Biografia de Garrett
Há biografias que são de difícil
elaboração pelas trevas que as envolvem e pela ausência de documentos que as
corroborem. Muitas vezes só as obras do autor nos esclarecem. Outras há porém
de que se conhecem todas as épocas, todos os fatos. Destas é a de Garrett. Mas a
biografia deste escritor tem de particular que os mais simples episódios, que
todas as suas viagens e passos têm uma alta significação porque de todas
resultava um benefício, fosse para a Literatura, fosse para a Política.
E a sua atividade literária foi
enorme em todos os seus aspectos.
Por isso acomodar em algumas
poucas páginas a biografia de Garret parece-nos difícil tarefa. É a dificuldade
da escolha.
***
Cabe à cidade do Porto, à invicta cidade, a glória de ter sido berço de Garrett. Aí passou ele a primeira infância até 1800, ano em que acompanhou a Lisboa e depois à ilha Terceira sua família, que vinha fugindo aos franceses de Soult. Cedo começava a sua Odisseia.
Cabe à cidade do Porto, à invicta cidade, a glória de ter sido berço de Garrett. Aí passou ele a primeira infância até 1800, ano em que acompanhou a Lisboa e depois à ilha Terceira sua família, que vinha fugindo aos franceses de Soult. Cedo começava a sua Odisseia.
Foi na ilha Terceira que o futuro
chefe da Literatura portuguesa criou e desenvolveu a sua vocação literária,
mercê da cuidada educação ministrada por seus tios.
Em 1815, contando apenas 16 anos,
escreve a sua primeira composição poética, o poema Alfonsaida ou a Fundação do
Império Lusitano.
No ano seguinte passou ao reino e
foi matricular-se na Universidade, faculdade de direito, apesar das instâncias
de seus tios cônegos, que lhe aconselhavam a vida eclesiástica.
Na época de Coimbra é que Garrett
é consagrado poeta, sendo a sua primeira revelação pública uma elegia à morte
de um mestre muito estimado. É igualmente em Coimbra que o poeta se manifesta
liberal convicto, dirigindo o movimento de protesto contra a recusa do voto
eleitoral aos acadêmicos naturais daquela cidade.
Existia então na cidade
universitária um teatro de estudantes. Para ele escreveu Garrett várias tragédias
com assunto clássico, porque a tragédia clássica era o único meio de exprimir a
febre de liberdades, que a intransigência dos professores contrariava.
Quando em 1820 rebentou a
revolução liberal, capitaneada por Manuel Fernandes Tomás, Garrett saudou o
advento da Constituição com uma ode, lida e delirantemente aplaudida na Sala
dos Capelos. Foi o maior triunfo da sua vida acadêmica.
A época de 1816 a 1820 é pois a
fase de formação e revelação do grande gênio, como poeta, dramaturgo e
propugnador indefesso do constitucionalismo.
No ano imediato ao da sua formatura
publicou O Retraio de Vênus, poema em
quatro cantos, tendo por tema os amores de Vênus e Adônis e um bosquejo da História
da Pintura.
Naquela fase de oscilatória política
e de ideias também oscilantes, o bom gosto não existia e por isso o poema foi
apreendido e o autor processado. Esta querela teve de proveitosa a sua estreia
como orador eloquentíssimo, conseguindo a absolvição.
No mesmo ano, glorificando o
grande patriota Manuel Fernandes Tomás, escreveu para um teatro particular a tragédia
Catão.
Eram ainda as reminiscências da
intolerância literária que reinava em Coimbra.
No espetáculo, em que se estreou
a tragédia, conheceu a sua futura esposa D. Luísa Midosi.
A época que corre de 1822 a 1831
é na vida de Garrett uma longa Odisseia
durante a qual o poeta compõe as mais belas produções do seu lirismo, despertado
e inspirado pelas saudades da pátria e da esposa.
Garrett já então era apontado aos
absolutistas como liberalão e por
isso quando rebentou a contrarrevolução de D. Miguel, a Vilafrancada, emigrou para Londres, onde passou as mais duras
necessidades porque o governo inglês lhe negou a pensão a que tinha direito
como emigrado político.
Neste primeiro exílio Garrett
transformou-se como escritor, talvez por influência da vastidão do meio.
Como introdutor do Romantismo em
Portugal, escreve o Camões, poema
elegíaco, meio clássico, meio romântico e a Dona
Branca, a primeira composição portuguesa da nova escola, que assim ficou
definitivamente constituída.
Coligiu e reviu a antiga poesia
popular portuguesa.
Entretanto em 1826, D. João VI
morria, outorgava-se a Carta e indultavam se os criminosos políticos. Garrett
repatriou-se e fundou o Português,
cujos artigos determinaram a prisão dos seus redatores e entre eles o próprio
poeta. Por este jornal introduziu o seu fundador os folhetins e revistas de espetáculos.
Em 1828 D. Miguel regressava de
Viena de Áustria e proclamava-se rei absoluto.
Garrett, que seria vítima das
cegas perseguições de D. Miguel aos seus adversários políticos, emigrou
novamente, desta vez acompanhado de sua esposa.
Neste segundo exílio escreveu a Adosinda, poema, tendo por assunto uma
lenda popular, que foi logo vertido em inglês, e coligiu as suas primeiras poesias
sob o título Lírica de João Mínimo.
Em 1832 D. Pedro IV, que viera a
Portugal para advogar a causa do constitucionalismo que seu irmão D. Miguel
violara, recrutava na ilha Terceira o célebre exército dos 7.500 do Mindelo.
Garrett alistou-se, desligando-se depois por algum tempo do serviço por ser
nomeado para colaborar nas reformas regeneradoras da sociedade portuguesa.
Foi no exercício desse cargo que
ele redigiu o decreto que reorganizou a administração do país.
Voltando ao exército, bateu se heroicamente
no célebre cerco do Porto. Eram o sentimento do amor filial e a convicção das ideias
que o impeliam à cega defensão da mais nobre cidade portuguesa.
Durante esse memorável assédio, o
soldado cedia nas tréguas do combate alguns momentos ao escritor. O romance O arco de Sant'Anna, foi o produto desse
agitado período.
Passados anos, que novas perseguições
e viagens lhe trouxeram, vemo-lo entrar francamente na política.
Como fundador do moderno teatro
nacional, Garrett rompeu com os trágicos franceses e italianos, por cujo modelo
escrevera as tragédias da sua primeira fase literária e buscou assunto nas
tradições nacionais. Pertence a este período do dramaturgo Um auto de Gil Vicente. A ação deste drama baseia-se nos lendários
amores do poeta Bernardim Ribeiro com D. Beatriz, filha de D. Manuel.
A escolha foi felicíssima para
inaugurar o movimento de restauração não só pela oportunidade do assunto, mas
ainda pelo palpitante dos amores do infeliz novelista.
A peça despertou o maior
entusiasmo e preparou habilmente o público intelectual para assistir à
remodelação do nosso teatro.
O Alfageme de Santarém, outro passo agigantado para essa
remodelação, valeu-lhe por mal interpretado a demissão dos cargos de Inspetor
Geral dos Teatros e de Diretor do Conservatório, fundado por iniciativa sua.
A publicação do Frei Luís de Sousa em 1844 completa a
restauração. O Frei Luis de Sousa,
tão genuinamente nacional pelo assunto, tão heroico pelo exemplo de patriotismo
raro na época da ação, é a obra prima do moderno teatro português.
Abstraindo da cegueira e da
aduladora crítica que até aqui o têm julgado, o drama é um primor mais como
beleza que como perfeição. Todavia ainda
não foi destronado e posteriormente nada de comparável surgiu no nosso restrito
meio literário, onde quase o teatro nacional não existe.
O Frei Luís de Sousa, o drama Filipa
de Vilhena, e a comédia A sobrinha do
marquês, publicados a seguir, consumaram pois a reforma do teatro nacional.
O seu canto de cisne é o volume Folhas caídas, versos impregnados de um
lirismo melancólico, insuflado pelo avizinhar-se da morte e por amores tardios
por que a sua alma borboleteava.
Aos 55 anos (1854) Garrett estava
gasto pelas canseiras da sua agitada vida. E assim passou prematuramente aquele
grande gênio que com Herculano acordou a literatura portuguesa do seu letargo
desolador e a modernizou.
Garrett na poesia e no teatro,
Herculano na história didática e no romance reformaram intelectualmente a
sociedade portuguesa.
Espíritos tão diversos, Garrett
elegante, poeta do amor, estrela das salas, Herculano concentrado, cioso do seu
isolamento, quase intratável no fim da vida, concordaram contudo
involuntariamente os seus estímulos.
No muito que se tem dito e
escrito sobre Garrett, alguma coisa de parcialidade há a descontar porque à
volta do seu nome formou-se uma auréola de prestígio que, ainda ajudada pelo
atrito do tempo, dificilmente uma crítica justa conseguirá dissipar.
Contudo Garrett será em todos os
tempos um brilhante ornamento da nossa galeria de escritores.
---
FIDELINO DE SOUSA FIGUEIREDO
Setembro de 1905.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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