A GRANDE LÁGRIMA
Ignari hominumque
locorumque...
Virgílio —
Eneida
Vem. Há uma ilha ignota
Para mim e para ti:
Palácios em cada grota,
Muita luz no sol que ri...
Multa alegria em teus olhos,
Muita testa em cada flor:
A vida um mar sem escolhos
À sombra de nosso amor.
Enchendo o espaço, cobrindo
De almo alvoroço e prazer
O sol do teu rosto lindo,
Que tudo faz esplender.
Minha alma as asas abertas,
Fremindo nas tuas mãos
Por essas praias desertas...
Os corações —
dois irmãos...
A vida um hino eviterno
Em duas liras num som:
Dois numa barca ao galerno...
Ai! como isto tudo é bom!
Mas olha: deixa a cidade,
Fujamos, fujamos já:
Beba-se até à ebriedade
Os raios de ouro, que inda há
Dentro da taça da vida...
Que não o veja ninguém:
O gosto bom da bebida
Às últimas gotas vem.
Como duas borboletas
Brinquemos num vale a sós:
E o próprio vale, se isto
aceitas,
Que inveja vai ter de nós!
Vamos. —
No bosque vizinho
Arrulham as juritis...
Vou lá fazer nosso ninho:
Vem: olha, vais ser feliz.
Tu, lá chegando, adivinha...
Há conspiração geral:
Hão de aclamar-te rainha
Todo o bosque e todo o val.
Ouvirás as sinfonias
Das palmas e dos rosais:
Fauno a dar-te alto os bons
dias,
E a dar-te baixinho os ais...
Prepara-te, foge, voa...
Não cismes, que então não
vens:
Guarda-te a aurora uma coroa
De lírios, rosas, cecéns.
Um lago, em nesga do prado,
Dorme, líquido lençol,
E tem no seio engastado
Um grande diamante —
o sol.
Descalça teus pés, desdobra
Nesse límpido cristal
Teu corpo, e o sol, —
grande obra, —
Apanha e põe no sendal.
À noite, os dois alabastros
Dos teus pezinhos tu pões
Entre o barulho dos astros,
Saltando na água aos milhões,
Neles bulindo aos cardumes
Alegres, com tal rumor,
Que começo a ter ciúmes
De ver-te os pés na água pôr.
Onde o sonho me arrebata;
Onde o desejo me quis!
Estamos já dentro da mata;
Lavas já teus pés gentis...
Como é bela esta ilha ignota:
Vamos pois viver ali:
Palácios em cada grota,
Muita luz no sol que ri...
Vamos já, pois fica certa,
Que, se olhares para trás,
A ilha fica deserta,
Eu não vou e tu não vais.
Custa pouco o inconveniente
De não ires e eu ficar:
Uma lágrima somente
Grande... amarga... como o
mar!...
A NOIVA DO CADÁVER
O, if thou teach me to believe this sorrow,
Teach thou this sorrow how to make me die,
And let belief and life encounter so
As doth the fury of two desperate men
Which in the very meeting fall and die!
Shakespeare —
King John
Vinhas tocada de um bulcão
violento,
Pobre folha duma árvore
arrancada;
A palidez da morte debuxada
No rosto macilento:
Teus pés traziam tua
formosura,
Como uma estátua em base mal
segura,
Que oscila e varre o vento...
Com tuas mãos tão brancas
como as penas
De alva pomba, que treme e
sente frio,
E as leves asas róridas
sacode,
De as ter molhado ao rio,
Abriste a porta trêmula e
chorosa!...
Nunca a aurora molhou mais
branca rosa
De esplêndido rocio.
E os dois astros seguiam do
oriente
Par a par, em serena
claridade,
Diante deles toda a
imensidade,
Deus inda mais adiante...
Eis de repente um deles cai sem
lume!...
Viu-se o golpe: ninguém ver
pode o gume
Da espada fulminante!...
Tinhas a rosa dos vergéis dos
sonhos
Colhido já e quase no teu
seio:
Mas quem assim tão de repente
veio
Roubar-ta, ó linda amada?
Quando uma voz te disse: —
é morto o noivo:
—
E ias pegar na rosa e viste o
goivo...
Caíste fulminada!...
O raio que golpeia o monte, a
rocha:
O furacão que os ápices
procura,
Caiu sobre o teu sonho de
ventura,
Como uma águia cobarde:
Ó fina flor de tão suave
aroma,
Para salvar-te um Deus nem
tarde assoma?
Não vem... nem mesmo tarde?
Como te palpitou o peito
ardente,
Que mágoa ou que prazer
encheu-te o seio,
Quando o teu lábio a sua
fronte algente
Beijou em doce enleio?!...
Que fez teu coração
dilacerado,
Quando sobre o seu corpo
debruçado
Tinhas teu corpo a meio?
Quando o teu jovem sangue
espadanando,
Enchia de calor teu corpo
inteiro,
E fazias de ti seu leito
brando,
Seu doce travesseiro?
E co'a boca colada à sua
boca,
Querias dar-lhe, ó linda
amante louca,
Teu sopro derradeiro?!...
Estava adiante a mocidade e a
vida,
Tudo o que a alma procura,
anseia, anela,
De primavera esplêndida
cingida
De um noivo a fronte bela:
Era o doce mancebo que
sonharas:
Ias com ele em breve às
santas aras,
Ó cândida donzela.
Oh! como a dor te acentuava o
rosto,
E cinzelava os teus mármores
traços.
Eras a eterna estátua do
desgosto,
Caídos os dois braços.
Derreado o cabelo, o gesto
insano,
Como soluça, arqueja e chora
o oceano,
E se rasga em pedaços...
Só com ele na alcova e tu
coberta
Do teu dó, do teu luto e
desvario,
Vinhas ver o espetáculo
sombrio,
Mas não... mas nunca aquilo:
Ver-te e não levantar-se?!
Oh! desgraçada!
E um momento ficaste
mutilada,
Como a Vênus de Milo!...
Eu vi um quadro assim: era
uma cópia
(Fiel a cri) de uma mulher de
Guido:
Pelas dobras do colo e do
vestido
Revolvida a melena,
Pálida a fronte bela, olhos
vermelhos,
E abraçando um cadáver de
joelhos:
—
Jesus e Madalena. —
Tinhas dessa mulher santa a
atitude
De estátua derrubada e a
forma e o encanto:
E na aflição, no soluçar, no
pranto,
Eras bela e sublime!...
Porém, com ela, em seu sofrer
violento,
Só te não perturbava o
sentimento
De uma culpa, ou de um crime.
Morto aí estava!... Ai!...
morto!... e na primeira
Primavera da vida amena e
doce!...
E a louca Ofélia se pusera à
beira
Do berço em que dormia!...
Dormia ali o amante um sono
infindo!
—Acorda...
acorda... — E dela o braço lindo
Embalde sacudia!...
Ó pobre Ofélia, Ó mármore
esculpido
Com tanta graça e esplêndido
em brancura,
Que te dizia o teu amante ao
ouvido
Na impassível postura?
Sentiste-lhe saltar alguma
fibra?
Aquela carne não tremeu...
não vibra
Sob a tua mão tão pura?...
Nada te disse, nada te
dizia!...
Eras na dor, no prantear
sozinha!
Ele que ontem a poeira
beijaria
Dos teus pés de rainha,
Estava mudo na dor que te
elevava,
Ele escravo que agora, como
escrava,
Plangente aos pés te tinha.
Mas como te arrancaram desse
leito
Em que dormia o teu porvir
brilhante?
Ai! quem pôde soprar-te a
vida ao peito,
Sem te animar o amante?
Viúva rola que não sais do
ninho,
E esperas vê-lo à volta do
caminho
Surgir a todo o instante!...
Oh! não virá! —
Não acharás conforto
Na sua imagem límpida e
querida:
Teu pobre amante a âncora da
vida
Lançou no eterno porto;
Mas como eu bendissera igual
instante,
Se foras tu a minha triste
amante,
E eu fora aquele morto!...
Teus infantinos, delicados
ombros
Vergam com tanto peso de
amargura...
Em tua doce e pálida figura
Ri-se a morte tão calma!...
Oh! reparte comigo... —
eu sou robusto —
Dor, tristeza, viuvez,
lágrima, susto,
As sombras de tua alma.
Quero medir a dor que conter
pode
Uma alma, que talhou a morte
em duas:
Sobre o meu coração, mulher,
sacode
Todas as dores tuas...
Oh! dor, eterna filha dos
pesares,
De que profundidões rompem os
mares
Do pranto em que flutuas?...
Mulher tão linda que em
mistério eu amo,
Se a violência da dor faz que
sucumba,
Lancem-me a morte e Deus à
mesma tumba,
Que eu quero acompanhá-la:
Como dois corações
entrechocados,
Caem do abalo mortos, e
enterrados
Dormem na mesma vala.
Dormem? Quem sabe? Há grandes
desgraçados,
Mais do que tu, Romeu! nem
são chorados!
Ninguém na terra os vê; e
olhos voltados
Deles tem mesmo Deus...
Mesmo Romeu os apunhala e
mata!...
Eles nasceram sob estrela
ingrata,
E eram também Romeus!...
Vê-se desta mulher na fronte
o sulco,
Que a dor... a intensa dor
golpeara nela,
Como do anjo caído à fronte
bela
A cicatriz da lança,
Com que o irmão o esmagou,
conserva ainda:
E no dedo gentil da mão tão
linda
Guarda o anel da aliança.
Reflexo eterno desse amor tão
puro,
Tem nele a triste história ou
vivo emblema:
Há coração tão rijo que não
gema
De ver assim quebrados
Esses fios de pérolas
brilhantes,
Que iam ligar num só os dois
amantes,
E em lágrimas tornados?
Se há Deus, se a cova dá para
o infinito,
Certo cadáver deve sentir
inda
O corpo quente duma amante
linda,
Trêmula de ansiedade,
Que o envolve nos seus
braços, nos seus beijos,
E prolonga os seus últimos
desejos
Até a eternidade.
Rola viúva e virgem, que eu
não possa
Levantar o teu véu de negra
renda,
Que à luz do sol do céu teus
olhos venda,
E os venda ao meu amor!...
Oh! que eu não possa... que
eu não deva amar-te
Mas ao menos comigo a dor
reparte:
Dá-me toda a tua dor...
Eu sou também pra ti o amante
morto:
Tu és a Ofélia que eu perdi
no lago:
Nem eu posso pedir-te o teu
afago,
Nem tos posso oferecer...
Somos os tristes mortos da
esperança!
E a mim, como ao teu noivo,
que descansa,
Nem me resta morrer!...
Ai! não teria, não, como o
cadáver
Do teu esposo em breve e
noivo apenas
O perfume das brancas
açucenas,
E o aperto dos teus braços,
E o achego do teu corpo a um
corpo mudo:
Ali restam do teu amor em
tudo
Eternamente os traços...
Vives hoje na margem
solitária
De uma lagoa plácida e
tranquila,
Como o guará, que pra morrer
se exila
Na espessura do mato.
Bela palmeira de haste
derrubada,
Revês a coma verde inda
enrolada
Nos cristais do regato.
E eu amo-te sozinha assim na
sombra
Do sítio, em que ninguém te
sonha e pensa
Chorando a tua dor profunda e
imensa,
Pobre rola viúva...
Já não te alegra mais o sol
que passa:
Ris talvez, quando o céu se
despedaça
Em lágrimas de chuva...
Quando e como me veio este
amor grande?
Como a luz doce dum luar de
outono,
À meia noite, quando a terra
em sono
Na sombra se reclina:
—
Quem a desoras bate na minha alma? —
Eu perguntei: —
e vi-te, estrela calma
Iluminando a ruína...
Como te visse, pareceu-me...
(engano
Da alma talvez) mas eu o cri
decerto,
Que era um arneiro amplíssimo
e deserto
A minha vida inteira:
Que ia dela os grilhões
levando a rastro,
E que eu te conhecia, como um
astro,
Seguindo a minha esteira...
Eu te vi sempre... eu te
conheço muito!...
Sempre te amei... oh! sempre
te amaria...
Mas que eras tu, mulher, eu
não sabia...
Ai! de mim! ai! de mim!...
Tarde... ai! tarde
acordei!... Era já crime,
Beijar-te os pés até, mulher
sublime,
Joia perdida enfim...
Tesouro de uma pérola sem
preço,
Que eu vi rolar às margens do
ribeiro,
Que eu deixei apanhar ao
companheiro,
Sem me lembrar de vê-la:
Quando ele a teve, eu vi o
que eu não tinha!
A culpa não foi dele: ai! foi
só minha
De te perder, estrela.
Então eu pus o coração ao
cepo,
E disse: —
ó dor, em pé:
levanta o malho;
Foi pedra o coração, fá-lo
cascalho,
Bate nele e o tortura:
Sofre? castiga-o, —
é teu dever: que importa?
Mata-o, pois, mata-o, —
já que enfim está
morta
A esperança da ventura... —
Como se cava o chão e se
levanta
Mármores, bustos, capitéis,
colossos,
Grandes ruínas, rútilos
destroços
De impérios sepultados,
E novos templos rojam-se aos
espaços,
Da própria dor levanta os
teus dois braços,
Redoira os sóis passados...
E disse mais: —
esse murmúrio baixo,
É como a queixa inútil do
regato:
Como um ruído vão dum
insensato,
Que fala e que não pensa:
Duram mais os espinhos do que
as flores:
Anjos, não conheceis humanas
dores...
Nem minha dor imensa.
Para secar as asas da sua
alma
Molhadas pelo inverno em que
caminha,
Já não esperou sol, como a
andorinha
Num galho solitário:
Ficou do sol que a vida lhe
há dourado
A lembrança —
esqueleto iluminado
À luz dum lampadário...
Resta-lhe agora a noite de
tristeza,
Salpicada de lágrimas; a vida
Como estátua de mármore caída
Em charco do aguaceiro...
Só fica neste inverno
rigoroso
Tarda andorinha a voejar sem
pouso,
Sem sol, sem companheiro...
Desestrelada noite, és triste
agora!...
Mas como te respeito a dor
sublime!...
Todavia responde-me se é
crime,
Vir ver-te à solidão?
Anjo de asas abertas sobre o
vaso
Que encerra as coisas desse
amor, acaso
Não te falta um irmão?
Um dentro do sepulcro, outro
de fora,
Sem um Deus que se erguendo —
unam-se — diga:
Mas a saudade ao céu inda te
liga,
Anjo a meto isolado:
Dize-me: no palácio que te
abriga,
Não darás tu a um pobre, que
mendiga,
Um cantinho ao teu lado?...
Se me negares tudo, a
parca esmola
Do mendigo que bate à tua
porta
Vergado, pois que leva a
esperança morta
Dos ombros através,
Dos teus olhos —
joalheiros de diamantes —
Se tens deles alguns menos
brilhantes,
Um... atira-lhe aos pés...
Um distraído olhar de
condoimento
Ao irmão na dor; um gesto
compassivo,
Que acaso fosse um tênue
lenitivo
À mágoa que o golpeia!...
Forjou bem forte o anjo da
saudade
Essa, que a alma te prende à
eternidade,
Insondável cadeia!...
Tenho uma grande lágrima tão
quente,
Que era bastante só, pra
derretê-la;
Mas invisível vai de estrela
a estrela
O grilhão, que ao granito
Do túmulo te prende; —
ele atravessa
O céu, os astros, cai na treva
espessa,
E se estende ao infinito!...
NOTA
Este pequeno poema de ocasião pede um reparo. Era eu estudante e passava umas férias na Tijuca, numa pequena casa, branca, tímida, escondida entre o mato e para as vertentes que olham a lagoa de Jacarepaguá. — Nos frequentes passeios que dava pelos sítios escolhidos, solitários, de uma selvagem grandeza, que os amadores conhecem e que todos não compreendem, encontrei-me por vezes com um moço de distintas maneiras, triste, simpático e que se aprazia sobretudo dos lugares em que aquela natureza chora e soluça mais rude, mais delirante, mais grandiosamente.
Pouco
e pouco fizemo-nos conhecidos. Conhecermo-nos, foi amarmo-nos.
Um
dia, aos últimos raios do sol da tarde, comovido contou-me ele este episódio de
vida íntima: Era seu amigo um jovem que morrera de uma síncope na véspera do
consórcio. A formosa e interessante senhora, sua noiva, enviuvara um dia antes
de efetuar o casamento.
Ele
mesmo a amava reconditamente, em silêncio, dentro dos limites de sua consciência
e do seu coração.
Motivo
insuperável tornava inútil qualquer tentativa junto àquela mulher, presa agora
a um sepulcro pela saudade e cuja chorosa viuvez a levantara ainda mais aos
olhos seus.
Impressionado
ainda, salpicado de suas próprias lágrimas, ainda a ouvir-lhe os soluços
profundos, como arrancos de um mar em convulsão, envenenado do contágio de sua
imensa dor, apropriei-me ao assunto; foi esta elegia a obra de um
momento, que li no dia seguinte com certa comoção, parando de quando em quando,
para deixá-lo chorar livremente.
Parece
que o melancólico trecho palpitava de verdade, porque, erguendo a cabeça e
cravando os olhos úmidos, vermelhos, e espantados sobre mim, perguntou-me com
uma cólera mal disfarçada: conheces e amas também essa mulher?...
Apertei-lhe
as mãos e sorri-lhe tristemente.
Eu
nunca a vira.
Meu
companheiro de férias reside hoje na Europa. A Senhora, que vi depois algumas
vezes e que, em verdade, era adorável, creio que é morta há muito tempo, após
ter viajado pela Grécia e pela Itália, países de grandes recordações e de
grandes ruínas, onde as almas que desaprenderam o rir encontram os
prolongamentos das suas tristezas, das suas recordações e das suas ruínas, como
um eco de vida inteira de lágrimas.
O
inútil poema não produzirá nenhuma impressão em ninguém mais. Que importa?
Tinha sido só para ele. Ela mesmo nunca teria conhecimento nem dessa paixão,
nem deste poema.
***
Hoje
que se pública o canto elegíaco, todos são mortos, exceto o seu autor. — O tempo faz desaparecer tudo.
Luís
Delfino
ATLANTE ESMAGADO
Um dia ouvi... (abismo
eterno, onde caído
Um século jaz, depois de ter
ouvido
Essa música doce, etérea,
inebriante...)
Nos meus cabelos o teu lábio
palpitante,
Como as asas de uma ave a
tiritar medrosa,
Depor um beijo... ouvi!...
Tua boca cor de rosa,
Ninho de colibri, ninho do
teu sorriso,
Que tem mais esplendor que a
ave do paraíso,
Tua boca, mulher, pousou nos
meus cabelos.
Um céu!... Era demais! Dobrei
os meus joelhos,
Vacilei ao luzir dessas
constelações,
Que me vinham buscar em
loucos turbilhões!
E eu tinha ao mesmo tempo o
severo semblante
De Anteu, que vai cair, ou de
esmagado Atlante.
Em torno a mim havia as
serpes. Laocoonte.
Era Tifeu descendo o céu, e
monte e monte
Sentia a enormidade
incógnita, que oprime;
De um excesso de luz estava a
fronte ferida;
Era um deslumbramento imenso
a minha vida.
Rolava por cairéis de abismos
sem escolhos,
Com abismos nos pés,
escuridões nos olhos:
Esmagava-me o céu descido do
seu beijo:
Nunca até ele houvera
ensaiado um desejo,
Quando vi de repente aquela
chuva toda
De astros, que vinham nele a
iluminar-me em roda...
E foi ele tão leve, e
trêmulo, e queixoso,
(Que infinito há num beijo,
ai! num beijo e seu gozo!)
Como o doce ranger das
estreladas portas
Na noite silenciosa, em
fundas horas mortas,
Quando pela calada a alma
absorta cisma,
E olhando o azul ao suave e
diáfano prisma
De um sonho alado crê, que um
anjo, que resume
Todo o amor, que há no céu,
todo o esplendor da aurora,
Vem ver-nos, estendendo a
áurea fronte de fora,
Fugindo após, lanceado o
coração de ciúme.
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