NO JARDIM
Naquele engano d'alma ledo e
cego,
Que a Fortuna não deixa durar
muito.
Camões — Lusíadas
I
(Tarde de verão)
Dejando a los dos iguales
Dicha y desdicha...
Ah! meu bem, eu só lamento,
Que talvez essa ventura
Não seja de tanta dura,
Quanto era bom esperar!...
Já que o tempo tudo mata,
Farta-me bem meus desejos...
Ai! sacia-me de beijos,
E deixa o tempo matar!..
Tudo dura pouco ou muito:
A sorte o que nos destina?
Se hoje o gozo não termina,
Esperemo-lo amanhã...
Ai! esperemo-lo!... E
enquanto,
Prende-te bem ao meu seio:
Não tolde nenhum receio.
A tua fronte louçã.
Gozemos. —
Que importa o resto?
Terra, inferno, paraíso?
Perdemos dois o juízo
No mesmo aperto de mão...
No mesmo arfar do desejo,
No mesmo tremor do seio,
No mesmo confuso enleio
Na mesma doida emoção!
Caímos. —
Tu te abraçaste
No mesmo abismo comigo:
O nosso maldito abrigo
Tinha um encanto fatal.
Dormimos no mesmo lodo
Ocultos do mundo inteiro;
Junto ao nosso travesseiro
Cantava o anjo do mal.
Sorrias!... E o sol passava,
Beijando-te o céu da fronte;
E procurava o horizonte
Morno... calmo... sem parar.
Eu te apertava em meus
braços...
Convulsamente apertava...
E quanto mais te beijava,
Mais te queria beijar!...
Parecia-me que a noite
Do nosso céu de ventura,
Tenebrosa, feia, escura,
Acaso podia vir:
Que este clarão misterioso
Deste sol de felicidade,
No abismo da eternidade
Podia breve cai!
Volta o sol. —
Mas a ventura
Não tem tão certeiro giro...
Gozemos pois no retiro...
Deus enche os abismos, dando
Tantas pérolas aos mares,
Astros à noite aos milhares,
Milhões de flores ao val.
Deu ao nosso fundo abismo,
Que tantas sombras reveste,
Esta ambrosia celeste
De leite, de mel, de amor!...
Gozemos. —
Antes que chegue
O fim, que tudo ameaça,
Esvaziemos a taça,
Antes de em meio a depor...
Quem sabe? —
Gozemos hoje...
Manhã por vir não é nossa...
E a vaga, que engrossa,
engrossa,
Da praia estala ao sopé...
Quem sabe? —
A árvore pende,
Com o fruto de ouro, e
deixado,
Qualquer vento inopinado
Pode arrancá-lo! —
não é?!
II
Não sei se fiz mal, se bem.
Bernardim Ribeiro —
Menina e Moça
Pusera-se o sol. —
Qual fumo
De uma caçoula apagada,
Via-se a névoa enrolada
Nos crespos cimos crescer.
Além da amplidão das águas
Mexidas ligeiramente,
Branca lua no oriente
Mal vinha então de nascer.
À aragem trêmula, —
as flores
As róseas frontes baixavam,
E no caminho entornavam,
As urnas do seu olor:
Moldurava a natureza
Um quadro de ébano e prata...
Ao longe a sombria mata
Fazia surdo rumor!...
No tanque, que a lua banha
De moles clarões, nadava
Alvo cisne, que cortava
As águas sem as turvar...
Raras estrelas fixadas
No fundo dessa bacia,
Tinham tal melancolia
Que pareciam chorar!
Os nossos olhos buscavam
O que perto e longe havia...
Branca vela além corria,
— Branca pomba em branco mar —
Os remos iam fazendo
Leve rumor... leve espuma:
Um carro de bois, em suma,
Dorme, sem bois, junto ao
lar.
Do raro arvoredo a sombra
Esparsa no chão flutua...
Nas vidraças bate a lua,
Dentro delas não há luz...
Não sei que mau pensamento
Nosso respirar comprime!...
Ai! talvez o anjo do crime
Ali a sós nos conduz.
Latiu um cão... Não sei
onde...
Sombra do doce ruído,
Que ofendendo o nosso ouvido,
Convulsava o coração...
E eu sua mão apertava
Naquele jardim ameno...
E um lento, lento veneno
Me entrava por sua mão!...
Fez-se depois um silêncio,
Que espreitar-nos parecia;
Nenhuma folha caía,
Nenhum estranho rumor...
Nenhum estremecimento
Pelos troncos... nu, deserto
Céu, e mar, e terra... e ao
perto
Tudo a espiar nosso amor!
Assim na vaga azulada,
Como nos braços da amante,
Asa aos ventos, branquejante,
Palpita, ofega o batel;
Não está longe a praia:
ri-lhe
Perto a esperança fagueira:
Prende-o às vezes na carreira
Rude punho de um parcel...
Oh! quem pudera, meu anjo,
Prender esta natureza,
E ter a doce certeza
Que não nos fugira mais!...
Nós aqui juntos...
sentindo-a,
Como o fremir de um navio
Atado às margens de um rio
Nas hastes dos palmeirais!...
Sim! no oceano dos tempos,
Que corre incessantemente,
Uma hora destas somente,
Quem pudera suspender!
Sentir os haustos profundos,
Que saem da imensidade...
Gozar dessa eternidade...
Depois... e depois?...
morrer!...
Ai! morrer entre os teus
beijos!
E à sombra do teu sorriso
Ir até ao paraíso
Levado por tua mão...
Nenhum parcel entre as vagas,
Nos rosais nenhum espinho...
Enfim seguir o caminho
Por onde os ditosos vão...
Eu que sabia que o tempo,
Que é tão tardo ao
desgraçado,
Foge com voo dobrado
Dos felizes: exclamei:
— Podes fugir... leva...
arrasta
Tudo em tua correnteza;
Fica-me embora a certeza,
De quanto... quanto gozei!...
Sei que virei talvez cedo,
Ao mesmo jardim querido...
Que tudo terei perdido
Com ela... pois o não
sei?!...
Lua, brisa, troncos, flores,
Esta relva de veludo...
Sim! hei de ter talvez
tudo...
E a ela só não terei!...
Terei do quadro a moldura:
Sim! terei a natureza!
Mas não terei a beleza,
Que fazia o encanto seu:
Que importa o estojo dourado,
Que tinha dentro o diamante,
Quando esta pedra brilhante,
Mau fado! já se perdeu?!...
Vaga inconstante do tempo,
Que sobre nós ambos corres,
Bem cedo, bem cedo morres!
Mas como ensopada vais
Dessas lágrimas tão doces
Que à alma arranca a ventura,
Porque nessa hora a criatura
Tem menos riso e mais ais!...
Eu prelibava a saudade
Deste tempo, que fugia...
E minha fronte caía,
Mau grado meu! de terror;
Ela entendeu-me a tristeza...
— Era a sua alma tão minha! —
Que a mesma tristeza vinha
Lavar-lhe a fronte em palor!
Nisto um suspiro saiu-lhe
Do lábio quase entreaberto;
E todo aquele deserto
Pareceu-me suspirar:
Assim quando o vento passa,
Branca vaga que se alteia,
Cresce... ondula... e cai na
areia,
Geme... ondula... —
e volta ao mar.
Assim transborda do vaso,
Alva gota cristalina;
Não do vaso, que se inclina,
E derrama o doce olor,
Porém de vaso tão cheio
De um licor ebrioso e
santo...
Que é tanto... tanto... mas
tanto...
Que há de algum por fora pôr.
E eu tonto... perdido...
louco
Naquele deserto espaço,
Peito a peito, braço a braço,
Já não sabia falar...
Eu enleava-me em torno
Dessa divina cintura,
E já sentia a quentura,
Que me devia matar!
Dava-lhe a lua na fronte
Alva, bela, alabastrina...
Como uma espessa cortina,
Ou como sombrio véu;
Os bastos cabelos negros,
Que mansa brisa agitava,
Do mundo aos olhos furtava
Aquela visão do céu.
De joelhos ao relento,
Vendo também as colinas
Em seu manto de neblinas
Ajoelhadas —
talvez —
Naquela luz duvidosa,
Que toda a terra embebia...
Eu não sei o que fazia...
Ela... não soube o que
fez!...
(Num álbum)
Nel dolce tempo della prima
etade...
Petrarca —
Rime
Da vida ó mocidade, ó gentil
primavera,
Em que tudo é rosal, luz,
perfume, sorrir;
Em que, pra o moço, é curto o
espaço desta esfera,
Em que ele pensa em breve a
outra esfera subir;
E prepara em silêncio, e no
estudo, e no olvido
As asas de condor, e mede o
voo audaz;
E no palor da fronte, e olhar
amortecido,
Como sob um lençol de cinza, —
um vulcão traz;
Em que a esperança toda (ele
o vê, ele o sente)
O arrebata fugaz por páramos
além;
E a fé é o anjo puro, a
guiá-lo de frente,
Lançando ponte da asa, onde
um abismo vem;
Oh! nessa bela idade, em que
o riso volteia
No ambiente, —
em que a luz doira todo o existir,
Que por escada de ouro a
mente galopeia,
E vai, num céu sem fim, como
um tufão, cair...
Que eu não veja a descrença,
erguendo a mão medonha,
Limpar-te os sonhos bons da
fronte juvenil!...
O mais belo da vida é quando
a gente sonha:
Que ninguém toque e quebre o
teu sonho infantil.
Sonha que a liberdade o mundo
inteiro cobre;
Sonha que o mundo é bom,
sonha belo o porvir;
Sonha a virtude, a paz, o que
há de belo e nobre;
Tudo quanto há de grande: —
o sonhar é dormir!...
E nesse eterno sono o anjo da
esperança,
Nos céus e em Deus o olhar
sereno e paternal,
Te embala o berço puro, e
leve-te, ó criança,
Do sonho deste mundo ao
infinito real...
Vive a pérola assim no fundo
do oceano,
Ruge por cima dela o feio
temporal,
Cospem por cima dela as vagas
todo o ano,
Vive a pérola branca em leito
virginal.
Mas se acaso algum dia
acordares do sonho,
Como às vezes se arranca a
pérola do mar...
Então podes chorar... —
O viver é medonho!
Hás de ter pena então do teu
sonho acabar.
Então compreenderás a dor que
em cada ruga
De nossa fronte habita, —
e o vento que a cavou:
É que o sol da manhã muitas
vezes enxuga
A lágrima que à noite o rosto
nos molhou.
Assim em chão cavado, e
seixos revolvidos,
— Leito de uma torrente antiga
que passou, —
Bate o sol, cresce a relva e
matagais floridos,
O rio já não corre e o leito
ali ficou!...
FATALIDADE
Amor meus, pondus meum.
I
Quisera à luz dos teus olhos,
Pois dela se inundam tanto,
Soletrar o livro santo
Do teu coração, mulher:
Ler nessas páginas rubras,
Em que teu sangue crepita,
A minha sentença escrita,
A minha sorte sequer.
Ler através do teu riso,
De tua frase convulsa,
O teu coração, que pulsa,
Que diz o teu coração,
No teu desdém, no teu gesto,
Na tua voz, nos teus passos,
No movimento dos braços,
Na tua mesma emoção.
Ler, através do perfume,
Que todo teu corpo exala,
O que diz, e pensa, e fala
O teu livro virginal.
Lê-lo, como o sacerdote,
Ajoelhado, e contrito,
Segundo as normas do rito,
Lê no dourado missal.
Lê-lo: e cheio de respeito
Beijar a capa de fora,
Depois de fechá-lo embora,
Depois de sair do altar:
Ler assim teu livro belo
Com devoção e humildade,
Beijá-lo após; e quem há de
Lê-lo e pois o não beijar?
II
Mas a capa do teu livro
É essa epiderme fina
Que tu, ó mulher divina,
Não me deixaras tocar;
Nem me deixaras de leve
Passar o meu lábio ardente,
Embora o mais santamente
Que um lábio pode passar.
Se eu pudesse nessas folhas,
Escritas com sangue rubro,
Ver o que em ti não descubro
No olhar, no gesto, na voz,
E na página mais bela
Do teu virginal poema
Ler minha sentença extrema,
A minha sentença atroz...
Lê-la no estilo dos anjos,
Que falam às criaturas,
Como as estrelas mais puras
A Deus só devem falar...
Que eu lá não tinha uma letra
Em tudo que há lá gravado...
Ver o meu nome lançado,
Como um cadáver no mar?!...
Pousado à luz esplendente,
Que todo teu corpo escorre,
Boiando, como quem morre
Num naufrágio, sem ninguém,
Sem mãe, sem pai, sem amigo,
Enfim sem palmo de terra,
Que o corpo mais pobre
encerra,
Que até um cão mesmo tem...
— Bendita... bendita sejas
Em tudo que de ti parte, —
Eu diria, sem lançar-te
O mais ligeiro sinal
Da funda dor, que cruciara
O meu coração ferido,
Roto, esmagado, vencido
No seu desastre total.
Para ti pedira a bênção,
Num inefável arroubo,
Aos dois extremos do globo,
Aos quatro extremos do céu:
Todas as brancas carícias
Afagando o teu futuro,
Um anjo as pedras de um muro
Erguendo contra o escarcéu...
Amo-te e nada te peço:
Teu corpo e tua alma eu quero
Mas sabes? eu nada espero,
Nem ainda compaixão:
Eu amo-te; —
isto me basta:
Para amar não é preciso
Ter em paga algum sorriso,
Queira muito o coração.
Bendito o bem que me faças,
Mesmo o mal que me fizeres;
Entre todas as mulheres
És como o lírio do vale:
Nega-me tu teus perfumes,
Vota-me um ódio profundo;
Tu és o sol do meu mundo:
O meu amor é fatal.
III
São para mim teus olhos um
mistério.
Que procuro sondar. —
Embora cismo,
Procuro embora nesse fundo
abismo
A luz, que me dirija; e é
tudo em vão:
Tem da pomba a fremir o
arrulho, o beijo,
Tem da estrela da tarde a luz
serena,
Tem a suave, a doce cantilena
Do sabiá em noites de verão:
Tem da lágrima santa o doce
brilho,
A languidez da juriti no
mato,
Tem das virgens o trêmulo
recato,
E a frescura do orvalho
matinal:
Tem a oração da tímida
criança.
Tem da mulher o voluptuoso
encanto,
Tem sorriso e prazer, tem
mágoa e pranto;
E é como um ninho em meio de
um rosal.
E é como um ninho
esplendoroso e quente,
Deixado acaso em perfumada
moita,
Onde o rei das canções, que
ali se acoita,
Com elas enche a extensa
solidão;
Como um navio velejando à
tarde
Entre o abismo dos céus e o
azul dos mares,
Quando as brisas penduram-se
aos palmares,
Que os nautas levam sobre o
coração;
Oh! como um ninho, que tem
dentro dele
Dois colibris, que voam noite
e dia,
Dos cílios entre a fresquidão
sombria,
No langue ardor da cálida
estação:
Mas nesses olhos, onde os
astros dormem,
Trocando o céu por outro céu
mais belo,
A sombra negra da paixão de
Otelo
Passa rugindo com um punhal
na mão...
Os teus olhos!... o livro que
procuro
Ler noite e dia, e sempre, e
que não leio!...
Sei que é feito de luz e
sangue, e cheio
De poemas, que os anjos ditam
só,
Quando as escadas de ouro dos
seus sonhos
Descem num bando alegre e
luminoso,
E perturbando-a no infantil
repouso,
Sacodem-lhe das asas todo o
pó.
Quem há de ler o edênico
poema,
De que ela só conserva a
chave de ouro,
Guardando-a como quem guarda
um tesouro,
Que não há de jamais dar a
ninguém!
Ó meu amor, levanta um pouco
a folha
Deste encantado livro; abre,
um instante,
Uma página só; eu delirante
De joelhos lerei tudo que
tem.
Mas quando haja uma estrofe,
em que meu nome
Ferido, como Dante fulminava,
Quando o seu verso vingador
cravava
No largo, enorme flanco de
algum réu...
Torcido, atado ao poste do
desprezo,
Nu, como Adão do paraíso,
expulso,
E arremessado por teu pé
convulso,
Anjo de amor, do teu formoso céu...
Assim mesmo mendigo, e inda
orgulhoso,
Sem te pedir da compaixão a
esmola,
Mesmo de longe, ó pérola,
consola
Meu coração por ti cair,
morrer:
É-lhe inda gozo o último
suspiro,
E, ao convulsar da última
agonia,
Dizer: —
Mulher, eu nada te pedia:
Amo-te, acabo, morro: é meu
prazer. —
Mas, arcanjo de luz, eu só
deliro:
No livro dos teus olhos nada
leio:
Quem assim perturbar minha
alma veio,
Como quem lança o vento no
areal?
Teus olhos têm da pomba o
doce arrulho,
Da estrela a luz tremida, e a
macieza,
Quando dentro das águas
brilha presa,
Como uma gota de ouro num
cristal;
Tem o encanto que cega, e que
fascina,
Tem o gemer da juriti viúva,
Tem o murmúrio e o cintilar
da chuva
Por entre as folhas cheias de
arrebol,
Tem a carícia branca da
criança,
O lascivo calor da
primavera...
Seus olhos rolam na serena
esfera
O céu todo banhado em luz do
sol.
IV
Mas a cor deles? Pela cor das
águas
Se sabe a profundeza do
oceano:
E o que há no fundo coração
humano,
Os olhos... ai! os olhos não
dirão?
Todavia a cor deles é suave,
Como um clarão de tíbia
estrela à tarde:
A cetinosa luz, que há neles,
arde,
Como o balbuciar de uma
oração.
Dizer aquela cor de olhos tão
puros,
Em cujo abismo o meu destino
ponho,
Não sei: é um lago de
encantado sonho
Mais extenso que o céu: a
doce luz
Que o banha, tão
profundamente desce
Que chega ao coração e volta
quente:
Como o sol no vastíssimo
oriente,
Calor suave o seu olhar
produz.
Mas a cor deles? —
Banho-me em seu olhos,
Como quem entra pelo mar em
fora:
Bebo a luz deles, entro pela
aurora
Balsâmica, que os doira; e
acho-me bem:
Nado naquele espaço limitado,
Como quem nada pelo espaço
infindo:
Como é tépido e bom, macio e
lindo!...
A cor dos olhos seus pois a
que vem?...
Bom. —
Saiba o mundo a cor dessas cadeias,
Que eu, como Prometeu
vencido, arrasto,
Mas... que eu de mim jamais
iroso afasto,
E encontro mesmo amargo
encanto e ebriez:
Pois são castanhos com
reflexos negros,
Bem como negra nuvem na
enxurrada
Dos incêndios vermelhos da
alvorada,
Que inda de todo a noite não
desfez.
Oh! que me importa a cor,
quando eu perdido
Na vastidão daquele mar
sereno,
Vejo-a só grande, e tudo mais
pequeno?!...
A terra, o céu, o oceano, o
sol, e Deus,
Porvir, passado, a
eternidade, o espaço,
O que quero, o que sonho, o
que procuro,
Luz, carícia, prazer, amor,
futuro,
Todo o universo está nos
olhos seus.
V
Vou como a queda de uma
catapulta,
Que o braço move, e após seu
próprio peso:
Vou, sim! como quem segue um
fogo aceso;
Mau grado meu, eu te seguindo
vou:
Atrai-me a direção da mesma
linha,
Imaculada força, amor,
virtude,
Parte dessa divina
infinitude,
De que eu também mínima parte
sou.
Ouvir a voz do pássaro que
canta,
Que canta só em tua linda
aurora...
Se não o ouvir cantar em ti
agora,
Quando hei de ouvi-lo, em que
manhã? Não sei.
Para ouvi-lo em jardins
paradisíacos,
Moitas cheirosas, burilados
lagos,
À sombra, que derramam teus
afagos,
Crera-me um deus: —
pouco era o crer-me um rei.
Pudera, a uma das mãos
erguera abismos,
Com outra dentro os teus
desdéns lançara,
E, com a voz, ao céu dissera:
— Para: —
Para ter sóis, que te deitar
aos pés:
Vendo essa poeira de ouro
solta, ondeando,
Num rio a crepitar de luz
fluente,
Eu ficaria estático, e
contente,
Ao ouvir-te perguntar-me
então: — Quem és? —
Oh! não fujas!... Não vás
além do oceano
Levar os lagos, em que eu
mato a sede
Do belo e do infinito: e que
não hei de
Jamais... jamais na terra
achar sem ti:
Fica: —
nessas lagoas esplendentes
Dos olhos teus eu dormirei
sonhando:
Num barco de ouro e azul irei
passando,
E sonhando morrer, como vivi.
VI
Quando me vejo lá dentro,
Com tanta luz transparente,
Que o céu rumoroso e quente
Tem dos belos olhos teus,
Eu não invejo as estrelas
No seu ninho azul celeste:
Pelo lugar, que me deste,
Não troco o que dera Deus.
Não troco o céu: não trocara
Do céu o eterno destino
Por esse Éden pequenino,
Em que estou lá tão feliz;
Lá dentro, na carne dela,
Fundido, unido, agarrado,
Como um animal deixado,
Que alguém enxotar não quis.
Mas orgulhoso e tão cheio
Da minha nobre conquista,
Que ao céu levantando a
vista,
Achava pequeno o céu,
Com o seu Deus, os seus
astros,
E a sua falange imensa:
Ninguém sabe ninguém pensa;
Seus olhos são meu troféu.
Daqueles lagos brilhantes,
Nadando breves instantes,
Cisne dos lagos da luz,
Surdo ao rumor do teu tédio,
Como a voz das ondas quérulas
Ouve a pérola das pérolas,
Quando entra as águas de
Ormuz.
VII
Mas... quem me diz a mim, que
é com desprezo,
Que ela me vê, que me recebe,
e deixa?
Aos ventos lanço minha eterna
queixa,
Sem mágoas dela, sem razão de
ser;
Se ela não sabe deste
incêndio grande,
Grande, como os incêndios de
uma aurora,
Que a alma toda me queima, e
me devora,
Em que por ela me consumo a
arder!...
Ó minha cinza tépida e
brilhante,
Que o vento há de espalhar na
terra um dia.
Muda em notas de amplíssima
harmonia
As fibras do queimado
coração;
Ele foi uma lira dedilhada
Constantemente aos pés dos
seus altares,
E o canto, que murmura inda
nos ares,
Só dela teve vida e
inspiração.
Ai! tudo diz que ela bem sabe
e palpa
Todo amor que bebi a lentos
tragos,
Como o cisne que vive em
mansos lagos,
E nunca dentro as asas
mergulhou:
Mas eu... para molhar as
penas brancas,
Fui meter-me no fundo
cristalino:
Meti-me em todo aquele ser
divino,
E ela em seu infinito me
afogou...
Ai! sou dela!... Ela só me
tem agora
Nessas águas divinas
balouçado,
Como um tronco das margens
arrancado,
Vou por onde a corrente me
levar:
Vou no esplendor e no marulho
brando,
O céu estrelas sacudindo, —
e eu cantos:
Rio, que espelha a luz dos
seus encantos,
Irei assim à eternidade... ao
mar.
VIII
Que importa? Deus está dentro
em mim mesmo:
Eu tenho em mim o inferno e o
paraíso:
Um é teu tédio, o outro teu
sorriso;
E é minha a infinidade e eu
dela sou.
Eu sei que andas em mim ao
mesmo tempo
Na família, na raça, e ideia
e esforço;
Que anda o universo sobre o
nosso dorso
Que nele tu e nele eu mesmo
vou.
Do belo o instinto, a norma
da justiça,
Jaz em nós mesmos, como
planta em germe;
Busco amor, como amor consigo
quer-me;
A tendência do bem é lei
fatal;
Tu hás de em ti sentir o
mesmo impulso;
Há em nós o equilíbrio das
estrelas;
Elas nos veem e nós estamos a
vê-las:
Nos leva a todos nós o mesmo
ideal.
Está começo e fim de tudo em
tudo:
Do abismo o fundo, o fundo do
sublime,
Um enchendo a virtude, um outro
o crime,
No fim do tempo a misturar-se
vêm.
Não haverá eleitos, nem
precitos;
A dor e o tempo tudo
purifica:
O que há de ser, enfim tudo o
que fica,
É um grande esplendor de sol —
o Bem
Nós somos como a serpe
mutilada,
Cujos anéis procuram-se,
saltando;
Que hão de unir-se em um
dia... não sei quando...
A eternidade longa margem dá:
Mundos novos virão depois dos
velhos,
Feitos de mortos sóis, que
irão na cova
Buscar novo alimento e vida
nova...
Novo e velho!... o que existe
inda haverá...
IX
Quando virem boiando ao tom
das águas
Um cadáver de luz, ide
buscá-lo:
É minha alma em meus cantos:
quanto falo,
Quanto gemo, minha alma em si
levou:
É minha alma em meus cantos: —
Pobre Ofélia,
Louca morrendo sobre as suas
flores,
À espera de uns fantásticos amores,
Que só na morte enfim ela
encontrou.
Quem sabe se inda debruçada
um dia
Rubros os olhos seus, túrgido
o peito,
Não terei nela a palidez de
Hamleto,
Sobre um cadáver delirando em
dor!?
Ai! estarei mudo, como estava
Ofélia,
Sem poder levantar-me, e erguer
meus braços,
Enquanto além no fundo dos
espaços,
Beijam-se os astros trêmulos
de amor!
Enquanto canta um pássaro
tardio
Nas franças do arvoredo, que
se agita:
Enquanto pela abóbada
infinita
A alma das coisas suspirando
vai:
Enquanto o ninho aquece o
par, que dorme,
E há de amanhã ao sol andar
em festa:
Enquanto dos mistérios da
floresta
Surdo gemido de água em fúria
sai...
X
Será pois que profundo amor
não pode
Existir neste mísero planeta,
Que de Romeu flutua à
Julieta,
Achando sempre um doloroso fim?
Ó grandes bebedores de
ambrosia,
Grandes ébrios de luz e de
ventura,
Só podereis fazer na
sepultura
Vosso primeiro e último
festim?
Heis de matar a fome, que
enlouquece,
Nas brancuras da espádua
adormecida?
E a luz do amor, que há só
gozar em vida,
Permite Deus que acabe de uma
vez?
Taça da fé, por onde o sol se
bebe,
Eternidade! ó sonhos!...
esperanças!...
Estes amantes, tímidas
crianças,
Ai! precisam que vós os
consoleis.
Como soa vazio este universo,
Dando um som cavo; taciturno
e oco,
Quando perdido, arrebatado,
louco,
Encontro o espaço e a
eternidade só!
Ó Julieta, ó Beatriz, ó
Laura,
Este universo não... não está
deserto,
Se Deus não está por aí ou
longe, ou perto,
Por força está no céu de
vosso pó.
XI
Almas feitas de fogo e de
harmonias,
Almas feitas de amor e
tempestades,
Puros Romeus de todas as
idades,
Ó vós, poetas, sonhadores
vãos,
Após de qual quimera ides
perdidos?
Qual é pois o ideal que vos
fascina?
Morrer de amor pela mulher
divina,
Morrer apenas lhe beijando as
mãos?
É este o vosso sonho, ó
loucos? Este
É o corcel de esplêndidas
batalhas,
Cravando os pés nas asas das
metralhas,
Lá dentro indo aos vulcões
buscar troféus?
Isto vos faz atravessar os
mares,
Agarrados nas clinas da
tormenta,
Por que aí longe claridade
lenta
Vos mostra a porta ideal de
uns róseos céus?
Doidos! Abris as veias
inflamadas
De um sangue feito de metal
fundido,
E abrasando com ele o chão,
vencido,
Cada um de vós, ou vencedor
morreis?
Amo os vossos farrapos
gloriosos:
Sóis, as vossas misérias
quero tê-las:
Vossos rasgões, alvéolos de
estrelas,
Valem mais do que as púrpuras
dos reis.
Feridos, dos profundos surcos
golfam,
Astros em jorro, em trêmulas
cascatas:
Corcéis de luz, as rumorosas
patas
Fazem saltar do chão mais
luz, mais sóis!
Passam, lançando incêndios, e
arruídos...
0 mundo, que os aplaude,
enche-os de apodos:
São para os povos, que
iluminam, doidos:
Mas a história, que os
guarda, os chama heróis.
Ai! mulheres, contudo a
sombra vossa,
Uma flor seca, um fio de
cabelo,
Mártir, herói, prodígio,
assombro fê-lo,
Correndo à glória dos lauréis
após.
São vossos nomes talismãs
preciosos
Naquelas grandes almas
enterrados!
Vós, mulheres, fazei-os
desgraçados,
Mas também grandes só
fazei-os vós.
Reais amantes, ou ficções
divinas,
Ó Fausto, ó nunca impura
Margarida,
Ó Werther, ó Carlota, e pois
a vida
Há de ser sempre um delirar
sem fim?
Os corações passando lado a
lado
Cheios de amor, sem se
entenderem nunca,
E a dor, voraz abutre, a
garra adunca,
Dilacerando-os para atroz
festim?
Mas... quando eles beijando
as mãos à Ofélia
Louca de amor, à Julieta
morta,
Acham a sombra de não sei que
importa,
Que não era a mulher dos
sonhos seus,
Não podem procurar a
verdadeira?
Ó Fornarina, ó Laura, ó
Formosura,
A chama deles sempre é nova e
pura:
Ó Lovelaces, inda sois
Romeus...
XII
Mas quem és tu, brilhante
grão de areia
Do tamanho de um mar em meu
destino?
Chave de ouro de um céu, que
eu imagino,
E cujas portas nunca se
abrirão,
Eu conheci-te em breve, e
amei-te logo:
Eras a irmã da aurora, que
nascia;
A luz do céu na tua fronte
ria;
Era um mundo de luz teu
coração.
Entre os jardins da Ilha dos
amores
Podia ter-te deslizado a
vida:
Podias ser do grande Tasso a
Armida,
Rica, formosa, grácil e
gentil:
Um céu de flores te abraçava
em torno,
Um céu de encantos te coroava
a fronte,
Um céu de estrelas era-te o
horizonte:
Era o mar outro céu de brando
anil.
Eras a fada que podia tudo:
Tinhas na mão fatídica
varinha;
E tão naturalmente eras
rainha,
Que em tudo tu mostravas teu
poder:
Muito céu te afagava os pés e
a fronte,
Mágica flor dos carmes do
Oriente,
Porém o céu melhor, mais doce
e quente
Era o teu coração, em sóis a
arder.
Ai! o teu coração!... Vi
noutro tempo
Nas veias do teu rosto
transparente
O paraíso luminosamente,
Em um deslumbramento de
esplendor:
Ele radiava no tremer dos
lábios,
Do corpo esbelto no gentil
meneio,
Nas duas ondas límpidas do
seio,
Nas duas mãos de matutino
alvor.
Podia ser amada e amar-me.
Amar-me?
Fora preciso ser maior que
Dante,
Mais feliz do que Tasso, o
louco amante,
Para tão insensata aspiração:
Ela era um céu de um mundo de
harmonias,
Só para ela Atlante, e enfim
Colombo;
E eu era apenas taciturno
pombo,
Vivendo até na estranha
solidão.
Ó orgulho! ó miséria! ó lodo!
infâmia!
Tu és mais que o demônio em
nossas almas;
As mais brilhantes, mais
formosas palmas
Por ti deixamos de colher
talvez:
Tu nos segredos baixo, e
cauteloso,
A ironia e o desprezo ao bom,
e ao belo:
Pões o punhal a arder nas
mãos de Otelo,
Pões na fronte de Hamleto a
insensatez.
Ó tu, orgulho, velho
chocarreiro,
Cedi à malvadez dos teus
conselhos,
E em vez de ter o céu nos
meus joelhos,
Ao luar do seu rosto, ali
feliz
Saindo das auroras dos seus
braços
Para milhões de estrelas dos
seus beijos,
Fartando os seus, fartando os
meus desejos,
Louco, orgulhoso, infame,
mau... não quis.
Agora choro. Agora é tarde:
agora
Vou da noite profunda às
horas mortas
Sentar-me ao limiar daquelas
portas,
Que abrem para esse céu, que
abandonei.
Dormes, fada, lá dentro em
teus castelos?
Eva inocente, em teus vergéis
descansas?
E dar-me-ias a esmola de
esperanças,
Se eu tas pedisse, envilecido
rei?
Ai! o que quero, que tu
possas dar-mo?
Quero sentar-me apenas ao teu
lado,
Como a pomba, a quem dás o
pão deixado
Cair dos céus de tuas mãos
gentis...
Um cantinho do céu nos teus
vestidos,
Para saber como é que Deus
nos fala:
E sob o aroma, que teu corpo
exala,
Reparar aos teus pés o mal
que fiz...
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