BEATIFICAÇÃO
(José
Maria do Amaral)
O Altitudo!
São
Paulo.
Oh!
quando o via pela rua adiante,
A
fronte nua, lívida, sulcada,
O
olhar severo, o porte de gigante,
Mas,
sobretudo, a coma prateada,
Como
em cascata, aos ombros despenhada;
E
a barba longa em torno do semblante,
Que
era medalha em lírios enquadrada,
Eu
me lembrava de Florença e Dante...
Depois
de ter o Inferno percorrido,
Que
país de ouro e azul teria em breve?
Não
sei. — E ele ia, como um deus vencido,
Abrindo
as asas invisíveis, leve,
Grande,
aéreo, afastando-se, metido,
Por
entre sóis, em píncaros de neve...
(Pereira
da Costa)
Oh!
quando, o último instante, o achei na cama,
Branca
a face, sem cor... da cor da cera,
Alheado,
estranho, vi por vez primeira
Faltar-lhe
aos olhos a divina chama.
Atravessava
um surdo choro o drama,
Enquanto
eu lhe buscava à cabeceira,
No
violino, a obra e a vida inteira...
Lágrimas
de ouro à noite o céu derrama...
Porém...
na noite dele?... e olhei: — ao lado
Hirto,
e ainda vivo, o feérico instrumento
Sobre
as águas do pranto, um mar cavado,
Pareceu-me
boiar, ir indo lento,
Ir...
por um frio vento arrebatado,
Ele
a gemer, tudo a gemer... e o vento...
(Agostinho
Mota)
Se
ele ouvisse na sua sepultura
A
tua voz sentida e suspirosa
Chorar-lhe
a morte triste e prematura...
De
cada branca pérola mimosa,
Não
só mimosa, virginal e pura,
Ele
fizera a tela grandiosa
Onde
juntara à tua formosura
Os
lumes de sua alma radiosa.
O
pincel, — morto sol na mão descrente, —
Acordara
outra vez, dourando o idílio
De
floresta que foi seu sonho ardente.
Fora-lhe
a cova um trono, e não o exílio...
E
isto tudo fizera de repente
Uma
lágrima só que cai de um cílio.
(João
Caetano)
Como
uma estrela monstruosa, o drama
Lança
as garras na cena e se dilata,
E
quando a cauda de clarões desata,
Como
leões fugindo aos antros, brama.
Quer-se
um atleta então, que o horror e a chama
Do
olhar do monstro não fascine e abata:
Que
se levante dessa luta ingrata
Agarrado
aos milhões de mãos da fama.
Foi
ele um domador. — Hoje enfim dorme!
Que
pedaços de sóis, na queda enorme,
Levou
consigo o Encélado sombrio!...
Caiu,
como o colosso da floresta,
Que
abala o solo, e esmaga tudo... e reta
O
espaço, em torno, lúgubre e vazio...
(Victor
Meireles)
Foste,
a hora bateu, irmão de Urbino,
Juntar-te
ao mestre na celeste esfera:
Para
ficar com teu pincel divino,
Ninguém
ousou dizer à morte: — Espera.
Pisando
o pé no solo eterno, o hino
Do
triunfador, à tua musa austera,
Soou
de sol em sol: foi teu destino
O
amor do ideal, que o belo inspira e gera.
Correu-te
a vida por areal em fora;
Da
terra nossa a enorme dor partilho:
Quem
tua alma entre nós vai ter agora?...
Teu
gênio a história da arte encheu de brilho;
Pátria,
ajoelha; amou-te muito, chora:
Quem
mais deve chorar tão grande filho?...
(Almeida
Reis)
Trouxe
um dia uma fada as brancas mãos coalhadas
De
quanta pedraria ela escondido tinha;
Todo
o escrínio real da rainha das fadas,
Que
inveja causaria à mais nobre rainha!...
Tinha
também um gênio uma folha de vinha,
Feita
de uma esmeralda, e cecéns enfeixadas
De
diamantes, no seio estrelas variegadas,
Verdes,
rubras, azuis da cor de água marinha...
Era,
para uma estátua ornar de um deus da Jônia,
Que
a um plinto brônzeo já de pedra da Lacônia,
Nosso
Canova erguia em mármore mais branco...
Era
para o teu deus de mármore sublime...
Mas
foram dele (horror!) chegando, e vendo o Crime
Inda
agitar-lhe o braço, o rosto, o tronco, o flanco!...
(Artur
Barreiros)
Ferido
o corpo, o espírito esmagado
No
prélio, — como em dia de batalha
Em
nau já curva ao vento, que farfalha,
Bandeira
solta em mastro escalavrado
Rufando,
dentro em pé inda o soldado
Sem
terror, rota a espada, em trapo a malha,
Ouvindo
uivar o casco, que escangalha
Entre
garras de sirte o oceano irado,
Espera...
espera: o moribundo moço
Esperava!:
— porém, qual no arcabouço
Mastiga
a vaga a selva do aparelho
E
o mar cantando, engulha, enchendo o bojo,
Vi-o
afundar-se, e como um sol de rojo
Ir-se
em meio a amplidão de um céu vermelho...
(F.
A. de Carvalho Júnior)
Morreu
por vós, esplêndidas falenas:
Em
vós viveu, cativo e delirante!
Como
era belo ter esse gigante
Preso,
a estorcer-se em vossas mãos pequenas.
Do
ardente sonhador, na aurora apenas,
Entre
os raios da coma lourejante,
Descansa
agora o plácido semblante
À
sombra de uma coroa de verbenas.
Por
que deixastes resvalar ao solo
A
lira de ouro, túmida de arpejos,
E
a fronte em fogo do formoso Apolo?
Ai!
cortaram-lhe as asas aos desejos!
Por
que não o acordais em vosso colo
Ao
rumor lento de um chover de beijos?
(Pedro
Luís)
Dê-me
uma grande lágrima a procela,
Talhada
como um bloco de granito,
Olhos
postos no céu e no infinito
Eu
levantara a sua estátua nela.
Que
vulto augusto, que figura bela,
Que
herói, que semideus do antigo rito!
Dou-lhe
o meu arco de triunfo, — um grito:
Dou-lhe
o meu panteão, — uma capela.
Não
basta: quero que entre na floresta,
E
ouça os faunos e as dríades cantando
Seus
cantos, dele em torno em coro, e em festa.
E
quando ele voltar de ouvi-los, quando
Busque
o leito, terá, na longa sesta,
Da
glória o colo, e em pranto, ela o embalando...
(Luís
Guimarães)
Na
primeira página do livro Sonetos
e Rimas
Como vedes, deixo
O vosso canto, e o meu juízo escrito...Diogo
Bernardes — Égloga
Ó
minha doce amiga, abre-me o seio,
Onde
eu pouse um momento a minha fronte,
Enquanto
o livro, que já li, releio
Escrito
em grandes letras no horizonte:
De
ondas de ouro e de luz murmura cheio,
E
as carícias, que tem, não há quem conte,
Torna
a mulher na terra um céu, eu creio,
Bem
como o sol torna esmeralda um monte.
Aos
pés de um ente angélico e bondoso,
Não
sentes tu, no próprio amor, o esposo
Beber
a glória em rica taça ideal?...
Este
teve a mulher, que o emparaísa,
Que
a alma grande do poeta enfim precisa,
Como
tem fome de água e relva o areal...
(Gonçalves
Crespo)
I
Born for
immortality.Wordsworth — Sonnet
Logo
que se espalhou o caso triste,
Vestiram
crepe as musas brasileiras,
E
ao choro do olivedo, em que caíste,
Juntou-se
a dor das lânguidas palmeiras.
Da
lira de ouro as cordas feiticeiras
Presas
às noites tropicais sentiste,
E
o gentil berço das canções primeiras
De
azuis e sóis de nossos céus vestiste.
Era
o teu hino o múltiplo gorjeio
De
sabiás e rouxinóis, saindo
Num
grupo só, num só divino enleio.
Mas...
será certo que isto tudo é findo?
Corram,
palpem-lhe bem de novo o seio,
E
não o acordem, se ele está dormindo...
For a time
farewell...Byron — Manfred
Pois
que é verdade, adeus, ó companheiro...
Puseste
a lira de ouro a tiracolo,
E
num ginete pálido e ligeiro
Foste
com o anjo que te leva ao colo.
Hei
de dizer àquele pobre solo,
Onde
plantaste o triunfal loureiro,
Que
tu dos astros procurando o polo,
Ele
certo ficou sem jardineiro.
Hei
de dizer ao rouxinol, que vinha
Ouvir-te
a voz de cima do arvoredo
Para
melhor cantar sobre a tardinha,
Que
quando alguém viaja azul em fora,
A
gente espera... espera... muito embora,
E,
como tu, não volta mais tão cedo...
E, come a buon cantor, buon citarista
Fa seguitar lo guizzo della corda
In che più de
piacer lo canto acquista.Dante —
Paradiso.
Ouçamo-lo
cantar. — No mês das flores
A
voz gentil tem matinal frescura:
O
dia em cada idílio se pendura,
Dão-lhe
as aves e os sóis luz e rumores.
Morde-lhe
a aurora a lúbrica pintura;
Tempera
a sombra as cruas, rubras cores:
Nera,
rompendo o anel da miniatura,
Sai
nua a rir, e corre aos gladiares.
Passa
casta visão de noiva: — à festa
Lança
idílios a luz; e um deus sereno
Acende
a tenda azul sobre Modesta;
E
ao herói Manchego no trespasse resta
Aquela
ameaça, aquele eterno aceno
Com
que morto e indignado inda protesta.
The mind is
its own place, and in itself
Can make a
Heaven of Hell, a Hell of Heaven.Milton
— Paradise Lost
Alteia
o canto. — Lúgubre e sombrio
El-Rei,
vesgos os olhos de loucura,
Sentindo
o horror do crime, e o calafrio
Do
remorso, que o punge e que o tortura,
O
velho monge cardeal procura;
O
velho monge espera: enche o vazio
Da
apainelada sala, imensa, escura,
Um
Cristo à cruz, de olhar coalhado e frio.
Como
Valdês arroja à tela a ideia,
Dando-lhe
a cor dantesca da epopeia,
Sobe-lhe
o canto em levantado arroubo!
E
então nos mostra em luta a musa austera
O
monge-lobo uivando e o rei-pantera:
Um
as garras no céu, outro no globo...
(Castro
Alves)
Speak; I am
bound to hear
Shakespeare
Bota
— sobre as espumas flutuantes
Do
oceano do tempo — acalentado;
E
foge assim pela maré levado,
Ao
hino das estrelas cintilantes.
Eco
apenas dos cânticos gigantes,
Que
em chamas ideais tinha moldado;
Das
mãos caiu-lhe a lira de ouro, em antes
De
ter os mundos, que sonhou, formado.
Que
epopeias lhe andaram pela fronte,
Como
vulcões a arder num vasto monte!...
Ergueu-se
na atitude de um colosso.
No
oceano do tempo hoje enfim dorme;
E
a sombra, que deixou, a sombra enorme
Viu-se
que era a de um sol, morrendo o moço.
—
Que fazes tu, em meio do caminho,
Loureiros
ideais amontoando?
Olha...
com astros já formei teu ninho:
Vem
dormir... inda há dia, e estás suando.
Falou-lhe
a morte assim com tal carinho,
Que
ele dormiu, a obra abandonando:
E
quando o mundo o procurou, foi quando
Viu
que um sol cabe num caixão de pinho.
Devia
ser-lhe marco à cabeceira
Uma
águia, abrindo as asas remontada...
Não
tem... plantemos tropical palmeira.
O
tronco esbelto, a coma derramada
Dará
ideia duma vida inteira
Sempre
a subir... sempre a subir coroada...
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