da aranha o esquálido organismo,
Que baba os fios de ouro em que o universo arqueja,
Nada: e torno a chamar: ninguém: — indago, cismo...
E largo de cansado a estúpida peleja,
Tendo a um lado o mistério e doutro lado o abismo...
Dois universos!... Um, o que dá forma e sonha
Nossa mente; abre, e rasga, e arqueia, e azula, e
cria;
E esse outro, em que se inverna, essa cava medonha,
Que guarda uma ilusão de cada extinto dia.
Um é obra gentil da vária fantasia,
Cheirosa, alegre, doce, esplêndida, risonha:
Outro, a fome, a miséria, a lágrima sombria,
Onde escarra a traição a esquálida peçonha.
Quero o primeiro: esta alma ardente, ansiosa, aflita,
Dele, para viver, dele só necessita,
E tem só nele luz, céus, olimpos, que ver.
Quando a taça de fel a angústia humana traga,
Não é pelo ideal, que nos faz rir e embriaga,
É pela luta amarga e austera do dever.
Nas tardes de janeiro, o sol no ocaso, à beira
Do mar inquieto e ondeando à doce luz do poente,
Parava Ele de olhar às vezes de repente,
Como alguém que arfa e cai em meio da carreira.
Cego e surdo ao rumor da natureza inteira,
Na palidez mortal de um mármore indif’rente,
Parecia ter ido onde não vai a gente,
Onde jamais chegou voo de águia altaneira.
Como quem surge após de um abismo, trazia
Nesgas de alva cantante e pedaços de dia
No olhar, na fronte; e um pouco em si de cinza e lava.
E nós: — Mestre, por lá, o que de novo achaste?
E ele ereto, bem como a flor em cima da haste:
— Vi Prometeu no fim do céu: inda o escalava!...
Restam mundos a ver... Eia, heróis. — Nau que brilhas
Dentro em mim, cai rufando à mó de irmãs galeras:
Erguer âncoras, vá, alar! às maravilhas
De um mar hirto de leões em fogo e estranhas feras!
Arquipélago argênteo, esplêndidas Antilhas,
Farelhões de rubis, lumaréus de crateras,
Alfaquis de corais, por entre vós flotilhas
De áureas palandras vão rodando como esferas.
Aproar... subir ao céu, rumo dessa obra prima:
Vamos de perto olhar quem a faz, quem a ordena,
Quem o abismo no abismo encrava, e o estende, e o
anima.
Aos deuses!... Ao chegar bradaremos: À cena...
E hemos vê-los jogar os sóis abaixo e acima,
Como besantes de ouro às mãos de histriões na arena!
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