
A UM CERTO HOMEM
Agora
és todo nosso: a rude voz da história
Já
pode hoje falar
E
dar-te um balancete às nódoas e à glória
Rei-Sol
de boulevard.
Que
dias de esplendor! Porém como começa
A
noite e a podridão!
Foi
Deus que te mandou também para a Lambessa
Da
eterna punição!
Enfarda
a tua glória e leva-a que é vergonha
Que
vejam amanhã,
Que
até lhe depenou as águias de Bolonha
O
abutre de Sedan!
E
visto que em redor nenhuma estrela brilha
E
a noite é longa e má,
No
caminho do opróbrio acende a cigarrilha
E,
césar, ouve lá:
Que
altiva e bela a França! Aquela Gália ardente
Que
de Valmy levou,
Descalça,
quase nua; a Marselhesa em frente;
Nossa
alma até Moscou!
Seus
filhos têm a foice: envergam rudes clâmides
Depois,
caminham sós;
E
enquanto ceifam reis acordam nas Pirâmides
A
alma dos Faraós!
E
vão cheios de fé, bandeira solta ao vento,
Na
gleba das nações,
Convictos
semeando o novo pensamento
No
sulco dos canhões!
Mas
tu chegas um dia: afogas-lhe a grandeza
E
quando a tens aos pés,
Celebras
a vitória aos hinos de Teresa,
A
musa dos cafés!
Banquetes
dás ao crime; e os teus heróis de esquina
Ainda
a afrontam mais,
Tornando
a Marselhesa em torpe Messalina
Dum
circo de chacais!
E
sobre alguns montões de mortos ainda quentes,
Enfim
campeias, tu,
Que
deste à sagração das coisas dissolventes um
Petrônio
Sardou!
Porém,
quando ao comer ainda um beijo à Fama,
Um
dia avanças mais,
Teu
carro triunfal trambolha-te na lama
E
então como tu sais!
Revolves-te
no horror das vis, infectas ondas
De
lodo e podridão,
E
vais de manto roto e vestes hediondas
Buscar
a escuridão!
Em
vez de reclinar a fronte ao sol ardente
Da
luta que sorri,
Do
fumo dos canhões fugiste, e de repente...
Matou-te
um bisturi!...
Que
entrada a tua, então, na fúnebre morada,
Pisando,
incerto, o pó,
À
luz duma lanterna, ao vir da encruzilhada,
Sinistro,
sujo e só!
Das
cinzas levantou-se um brado entre os jazigos
Dos
bons e dos leais,
Apenas
descobriste a marca dos castigos
Nas
faces triviais!
E
quando te assustava o olhar altivo de Hoche
E
o gesto de Danton,
Sorria-te
na sombra o amor da Rigolboche
Meu
César-Benoiton!

À HORA DO SILÊNCIO
Eu
quis ontem sonhar, sentir como um romântico
A
doce embriaguez do pálido luar,
Ouvindo
em pleno azul passar o imenso cântico
Dos
astros no seu giro e em sua luta o mar!
A
cidade dormia o sono dos devassos;
Aquele
sono turvo, infecto e sensual:
E
a lua, antiga fada, erguia nos espaços
Tranquila
e sempre ingênua a fronte de vestal!
E
sobre a quietação das coisas vis e exóticas
Sentiam-se
as febris, cruéis respirações,
Dos
tristes hospitais e das virgens cloróticas,
Dos
amantes fatais da febre e das paixões!
A
noite era em silêncio, a atmosfera doce
E
ria a natureza aos beijos dum bom Deus.
De
súbito escutei, ao longe, o quer que fosse
Dum
canto que supus então baixar dos céus!
Atento
ao vago som, porém, a pouco e pouco
Senti
que era uma voz disforme e sensual,
Soltando
uma canção naquele acento rouco
Da
triste inspiração alcoólica e brutal!...
O
terna vagabunda, enamorada lua!
Enquanto
ias assim, diáfana e sem véu,
Uma
triste mulher passava, então, na rua
Cuspindo
uma porção de infâmias para o céu!

EU QUISERA
Eu
quisera depois das lutas acabadas,
Na
paz dos vegetais adormecer um dia
E
nunca mais volver da santa letargia,
Meu
corpo dando em pasto às plantas delicadas!
Seria
belo ouvir nas moitas perfumadas,
Enquanto
a mesma seiva em mim também corria,
As
sãs vegetações, em íntima harmonia,
Aos
troncos enlaçando as lívidas ossadas!
Ó
beleza fatal que há tanto tempo gabo:
Se
eu volvesse depois feito em jasmins do Cabo,
—
gentil metamorfose em que nesta hora penso;
Tu,
felina mulher com garras de veludo
Havias
de trazer meu espírito, contudo,
Envolto
muita vez nas dobras do teu lenço!

O VELHO CÃO
Soltava
ontem já tarde um velho cão felpudo
Uns
doloridos ais,
Em
frente dum palácio altivo, belo e mudo,
Cerrado
aos vendavais.
Fazia
pena ouvi-lo, o mísero molosso
Em
seu triste chorar!
Era
quase uma sombra: apenas pele e osso
E
um vago, um doce olhar!...
Eis
a sorte cruel do pobre que não come,
Dos
míseros sem pão!
Em
paga ainda em cima os vai tragando a Fome,
A
negra aparição!
Latia
o cão faminto. O frio era mordente,
Feroz,
quase voraz!
E
o pobre não sabia, enfim, que há muita gente
Que
adora a santa paz.
Ora
perto vivia uma galante rosa,
Etérea,
virginal,
Que
tinha um lindo colo, amava, era nervosa
E
a quem fazia mal,
Aquele
uivar sinistro; a ponto de em desmaios
Pender
a fronte ao chão!
Saíram
pois à rua impávidos lacaios
E
foram dar no cão.
—
Há no mundo um rafeiro, um velho cão esfaimado,
—
o povo sofredor,
Que
às vezes vai ganir, com fome, o seu bocado
Às
portas dum senhor.
O
resto é velha história: ocioso é já dizer-vos
O
fim que ela há de ter.
A
Ordem, só de ouvi-lo, alteram-se-lhe os nervos
E
manda-lhe bater!

AS VELHITAS
Eu
não professo muito o culto das ruínas.
Prefiro
uma oficina às velhas barbacãs;
Das
velhinhas, porém, mirradas, pequeninas,
No
entanto nunca insulto as prateadas cãs.
Deixá-las
caminhar, curvadas, vagarosas,
Com
seu bento rosário, os seus fofos beitões,
A
rirem-se de nós, cruéis, maliciosas,
Sagazes
comentando as nossas ilusões!
Ah,
velhitas sem cor! Cabeças regeladas,
Vulcões
de que só resta a cinza e nada mais:
Já
fostes as visões; talvez as brancas fadas;
Prendestes
vossos pés nos úmidos rosais;
Tivestes
já no olhar os bons reflexos mágicos
Dos
lagos ideais cobertos de luar;
As
curvas sensuais, os belos dedos trágicos;
As
rosas más do inferno, os lírios bons do altar!
Prendestes
já cismando as frontes melancólicas
Nas
varandas à noite, amantes dos Titãs
Do
belo amor antigo! Ó Márcias das bucólicas!
E
agora apenas sois as mães de nossas mães!
Segui
vosso caminho: as graciosas fadas,
As
belas da cidade, anêmicas, gentis,
Sorriem-se,
talvez, das fitas desbotadas,
Dos
provectos chapéus, das galas que vestis!
Oh!
Mostrando os troféus das vossas velhas rosas,
Dizei-lhes,
a sorrir, das fúteis ilusões,
Que
fostes já, também, galantes e nervosas
Mas
destes isso tudo a vários corações!
Agora
tendes pouco: apenas uns lamentos
Sentidos
contra nós; queixumes sem valor!
E
ao mundo importam muito os vossos testamentos
E
importa muito pouco a vossa imensa dor!
Batei
à grande porta: os belos dias vossos,
Velhitas,
bem sabeis, não podem voltar mais!
A
terra ide levar, enfim, nuns tristes ossos
O
resíduo fatal das coisas virginais!

ÀS VISÕES
Pois
que visões! Não cessa a rápida corrida
E
seja noite ou dia,
Volteadoras
cruéis! Vós sempre a toda a brida
Na
minha fantasia!
Parti,
quimeras vãs! Arcanjos ou madonas,
Parti,
que o mando eu,
Como
um bando fatal de velhas amazonas
Que
o circo aborreceu!
Levai
tudo convosco: as setas mais a aljava;
O
angélico sorriso:
E
as asas de escumilha em que eu voava
À
noite, ao paraíso!
Eu
quero, enfim, dormir; passar as noites gratas
Sentindo-me
feliz,
No
sono maquinal dos velhos acrobatas
Depois
das farsas vis!
Mais
tarde hei de sorrir, ou escarnecer-me quase,
Lembrando-me
— é verdade!
Que
onde eu supunha aurora havia apenas gaze
E uns
traços de alvaiade.
Perdão
se vos insulto! Oh, não, vós sois do empíreo,
Daquele
meigo azul,
Que
a todos tem sorrido: a Cristo no martírio,
Na
dor, ao rei de mie;
E
quando vos apraz, nas asas transparentes,
Mais
alto ides por certo,
Do
que as deusas gentis, aéreas, insolentes,
Que
vemos voar tão perto!
No
entanto podeis crer ó lúcidos fantasmas
Que
o século, afinal,
Oculta
no esplendor não sei que vis miasmas
Que
fazem muito mal!
E
quando vós passais, nas horas do mistério
De
estrelas revestidas,
Bebemos
nós, talvez, o aroma deletério
Das
rosas corrompidas!
Oh
sim! Parti depressa; erguei-vos deste abismo
Arcanjos
ideais,
Deixando-nos
colher a flor do realismo
Nas
coisas triviais!

MELANCOLIAS DE OUTONO!
Melancolias
de Outono! Eu quando além descubro,
Nas
tristezas do campo, as filas mugidoras
Dos
vagarosos bois que voltam das lavouras,
Compungem-me
as cruéis desolações de Outubro!
Das
orlas do poente, afogueado, rubro,
Ó
moribundo sol! Com que poesia douras,
As
formas triviais das cabecitas louras,
Que,
às portas dos casais, de bênçãos também cubro!
Solta
o canto final a orquestra da folhagem:
São
horas de partir; apresta-se a viagem,
E
as noites dos saraus hão de voltar mais belas!
Mas
as vistas lançando às regiões saudosas,
Nos
esforços cruéis das tosses dolorosas,
Em
bandos vão partindo as tísicas donzelas!

O VELHO MUNDO
Eu
vejo em toda a Terra um vasto cemitério,
A
necrópole imensa, a campa dos colossos,
Aonde
em paz descansa o velho megatério,
Por
entre a fauna morta, os carcomidos ossos!
E
os grandes leviatãs dos primitivos mares!
Os
tremendos répteis, cruéis, descomunais,
Celebram
no silêncio as núpcias singulares
Dos
seus resíduos vis, com ricos minerais!
E
os esqueletos nus dos lívidos gigantes
Abraçam-se
melhor; conchegam-se na cova,
Deixando
um lugar vago aos velhos elefantes
Que
vão fugindo à luz da natureza nova!
Também
no mundo interno as almas vão seguindo,
Na
corrente da vida, em mil circulações;
E
da consciência humana o largo abismo infindo
Oculta,
há muito já, disformes criações!
Elas
dormem na sombra imensa do passado
Aonde
em breve hão de ir nos transes doloridos,
A
velha Realeza e o trêmulo Papado
Sem
forças descansar os corpos corrompidos.
Depois
virão mais tarde as gerações futuras
E
os dois espectros vãos da sombra hão de evocar,
Bem
como a nossa voz, as grandes criaturas
Do
mundo primitivo, obriga a despertar.
E
as crianças terão seus nomes de memória,
Como
exemplo, na vida, a todos os momentos;
E
vê-los-eis de pé, nas páginas da história.
Grotescos,
maquinais, pesados, sonolentos;
Fazendo-nos
pensar; de espanto enchendo tudo;
Sofrendo
o riso alvar do ingênuo e do plebeu,
Iguais
ao mastodonte armado para estudo
E
exposto às irrisões nas salas dum museu!

EIS A VELHA CIDADE!
Eis
a velha cidade! A cortesã devassa,
A
velha imperatriz da inércia e da cobiça,
Que
da torpeza acorda e à pressa corre à missa!
Baixando
o olhar incerto em frente de quem passa!
Ela
estreita no seio a velha populaça,
Nas
vis dissoluções da lama e da preguiça,
E
nunca o santo impulso, o grito da Justiça,
Lhe
fez estremecer a fibra inerte e lassa!
E
pode receber o beijo e a bofetada
Sem
que sinta o rubor da cólera sagrada
Acender-lhe
na face as duas rosas belas!
Somente
dum sorriso alvar e desonesto,
As
vezes, acompanha o provocante gesto
Quando
soa a guitarra, à noite, nas vielas!

À NOITE
Eu
gosto de velar a percorrer os mundos
Ó
noite dos bons cânticos,
Aos
lívidos clarões dos astros vagabundos
Nos
êxtases românticos,
Enquanto
a vil cidade, a cortesã devassa
Dos
falsos ouropéis,
Com
seus famintos cães, a sua lua baça
E
os seus negros bordéis,
Ressona
torpemente aos beijos deletérios
Dalguns
velhos amantes;
—
os longos hospitais e os tristes cemitérios
Que
a afagam delirantes!
Contudo
eu também sei que existe muito instante
De
gelos, em que tu,
Feroz,
cravas o dente agudo e penetrante
No
pobre seio nu!
Que
há horas em que vens, nas úmidas cidades,
Nas
choças, nos esgotos,
Cuspir
cinicamente as frias tempestades
No
seio vil dos rotos,
Sem
ter pena, sequer, da pobre mãe que passa
Um
dia sem ter pão,
Nem
dessa esfarrapada e velha populaça
Que
rosna como um cão!...
Mas
em breve deixando as tenebrosas vestes,
O
manto dos horrores,
E
o gládio vingador das cóleras celestes
Ó
noite dos amores,
Retomas
o tom puro e santo do mistério
Da
pálida mulher
Que
vai colher, cismando, um lírio ao cemitério
E
ao campo um malmequer!
Em
horas de tormenta és a mulher colérica!
Até
cospes na cruz!
E
formam-te espirais na coma atmosférica
As
víboras de luz!
Porém
no teu regaço, altivo, casto, enorme,
Em
doce e plena paz,
É
que a virtude sonha e que a desgraça dorme
Depois
das horas más,
E
em lúcidos cristais há cintilantes vinhos;
Os
casos mais galantes;
As
lânguidas canções; os belos desalinhos
E
os gestos provocantes!
Ó
filha do silêncio! Aos puros alabastros
Dos
ombros ideais,
Se
Deus arremessasse a quantidade de astros
Que
em ti brilham a mais,
As
pálidas visões que passam doloridas,
E
um tanto contristadas,
Haviam
de surgir de estrelas revestidas
Em
trajos de alvoradas!
Em
ti cuida escutar uns sons inexprimíveis
De
lânguidas canções,
O
pobre sonhador de coisas impossíveis
Que
adora as solidões!
E
quando o resplendor de mundos luminosos
Na
tua fronte cinges,
Os
gatos sensuais, elétricos, nervosos
Repousam
como esfinges;
Enquanto
as combustões dos lívidos cometas,
Errantes
e fatais,
Consomem
lentamente as grandes borboletas
Dos
nossos ideais!
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