BALADA DO ENFORCADO
In Memoriam
C.T.W.
Ex-soldado da cavalaria da Guarda Nacional
Executado
na Real Prisão de Reading, em Berkshire
a 7 de julho de 1896.
O.W.
I
Ele não trajava mais o seu uniforme
vermelho, porque o sangue e o vinho também são vermelhos. E sangue e vinho lhe
tingiam as mãos, quando o encontraram junto da morta, a pobre mulher morta, sua
amante, que ele assassinara no próprio leito.
Com a sua roupa cinzenta e esgarçada
caminhava entre os condenados. Tinha à cabeça um gorro de jogar críquete, e o
seu andar parecia ligeiro e satisfeito. Mas nunca vi alguém olhar tão
intensamente a luz do dia.
Nunca vi um homem com tão intenso
olhar, fitando assim a pequena tenda azul, que os prisioneiros chamam céu, e
cada nuvem flutuante que além vogava, desfraldadas as velas de prata.
Eu o via do pátio contíguo, onde me
achava com outros desventurados. Estava a imaginar que falta, leve ou grave,
seria a desse infeliz, quando uma voz, por traz de mim, segredou: “Aquele vai
ser enforcado!...”
Que horror, santo Deus!... Os muros da
prisão estremeceram de súbito, a meus olhos, e o firmamento tornou-se qual ígneo
capacete de aço. E, conquanto minha alma estivesse imersa em profundo pesar,
tal foi a minha angústia, que, naquele instante, ela nada sentiu.
Compreendi, então, que negro
pensamento inexorável o perseguia, apressando-lhe o passo, e porque era que ele
contemplava com olhar tão intenso a fastidiosa claridade do dia: o desgraçado assassinara
a mulher amada, e, por isso, devia morrer também!
Mas todos matam o que amam... Alguns
(que ninguém deixe de saber!...) o fazem com um olhar de ódio; outros, por meio
de palavras carinhosas; o covarde, com beijos; o homem corajoso, empunhando uma
arma...
Uns matam o amor, quando são moços;
outros, depois de velhos; vários o estrangulam com as mãos do desejo; muitos,
com as do ouro. Os melhores servem-se de punhal, pois os mortos esfriam
depressa.
Há quem ame muito, e há quem ame
pouco. Este vende o amor, este outro o compra. Aquele, ao praticar o mal,
derrama copioso pranto, aquele outro o faz, sem um suspiro de compaixão. E
todos matam o que amam, e ninguém e por isso condenado a morrer!...
Quem assim procede, não morre de morte
infamante, em dia de negra desventura; não tem o nó corredio em volta do
pescoço; nem ao rosto a máscara; ainda menos sente, no patíbulo, o vácuo sob os
pés.
Não permanece no meio de homens
silenciosos, que o vigiam noite e dia; que o vigiam, quando tem vontade de
chorar ou quando tenta rezar; que incessantemente o vigiam, temendo que ele
roube ao cadafalso a sua presa.
Não desperta, pela madrugada, com o
rumor que fazem, ao entrar no seu cubículo, homens de sinistra catadura: o
Capelão, de branco, todo tremulo; o Xerife, austero e cheio de compunção; e o
Governador do presídio, de preto e cerimonioso, com o lívido semblante do Juízo
Final.
Não se levanta às pressas do seu
grabato — pobre homem! — para tornar a vestir o uniforme dos galés, enquanto o médico,
sem deixar de fitá-lo atentamente, anota cada um dos seus gestos e contrações nervosas,
olhando de vez em vez para o relógio, cujos leves tic-tacs soam como surdas
pancadas de um martelo horrível.
Não sofre a angustiosíssima sede, que
abrasa? garganta do condenado, ao aproximar-se a hora em que o carrasco,
asperamente enluvado de couro, virá manietá-lo com três correias finas e longas
para que ele nunca mais tenha sede.
Não inclina a cabeça, para ouvir a
litania do ofício dos mortos. E, enquanto o terror da sua alma lhe assegura que
ainda vive, não cruza com o seu próprio esquife, ao entrar no horroroso local
do suplício.
Não volve ao céu o derradeiro olhar através
da pequenina claraboia; não implora a Deus, com lábios de argila, que a sua
agonia finde; e não sente na face o gélido beijo de Caifás.
II
Vestido com a sua roupa cinzenta e
esgarçada, caminhava entre os condenados. Tinha à cabeça um gorro de jogar
críquete, e o seu andar parecia ligeiro e satisfeito. Mas nunca vi alguém olhar
tão intensamente a luz do dia.
Nunca vi um homem, com tão intenso
olhar, fitando assim a pequena tenda azul, que os prisioneiros chamam céu, e
cada nuvem que errante passava, longe, arrastando a fulva cabeleira
crinisparsa.
Ele não torcia as mãos, como fazem
esses insensatos que ousam tentar reviver a esperança, no antro do negro
desespero. Limitava-se a olhar para o sol e haurir o ar da manhã.
Não torcia as mãos; não chorava, nem
mesmo se lamentava. Apenas bebia o ar, como se nele encontrasse alguma virtude anódina.
Bebia o sol, a longos haustos, como se o sol fosse vinho.
Eu e os meus companheiros de
infortúnio, que passeávamos no pátio contíguo, chegávamos a olvidar nossas
próprias misérias, e os crimes de que éramos culpados, observando com olhares
de estúpido pasmo o homem que ia morrer.
Como era estranho vê-lo passear, com
um andar ligeiro e satisfeito! vê-lo contemplar tão intensamente a luz do dia!
e ao mesmo tempo dizer que ele tinha uma dívida tamanha a pagar.
O carvalho e o olmo são árvores de
ramagem deleitosa, frondescendo ao contato da primavera. É horrível, porém, ver
a árvore do Cadafalso, com a raiz mordida pelas víboras más; verdejante ou ressecada,
nela um homem deve morrer, antes que ela dê o seu fruto.
O mais alto lugar é a sede da Graça
Divina, para onde todos os esforços humanos convergem. Quem desejaria achar-se,
entretanto, com a sua gravata de cânhamo, no alto de um pelourinho, e através
desse colar de assassino volver o derradeiro olhar ao firmamento?
É deliciosamente agradável dançar ao
som dos violinos, flautas e alaúdes, quando o amor e a vida nos são
propícios... Mas não é suave dançar com agilidade no espaço.
Enquanto nos acudiam tais pensamentos,
observávamos o mísero, e fazíamos extravagantes suposições. Quem nos diz que o
nosso fim não será idêntico ao dele? Ninguém sabe até que inferno de horrores
sua alma cega pode transviar-se...
O homem que ia morrer deixou
finalmente de passear em companhia dos outros miseráveis... Disseram-nos que já
estava no acanhado e lobrego cubículo, para onde se transferem os condenados à morte,
antes do momento fatal... E eu soube que nunca mais tornaria a vê-lo, neste
doce mundo do Senhor!... Nunca mais!...
Como dois navios em perigo, que passam
na tormenta, cruzamo-nos um dia na vida. Nenhum sinal trocamos; nenhuma palavra
dissemos. E não havia palavra a dizer, porque não nos tínhamos encontrado no
seio da noite redentora, mas num dia de opróbrio.
Ambos estávamos cercados pelos
muros de uma prisão, e ambos éramos dois Deserdados da Sorte... O Mundo
repelira-nos de seu seio, e Deus de Sua Solicitude... O laço que se arma para
apanhar o Pecado, colhera-nos em suas malhas. ..
III
O pátio da antiga Prisão por Dívidas tem
as lájeas carcomidas. Transudantes de umidade, porejam os muros altíssimos que
o cercam. Era aí, sob o cálido céu, que ele arejava, e tinha sempre um guarda
em cada flanco, por lhe obstar o suicídio.
Às vezes, costumava sentar-se entre
aqueles que lhe vigiavam a agonia; que o vigiavam, quando se levantava para
chorar ou quando se ajoelhava para rezar; que o vigiavam a todo momento,
receando que ele roubasse ao patíbulo a sua presa.
Duas vezes por dia, fumava no seu
cachimbo, esgotava um caneco de cerveja... Sua alma estava tão cheia de
resolução e firmeza, que, em nenhum dos seus íntimos recessos, abrigava o medo...
Em certas ocasiões ele chegava mesmo a dizer que se sentia contente por ver
próximas as mãos do carrasco.
O Governador citava os artigos do
Regulamento: o Doutor dizia que a morte não era senão um fato científico, e
duas vezes por dia vinha o Capelão, e deixava um pequeno livro.
As suas expressões eram singulares,
mas os guardas não ousavam interrogá-lo. Quem aceita por missão vigiar
encarcerados, deve fechar a boca a sete chaves, e afivelar ao rosto a máscara
da impassibilidade.
Se assim não fizer, poderá comover-se,
e a que viria nesse covil a piedade humana? Que palavra de esperança poderia
socorrer, nesse lugar, a alma de um irmão?
Realizávamos a procissão dos loucos,
rodeando o pátio, em marcha lenta e cadenciada... Não nos importava celebrar
essa ridícula cerimônia tradicional, pois bem sabíamos que éramos a própria
brigada do diabo, e que homens de cabeça raspada e pés acorrentados formam
alegre mascarada.
Quebrando as unhas e ensanguentando os
dedos, desfiávamos cordas alcatroadas; esfregávamos as portas das masmorras;
limpávamos os tetos; areávamos os luzentes varões; e, por turmas, ensaboávamos os
assoalhos, fazendo grande ruído com os baldes d’água.
Também cosíamos sacos; quebrávamos
pedras; batíamos no chão com as gamelas onde comíamos, desentoávamos os hinos
religiosos; e enfim suávamos, fazendo mover a roda do moinho... Alegremente executávamos
todos esses bárbaros e pesados serviços, a que éramos coagidos, para adormecer
o terror, tranquilamente, dentro do coração.
E conseguimo-lo, por momentos. Tão
calmo repousava ele, que os dias vogavam serenos, como uma balsa levada ao sabor
da corrente... Estávamos como que olvidados do tenebroso destino que aguarda os
réprobos, quando, de uma feita, ao regressar do fatigante trabalho, passamos
junto a uma cova recém-aberta.
Com a goela hiante, voraz, a cova
amarela bocejava, esperando o seu alimento. A própria lama exigia sangue ao
asfalto corroído. E soubemos que, antes de loirejar entre nuvens a aurora, um
de nós, pendente da forca, dançaria no espaço...
Hirtos e solenes, entramos, com a alma
atenta à morte, ao espanto e ao destino. O carrasco passou, arrastando os pés,
com o seu saco de ferramentas... Cada preso tremia, ao entrar para o seu túmulo
numerado.
Por toda aquela noite, os fantasmas do
medo povoaram os corredores vazios... Na cidade de ferro, de cima a baixo,
sentiam-se passos furtivos, que se não podiam ouvir... Pelas grades de ferro, que
ocultam as estrelas, rostos lívidos pareciam espiar curiosamente.
Só ele repousava, tal quem
adormecesse, deitado sobre a macia relva de um prado, e alegremente sonhasse.
Os guardas velavam-lhe o sono, e não compreendiam como é possível dormir tão sossegado,
estando o carrasco tão perto.
Os que choram por quem jamais soube o
que era chorar, esses não podem conciliar o sono... Por isso, nós outros, os
desventurados, passamos em claro aquela noite de infindável angústia... Cada qual
sofria mais cruciantemente, ao recordar a dor imensa que devia estar a
torturá-lo...
Ah! é horrível padecer por outrem! O
sofrimento retalha-nos a alma, cravando, até ao punho, a envenenada lâmina do
seu gládio. Foram, então, como chumbo derretido as nossas lágrimas, vertidas pelo
sangue que não derramamos. Na sua ronda noturna, calçados molemente de feltro,
espiavam os guardas para dentro das enxovias, pelos postigos gradeados... Com
olhar de espanto e pavor, avistavam aquelas fôrmas indecisas, genuflexas no
chão... E interrogavam-se uns aos outros, como era que orávamos por quem jamais
orara!...
Passamos toda a noite ajoelhados, em
oração — dementes conduzindo o luto de um cadáver. As plumas agitadas pela
noite, ondeando na sombra, eram como os penachos de um carro fúnebre. E o sabor
do remorso era tal o de um vinho acérrimo, dado a beber por uma esponja.
Ouviu-se o canto dos galos, purpúreos
ou cinzentos, mas a aurora não despontou. Nos ângulos da nossa prisão se
agachavam os fantasmas oblíquos do Terror. Dir-se-ia que, cingido pelas trevas,
cada qual doidejava nesse campo obscuro!
Passavam e repassavam... Deslizavam
rapidamente, como viajantes em manhã de nevoeiro... Bailando, saltando,
subindo, descendo, deslocando-se, fazendo mil contorções, cada qual mais sutil,
fingiam os raios da lua, coando-se através da folhagem do arvoredo... Na cadência
dos seus passos cerimoniosos, com trejeitos e esgares, vinham chegando ao mesmo
ponto de reunião.
Com esgares e gestos funambulescos, vemo-los
quais sombras impalpáveis, dando-se as mãos!... Girando, girando, em grande
ronda fantástica, dançaram todos eles uma sarabanda... Os passos de dança
desses arlequins do diabo tão floreados eram, tão caprichosos, que semelhavam
os arabescos impressos pelo vento na areia.
Com piruetas de autômatos, dançavam
agilmente os espectros. Soprando nas flautas do medo atordoavam-nos mais e
mais, ao celebrar aquela horrenda mascarada... Cantavam ruidosamente, longamente
cantavam, porque o faziam para despertar os mortos...
“Oh! Oh! — bradavam eles — o mundo é
vasto, mas os homens coxeiam, sob grilhões. Se o jogo dos dados, uma vez por
outra, é um recreio gentil, nunca espere ganhar quem se aparceira com o Pecado,
no mistério do seu lupanar”.
Esses ridículos seres, que com tanta
alegria pinoteavam, não eram de modo algum formas aéreas. Para nós, que
tínhamos a existência acorrentada, e cujos pés não podiam caminhar em
liberdade, ah! pelas chagas de Cristo! eram vivos e bem vivos, e de horrendo
aspecto!...
Rodando... rodando... valsavam e
redemoinhavam... Alguns, cheios de afetação, giravam aos pares... Outros, com a
seriedade pretenciosa dos seus passos, galgavam as escadas. E todos eles, com finos
sarcasmos e carinhosas olhadelas, chegavam a imiscuir-se nas nossas preces...
O vento da madrugada começou a gemer,
mas a noite seguia o seu curso... Lenta... lentamente, fio a fio, uma a uma,
até a última, as trevas urdiram todas as malhas do manto colossal... Enquanto orávamos,
temíamos a justiça do sol!...
O vento gemedor veio errar em torno do
presídio, até que, tal qual uma roda de aço a girar, sentimos os minutos
penetrando-nos o ser. O vento gemedor, qual foi o nosso crime, para termos tal
carcereiro?
Assim como se veem as coisas mais
horrorosas, através do cristal de um sonho, vimos a corda de cânhamo pendente
do pelourinho... E ouvimos o começo da prece, que o laço do carrasco abafou,
num grande clamor...
A dor, abalando o condenado, foi tão
grande que o fez soltar aquele angustiosíssimo grito. Ah! ninguém lhe conheceu
tão bem, como eu, o remorso despedaçador e os suores de sangue. Porque lodo aquele,
que vive mais de uma vida, também deve morrer mais de uma morte.
IV
No dia em que se executa um réu, não
se diz missa no presídio. O sacerdote tem o coração enfermo, o rosto lívido e,
em seus olhos, vê-se escrito o que ninguém deve ler...
Por esse motivo ficamos encarcerados
até quase meio-dia. Quando o sino bateu, vieram os chaveiros abrir os cubículos,
um por um, fazendo retinir as grandes e pesadas chaves. Antes de abrir,
espiavam pelo orifício da fechadura... Então, cada qual saiu do inferno em que
jazia sozinho, e todos descemos pesadamente as escadas de ferro...
Fora das masmorras, no pátio,
respirávamos o bom e puro ar do Senhor. Não era, todavia, como costumávamos fazer
nos demais dias... O rosto de um estava branco de medo; sombrio era o de outro.
E eu nunca vi homens tristes contemplar tão intensamente a luz do dia!...
Nunca vi homens tristes, com tão
intenso olhar, fitando assim a pequena tenda azul, que os prisioneiros chamam
céu, e cada nuvem que no alto passava, indiferente na sua venturosa liberdade.
Alguns passavam cabisbaixos. Esses
sabiam que, se cada qual sofresse a pena merecida, também eles deveriam
morrer... O outro assassinara uma coisa viva, ao passo que eles haviam
assassinado uma coisa morta...
A sombra dos varões de ferro,
enxadrezados, projetou-se, enfim, na parede caiada, fronteira ao meu grabato.
Ah! nesse momento eu soube que, em certo lugar do universo, a aurora do Senhor,
em vez de loura e rosada, é cor de sangue e terrível.
Às seis horas da manhã varremos os
nossos cubículos. Às sete, tudo repousava em sossego. Mas um sopro fremente de
poderoso voo parecia agitar a prisão, como se um pássaro colossal tatalasse
invisivelmente as grandes asas... É que a deusa sinistra da morte, de hálito
glacial, nele havia penetrado para matar!...
O desgraçado passou... Não vestia púrpura
deslumbrante nem cavalgava um ginete, alvo como o luar... Três metros de corda
e um nó corredio — eis tudo quanto exige a forca.
Estávamos como alguém que, atascado
num paul, caminhasse a esmo, tateando a sórdida escuridão. Não ousávamos
balbuciar sequer uma prece, nem dar livre curso à nossa angústia. Alguma coisa
jazia dentro de nós. Era a esperança.
A justiça humana segue direito seu
caminho, sem dele se desviar uma única polegada... Ela tanto fere o forte, como
o fraco... Sua marcha é implacável. .. Com o seu calcanhar de ferro, a
monstruosa parricida esmaga o forte!...
Esperávamos que soassem oito horas.
Tínhamos a língua espessa e ressequida. O bater das oito era o golpe do
destino, que torna maldito um homem. E o destino emprega um nó bem corredio,
tanto para o melhor como para o pior dos homens.
Nada mais tínhamos a fazer, que
esperar pelo sinal anunciado. Semelhantes a rochedos fincados num vale deserto,
ali estávamos quedos e mudos. Mas o nosso coração batia precipite, como um
doido rufando um tambor.
De súbito, o relógio da prisão abalou
o ar fremente... De todo o presídio elevou-se, então, uníssono gemido de
impotente desespero, tal o grito que se escutasse, soltado por algum leproso no
seu antro.
Quem peca pela segunda vez, desperta
uma alma já morta para a dor, e arranca-lhe o sudário manchado, fazendo-a
verter — mas em vão! — densas gotas de sangue.
Como sonâmbulos, caminhando
inconscientemente, automaticamente, passeávamos na ponta dos pés, em volta do pátio
acimentado. Caminhávamos silenciosos, em grande moda, e ninguém proferia uma
palavra.
Rodávamos o pátio, em silêncio. Em
cada cérebro vazio turbilhonava a memória das coisas horrendas, como um vento
forte redemoinhando no ar... O pavor surgia em nossa frente, e sentíamos o
terror coleando por traz de nós.
Os carcereiros pavoneavam-se, aqui e
ali, guardando o seu rebanho de feras. Garbosos, ostentavam o fardamento novo
dos domingos. Mas, pela cal viva grudada à sola das suas botas, bem sabíamos a
que cerimonia haviam assistido.
No lugar em que fora aberta a cova, já
nada mais se via. Denunciava-a, apenas, um montículo de terra e areia, junto ao
horrendo muro da prisão, e um pouco de cal viva, para que o réprobo tivesse um
sudário.
Aquele desventurado tem uma mortalha,
como bem pouca gente pode desejar. Lá embaixo, bem no fundo do pátio de um
Presídio, ele jaz, nu, completamente nu, para sua maior vergonha, envolto num
lençol de chamas.
Pelo tempo adiante, a cal
devorar-lhe-á a carne e os ossos. Durante a noite, roerá os ossos rijos; e, de
dia, a carne tenra. A cal viva come sucessivamente carne e ossos. Mas, também,
devora sem cessar o Coração.
Durante três longos anos, não se
semeará, nem se plantará, naquele sítio. Durante três longos anos, o lugar maldito
conservar-se-á estéril e limpo, fitando o Céu, pasmo, com um olhar sem
reproche.
Os homens cuidam que o Coração do
assassino corrompe qualquer semente, que sobre ele se plantar. Mas, não é exato.
A benemérita Terra de Deus é mais generosa do que se pensa. Ali, naquele
terreno, a rosa vermelha, mais vermelha ainda desabrocharia, e a rosa branca,
mais branca, mais imaculada.
De sua boca nasceria, talvez, uma rosa
encarnada, rubra, purpúrea. De seu Coração, outra brotaria, branca, alvíssima
de neve. Quem poderá dizer de que maneira estranha Nosso Senhor Jesus Cristo
manifesta Sua Santa Vontade, depois que se viu o cajado seco de humilde
Peregrino florescer à vista dum grande Papa?!...
***
Mas, nem a rosa alvíssima de leite,
nem a rosa escarlata, podem florir, respirando o ar duma masmorra. Ali, só pode
haver seixos e pedras... Os Homens da Lei sabem que, muitas vezes, as flores
têm acalmado o Desespero de um homem de coração simples...
Por isso, nunca, jamais, nem a rosa
cor de vinho, nem a rosa cor de leite, cairão despetaladas sobre esse pedaço de
terra e areia, junto ao muro do Presídio, para dizer às pessoas, que passarem
pelo pátio, que o Filho de Deus morreu por todos nós.
***
Não obstante — mesmo morto e enterrado ele continuará ainda, como outrora, cercado pelos pavorosos muros da Prisão, e que ninguém venha chorar, ou rezar, por quem jaz em terreno tão ímpio:
O Miserável repousa em paz, ou em
breve repousara. Nada há ali que possa amedrontá-lo. O Terror não passeia de
dia, por aquele sítio, pois a Terra, sem claridade, em que ele descansa, não
tem Sol, nem Lua.
Eles o enforcaram, como se enforca um
animal! Nem sequer mandaram dobrar o sino, lugubremente, de modo a dar algum sossego
à sua Alma aterrada!... Levaram-no precipitadamente, e trataram logo de ocultá-lo
dentro dum buraco.
Despiram-lhe toda a roupa, e o
abandonaram às moscas! Caçoaram da sua garganta entumecida e arroxeada, e dos
seus olhos puros e fixos. Com grandes gargalhadas o envolveram no lençol com
que costumam amortalhar os condenados.
O Capelão não se ajoelhou à beira
desse tumulo infamado. Também não o assinalaram com a bendita Cruz que Jesus
Cristo deu aos Pecadores, justamente porque o Morto era um daqueles, para cuja
salvação Nosso Senhor baixou à Terra.
Tudo está perfeitamente bem. Ele transpôs
as fronteiras conhecidas da Vida. Por ele, lagrimas de estranhos encherão a
Urna da Piedade, há muito quebrada... A h! porque serão os Réprobos que hão de chorá-lo,
e os Réprobos nunca deixam de chorar!...
V
Ignoro se a Lei tem, ou não, razão. A única
coisa que nós, os Condenados, sabemos, é que os muros da Prisão são sólidos; e
que, cada dia que se passa, é como se fosse um ano, mas um ano de longos dias
infindáveis. Eu, porém, sei mais o seguinte: Todas as leis que os homens têm
feito, desde o dia em que o primeiro dentre eles tirou a vida a seu irmão, e
que o Mundo da Aflição começou, todas elas desperdiçam o que é bom, e só
conservam o que não presta.
Sei ainda (Ah! como seria bom se todos
pudessem também sabê-lo!) que, cada Prisão que se edifica, e construída com os
tijolos da Infâmia, e cercada de férreos varões, com receio que Jesus Cristo
veja como os homens mutilam seus próprios irmãos.
Por meio de grades, eles desfiguram a
Lua graciosa, e cegam o bom Sol. E fazem muito bem em ocultar o seu Inferno,
pois, lá dentro, ocorrem coisas que não deveriam de ser vistas, nem pelo Filho
de Deus, nem pelos filhos dos homens.
As ações mais vis, à semelhança de
ervas venenosas, espalham-se pelo ambiente da Prisão. Só o que o Homem tem de
bom, é que ali se esgota, se aniquila. A pálida Angústia vela à porta. O
carcereiro e o Desespero.
Porque eles amedrontam as crianças,
fazem-nas sofrer fome, até que chorem noite e dia. Flagelam o Fraco; açoitam o
Idiota; zombam dos Velhos cobertos de cãs. Alguns enlouquecem; todos se tornam
piores; e ninguém pode murmurar sequer.
Cada estreito e escuro cubículo, que
habitamos, é infecta e lôbrega sentina. O hálito fétido da Morte viva empesteia
o respiradouro. Ali, tudo, exceto o Desejo, reduz-se a pó, na Máquina Humana.
A água salobra, que bebemos, vem cheia
de nauseabundo limo; o pão, que pesam com meticuloso cuidado, é misturado com
cal e gesso. Ali, o Sono nunca se deita: caminha com olhos esbugalhados,
implorando o Tempo.
***
Apesar de se ver, constantemente, o
magro Espectro da Fome e o lívido Fantasma da Sede, pouco caso se liga ao
tratamento que dão no Presídio. O que gela e mata inteiramente, é que, cada
pedra que levantamos durante o dia, à noite se transforma no nosso próprio
Coração.
Com as sombras da Meia-Noite pairando eternamente no Coração, e o crepúsculo no cubículo, cada qual, no seu Inferno separado, desfia a corda alcatroada, que lhe dão por tarefa, e faz girar a roda... Então, o Silêncio amedronta mais que o som dos sinos de bronze!
Jamais voz humana alguma de nos se
aproxima, para nos consolar com doces palavras. O olhar, que a todos os
instantes espia pelo ralo, é impiedoso e duro. Esquecidos do resto do Mundo,
apodrecemos, tendo o corpo e a Alma gastos.
Aviltados e sós, enferrujamos, desse
modo, a cadeia de ferro da Existência. Alguns, proferem maldições; outros,
choram; muitos não deixam escapar o menor gemido. Mas as Leis Eternas do Senhor
são indulgentes, e partem o coração empedernido.
***
Cada Coração que se parte no pátio ou
no cubículo duma Prisão, é como aquela caixinha quebrada, que deu o seu tesouro
a Deus, e encheu a habitação do lazaro com os perfumes do nardo mais precioso.
Felizes aqueles cujos Corações podem
partir-se e ganhar a paz do Perdão! De que maneira o Homem poderia executar o
seu plano, e purificar a Alma do Pecado? Onde, senão num Coração partido,
poderia Jesus Cristo penetrar?!...
***
O Homem de garganta entumecida e
arroxeada, e de olhos puros e fixos, espera as Santas-Mãos que receberam o
Bom-Ladrão no Paraíso. O Senhor não despreza o Coração partido e contrito.
Os Juízes concederam-lhe três semanas
de vida, só três pequenas semanas, para que ele curasse a Alma do desacordo em
que estava consigo mesma, e purificar da mais leve gota de sangue a mão que
empunhou a arma homicida.
Com lágrimas de sangue, ele
purificou-a — a mão que manejara o ferro. Só o sangue pode apagar o sangue. Só
as lágrimas podem curar. E a mancha vermelha, que era de Caim, mudou-se no selo
alvíssimo de Jesus.
VI
No Presídio de Reading, perto da
cidade, existe um túmulo infamado. Dentro dele jaz um miserável, devorado pelas
línguas das chamas, envolto num lençol ardente. Esse túmulo não tem inscrição
alguma.
O Enforcado aí repousará, até que
Jesus Cristo chame os Mortos, no Dia do Juízo Final. Não e preciso prodigalizar
lágrimas, nem soltar suspiros abafados. O Homem matou a quem amava, e por isso
teve que morrer.
No entanto, todo o mundo mata o que
ama. Alguns (que ninguém deixe de sabê-lo!...) o fazem com um olhar de ódio;
outros, por meio de palavras carinhosas, o covarde, com beijos; o homem
corajoso, com um ferro.
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