A AVENIDA DAS LÁGRIMAS
(A um poeta
morto)
Quando
a primeira vez a harmonia secreta
De
uma lira acordou, gemendo, a terra inteira,
—
Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou
a flor da lágrima primeira.
E
o poeta sentiu os olhos rasos de água;
Subiu-lhe
à boca, ansioso, o primeiro queixume:
Tinha
nascido a flor da Paixão e da Mágoa,
Que
possui, como a rosa, espinhos e perfume.
E
na terra, por onde o sonhador passava,
Ia
a roxa corola espalhando as sementes:
De
modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma
vegetação de lágrimas ardentes.
Foi
assim que se fez a Via Dolorosa,
A
avenida ensombrada e triste da Saudade,
Onde
se arrasta, à noite, a procissão chorosa
Dos
órgãos do carinho e da felicidade.
Recalcando
no peito os gritos e os soluços,
Tu
conheceste bem essa longa avenida,
—
Tu que, chorando em vão, te esfalfaste, de bruços,
Para,
infeliz, galgar o Calvário da Vida.
Teu
pé também deixou um sinal neste solo;
Também
por este solo arrastaste o teu manto...
E,
ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo,
Passou
para outras mãos, molhou-se de outro pranto.
Mas
tua alma ficou, livre da desventura,
Docemente
sonhando, às delícias da lua:
Entre
as flores, agora, uma outra flor fulgura,
Guardando
na corola uma lembrança tua...
O
aroma dessa flor, que o teu martírio encerra,
Se
imortalizará, pelas almas disperso:
—
Porque purificou a torpeza da terra
Quem
deixou sobre a terra uma lágrima e um verso.
INANIA VERBA
Ah!
quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O
que a boca não diz, o que a mão não escreve?
—
Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas,
desfeito em lodo, o que te deslumbrava...
O
Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A
Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E
a Palavra pesada abafa a Ideia leve,
Que,
perfume e clarão, refulgia e voava.
Quem
o molde achará para a expressão de tudo?
Ai!
quem há de dizer as ânsias infinitas
Do
sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?
E
a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E
as palavras de fé que nunca foram ditas?
E
as confissões de amor que morrem na garganta?!
MIDSUMMER’S NIGHT’S DREAM
Quem
o encanto dirá destas noites de estio?
Corre
de estrela a estrela um leve calafrio,
Há
queixas doces no ar... Eu, recolhido e só,
Ergo
o sonho da terra, ergo a fronte do pó,
Para
purificar o coração manchado,
Cheio
de ódio, de fel, de angústia e de pecado...
Que
esquisita saudade! — Uma lembrança estranha
De
ter vivido já no alto de uma montanha,
Tão
alta, que tocava o céu... Belo país,
Onde,
em perpétuo sonho, eu vivia feliz,
Livre
da ingratidão, livre da indiferença,
No
seio maternal da Ilusão e da Crença!
Que
inexorável mão, sem piedade, cativo,
Estrelas,
me encerrou no cárcere em que vivo?
Louco,
em vão, do profundo horror deste atascal,
Bracejo,
e peno em vão, para fugir do mal!
Por
que, para uma ignota e longínqua paragem,
Astros,
não me levais nessa eterna viagem?
Ah!
quem pode saber de que outras vida veio?...
Quantas
vezes, fitando a Via-Láctea, creio
Todo
o mistério ver aberto ao meu olhar!
Tremo...
e cuido sentir dentro de mim pesar
Uma
alma alheia, uma alma em minha alma escondida,
—
O cadáver de alguém de quem carrego a vida...
Tu,
grande Mãe!... do amor de teus filhos escrava,
Para
teus filhos és, no caminho da vida,
Como
a faixa de luz que o povo hebreu guiava
À
longe Terra Prometida.
Jorra
de teu olhar um rio luminoso.
Pois,
para batizar essas almas em flor,
Deixas
cascatear desse olhar carinhoso
Todo
o Jordão do teu amor.
E
espalham tanto brilho as asas infinitas
Que
expandes sobre os teus, carinhosas e belas,
Que
o seu grande clarão sobe, quando as agitas,
E
vai perder-se entre as estrelas.
E
eles, pelos degraus da luz ampla e sagrada,
Fogem
da humana dor, fogem do humano pó,
E,
à procura de Deus, vão subindo essa escada,
Que
é como a escada de Jacó.
Paixão
sem grita, amor sem agonia,
Que
não oprime nem magoa o peito,
Que
nada mais do que possui queria,
E
com tão pouco vive satisfeito...
Amor,
que os exageros repudia,
Misturado
de estima e de respeito,
E,
tirando das mágoas alegria,
Fica
farto, ficando sem proveito...
Viva
sempre a paixão que me consome,
Sem
uma queixa, sem um só lamento!
Arda
sempre este amor que desanimas!
Eu,
eu tenha sempre, ao murmurar teu nome,
O
coração, malgrado o sofrimento,
Como
um rosal desabrochado em rimas.
Quantas
vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto
para onde estás, e fico de ti perto!
Como,
depois do sonho, é triste a realidade!
Como
tudo, sem ti, fica depois deserto!
Sonho...
Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite...
A amplidão se estende, iluminada e calma:
De
cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E
abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.
Há
por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em
torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E,
como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva,
a luz do luar cai sobre a tua casa.
Porém,
subitamente, um relâmpago corta
Todo
o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E,
sorrindo, serena, aparecer à porta,
Como
numa moldura a imagem de uma Santa...
Ah!
quem nos dera que isto, como outrora,
Inda
nos comovesse! Ah! quem nos dera
Que
inda juntos pudéssemos agora
Ver
o desabrochar da primavera!
Saíamos
com os pássaros e a aurora.
E,
no chão, sobre os troncos cheios de hera,
Sentavas-te
sorrindo, de hora em hora:
"Beijemo-nos!
amemo-nos! espera!"
E
esse corpo de rosa recendia,
E
aos meus beijos de fogo palpitava,
Alquebrado
de amor e de cansaço...
A
alma da terra gorjeava e ria...
Nascia
a primavera... E eu te levava,
Primavera
de carne, pelo braço!
De
qual de vós desceu para o exílio do mundo
A
alma desta mulher, astros do céu profundo?
Dorme
talvez agora... Alvíssimas, serenas,
Cruzam-se
numa prece as suas mão pequenas.
Para
a respiração suavíssima lhe ouvir,
A
noite se debruça... E, a oscilar e a fulgir,
Brande
o gládio de luz, que a escuridão recorta,
Um
arcanjo, de pé, guardando a sua porta.
Versos!
podeis voar em torno desse leito,
E
pairar sobre o alvor virginal de seu peito,
Aves,
tontas de luz, sobre um fresco pomar...
Dorme...
Rimas febris, podeis febris voar...
Como
ela, num livor de névoas misteriosas,
Dorme
o céu, campo azul semeado de rosas;
E
dois anjos do céu, alvos e pequeninos,
Vêm
dormir nos dois céus dos seus olhos divinos...
Caravana,
que Deus pelo espaço conduz!
Todo
o vosso clarão nesta pequena alcova
Sobre
ela, como um nimbo esplêndido, se mova:
E,
a sorrir e a sonhar, sua livre cabeça
Como
a da Virgem Mãe repouse e resplandeça!
Já
toda a terra adormece.
Sai
um soluço da flor.
Rompe
de tudo um rumor,
Leve
como o de uma prece.
A
tarde cai. Misterioso,
Geme
entre os ramos o vento.
E
há por todo o firmamento
Um
anseio doloroso.
Áureo
turíbulo imenso,
O
ocaso em púrpuras arde,
E
para a oração da tarde
Desfaz-se
em rolos de incenso.
Moribundos
e suaves,
O
vento na asa conduz
O
último raio da luz
E
o último canto das aves.
E
Deus, na altura infinita,
Abre
a mão profunda e calma,
Em
cuja profunda palma
Todo
o Universo palpita.
Mas
um barulho se eleva...
E,
no páramo celeste,
A
horda dos astros investe
Contra
a muralha da treva.
As
estrelas, salmodiando
O
Peã sacro, a voar,
Enchem
de cânticos o ar...
E
vão passando... passando...
Agora,
maior tristeza,
Silêncio
agora mais fundo;
Dorme,
num sono profundo,
Sem
sonhos, a natureza.
A
flor-da-noite abre o cálix...
E,
soltos, os pirilampos
Cobrem
a face dos campos,
Enchem
o seio dos vales:
Trêfegos
e alvoroçados,
Saltam,
fantásticos Djins,
De
entre as moitas de jasmins,
De
entre os rosais perfumados.
Um
deles pela janela
Entre
no teu aposento,
E
para, plácido e atento,
Vendo-te,
pálida e bela.
Chega
ao teu cabelo fino,
Mete-se
nele: e fulgura,
E
arde nessa noite escura,
Como
um astro pequenino.
E
fica. Os outros lá fora
Deliram.
dormes... Feliz,
Não
ouves o que ele diz,
Não
ouves como ele chora...
Diz
ele: "O poeta encerra
Uma
noite, em si, mais triste
Que
essa que, quando dormiste,
Velava
a face da terra...
Os
outros saem do meio
Das
moitas cheias de flores:
Mas
eu saí de entre as dores
Que
ele tem dentro do seio.
Os
outros a toda parte
Levam
o vivo clarão,
E
eu vim do seu coração
Só
para ver-te e beijar-te.
Mandou-me
sua alma louca,
Que
a dor da ausência consome,
Saber
se em sonho o seu nome
Brilha
agora em tua boca!
Mandou-me
ficar suspenso
Sobre
o teu peito deserto,
Por
contemplar de mais perto
Todo
esse deserto imenso!"
Isso
diz o pirilampo...
Anda
lá fora um rumor
De
asas rufladas... A flor
Desperta,
desperta o campo...
Todos
os outros, prevendo
Que
vinha o dia, partiram,
Todos
os outros fugiram...
Só
ele fica gemendo.
Fica,
ansioso e sozinho,
Sobre
o teu sono pairando...
E
apenas, a luz fechando,
Volve
de novo ao seu ninho,
Quando
vê, inda não farto
De
te ver e de te amar,
Que
o sol descerras do olhar,
E
o dia nasce em teu quarto...
Quando
uma virgem morre, uma estrela aparece,
Nova,
no velo engaste azul do firmamento:
E
a alma da que morreu, de momento em momento,
Na
luz da que nasceu palpita e resplandece.
Ó
vós, que, no silêncio e no recolhimento
Do
campo, conversais a sós, quando anoitece,
Cuidado!
– o que dizeis, como um rumor de prece,
Vai
sussurrar no céu, levado pelo vento...
Namorados,
que andais, com a boca transbordando
De
beijos, perturbando o campo sossegado
E
o casto coração das flores inflamando,
—
Piedade! elas veem tudo entre as moitas escuras...
Piedade!
esse impudor ofende o olhar gelado
Das
que viveram sós, das que morreram puras!
(Pouchkine)
Ninguém
soube quem era o Cavaleiro Pobre,
Que
viveu solitário, e morreu sem falar:
Era
simples e sóbrio, era valente e nobre,
E
pálido como o luar.
Antes
de se entregar às fadigas da guerra,
Dizem
que um dia viu qualquer coisa do céu:
E
achou tudo vazio... e pareceu-lhe a terra
Um
vasto e inútil mausoléu.
Desde
então, uma atroz devoradora chama
Calcinou-lhe
o desejo, e o reduziu a pó.
E
nunca mais o Pobre olhou uma só dama,
—
Nem uma só! nem uma só!
Conservou,
desde então, a viseira abaixada:
E,
fiel à Visão, e ao seu amor fiel,
Trazia
uma inscrição de três letras, gravada
A
fogo e sangue no broquel.
Foi
aos prélios da Fé. Na Palestina, quando,
No
ardor do seu guerreiro e piedoso mister,
Cada
filho da Cruz se batia, invocando
Um
nome caro de mulher,
Ela
rouco, brandindo o pique no ar, clamava:
"Lumen coeli Regina!" e, ao clamor dessa voz,
Nas
hostes dos incréus como uma tromba entrava,
Irresistível
e feroz.
Mil
vezes sem morrer viu a morte de perto,
E
negou-lhe o destino outra vida melhor:
Foi
viver no deserto... E era imenso o deserto!
Mas
o seu Sonho era maior!
E
um dia, a se estorcer, aos saltos, desgrenhado,
Louco,
velho, feroz, — naquela solidão
Morreu:
— mudo, rilhando os dentes, devorado
Pelo
seu próprio coração.
Para
a porta do céu, pálida e bela,
Ida
as asas levanta e as nuvens corta.
Correm
os anjos: e a criança morta
Foge
dos anjos namorados dela.
Longe
do amor materno o céu que importa?
O
pranto os olhos límpidos lhe estrela...
Sob
as rosas de neve da capela,
Ida
soluça, vendo abrir-se a porta.
Quem
lhe dera outra vez o escuro canto
Da
escura terra, onde, a sangrar, sozinho,
Um
coração de mão desfaz-se em pranto!
Cerra-se
a porta: os anjos todos voam...
Como
fica distante aquele ninho,
Que
as mães adoram... mas amaldiçoam!
Sonho
que estás à porta...
Estás
– abro-te os braços! – quase morta,
Quase
morta de amor e de ansiedade...
De
onde ouviste o meu grito, que voava,
E
sobre as asas trêmulas levava
As
preces da saudade?
Corro
à porta... ninguém! Silêncio e treva.
Hirta,
na sombra, a Solidão eleva
Os
longos braços rígidos, de gelo...
E
há pelo corredor ermo e comprido
O
suave rumor de teu vestido,
E
o perfume sutil de teu cabelo.
Ah!
se agora chegasses!
Se
eu sentisse bater em minhas faces
A
luz celeste que teus olhos banha;
Se
este quarto se enchesse de repente
Da
melodia, e do clarão ardente
Que
os passos te acompanha:
Beijos,
presos no cárcere da boca,
Sofreando
a custo toda a sede louca,
Toda
a sede infinita que os devora,
—
Beijos de fogo, palpitando, cheios
De
gritos, de gemidos e de anseios,
Transbordariam
por teu corpo afora!...
Rio
aceso, banhando
Teu
corpo, cada beijo, rutilando,
Se
apressaria, acachoado e grosso:
E,
cascateando, em pérolas desfeito,
Subiria
a colina de teu peito,
Lambendo-te
o pescoço...
Estrela
humana que do céu desceste!
Desterrada
do céu, a luz perdeste
Dos
fulvos raios, amplos e serenos;
E
na pele morena e perfumada
Guardaste
apenas essa cor dourada
Que
é a mesma cor de Sírius e de Vênus.
Sob
a chuva de fogo
De
meus beijos, amor! terias logo
Todo
o esplendor do brilho primitivo;
E,
eternamente presa entre meus braços,
Bela,
protegerias os meus passos,
—
astro formoso e vivo!
Mas...
talvez te ofendesse o meu desejo...
E,
ao teu contato gélido, meu beijo
Fosse
cair por terra, desprezado...
Embora!
que eu ao menos te olharia,
E,
presa do respeito, ficaria
Silencioso
e imóvel a teu lado.
Fitando
o olhar ansioso
No
teu, lendo esse livro misterioso,
Eu
descortinaria a minha sorte...
Até
que ouvisse, desse olhar ao fundo,
Soar,
num dobre lúgubre e profundo,
A
hora da minha morte!
Longe
embora de mim teu pensamento,
Ouvirias
aqui, louco e violento,
Bater
meu coração em cada canto;
E
ouvirias, como uma melopeia,
Longe
embora de mim a tua ideia,
A
música abafada de meu pranto.
Dormirias,
querida...
E
eu, guardando-te, bela e adormecida,
Orgulhoso
e feliz com o meu tesouro,
Tiraria
os meus versos do abandono,
E
eles embalariam o teu sono,
Como
uma rede de ouro.
Mas
não bens! não virás! Silêncio e treva...
Hirta,
na sombra, a Solidão eleva
Os
longos braços rígidos de gelo;
E
há, pelo corredor ermo e comprido,
O
suave rumor de teu vestido
E
o perfume sutil de teu cabelo...
Cego,
em febre a cabeça, a mão nervosa e fria,
Trabalha.
A alma lhe sai da pena, alucinada,
E
enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada
De
gritos de triunfo e gritos de agonia.
Prende
a ideia fugaz; doma a rima bravia,
Trabalha...
E a obra, por fim, resplandece acabada:
"Mundo,
que as minhas mãos arrancaram do nada!
Filha
do meu trabalho! ergue-te à luz do dia!
Cheia
da minha febre e da minha alma cheia,
Arranquei-te
da vida ao ádito profundo,
Arranquei-te
do amor à mina ampla e secreta!
Posso
agora morrer, porque vives!" E o Poeta
Pensa
que vai cair, exausto, ao pé de um mundo,
E
cai – vaidade humana! – ao pé de um grão de areia...
I
Noite
ainda, quando ela me pedia
Entre
dois beijos que me fosse embora,
Eu,
com os olhos em lágrimas, dizia:
"Espera
ao menos que desponte a aurora!
Tua
alcova é cheirosa como um ninho...
E
olha que escuridão há lá por fora!
Como
queres que eu vá, triste e sozinho,
Casando
a treva e o frio de meu peito
Ao
frio e à treva que há pelo caminho?!
Ouves?
é o vento! é um temporal desfeito!
Não
arrojes à chuva e à tempestade!
Não
me exiles do vale do teu leito!
Morrerei
de aflição e de saudade...
Espera!
até que o dia resplandeça,
Aquece-me
com a tua mocidade!
Sobre
o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar,
como há pouco repousava...
Espera
um pouco! deixa que amanheça!"
—
E ela abria-me os braços. E eu ficava.
II
E,
já manhã, quando ela me pedia
Que
de seu claro corpo me afastasse,
Eu,
com os olhos em lágrimas, dizia:
"Não
pode ser! não vês que o dia nasce?
A
aurora, em fogo e sangue, as nuvens corta...
Que
diria de ti quem me encontrasse?
Ah!
nem me digas que isso pouco importa!...
Que
pensariam, vendo-me, apressado,
Tão
cedo assim, saindo a tua porta,
Vendo-me
exausto, pálido, cansado,
E
todo pelo aroma de teu beijo
Escandalosamente
perfumado?
O
amor, querida, não exclui o pejo...
Espera!
até que o sol desapareça,
Beija-me
a boca! mata-me o desejo!
Sobre
o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar,
como há pouco repousava!
Espera
um pouco! deixa que anoiteça!"
—
E ela abria-me os braços. E eu ficava.
Nunca
morrer assim! Nunca morrer num dia
Assim!
de um sol assim!
Tu,
desgrenhada e fria,
Fria!
postos nos meus os teus olhos molhados,
E
apertando nos teus os meus dedos gelados...
E
um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera
Toda
azul, no esplendor do fim da primavera!
Asas,
tontas de luz, cortando o firmamento!
Ninhos
cantando! Em flor a terra toda! O vento
Despencando
os rosais, sacudindo o arvoredo...
E,
aqui dentro, o silêncio... E este espanto! e este medo!
Nós
dois... e, entre nós dois, implacável e forte,
A
arredar-me de ti, cada vez mais, a morte...
Eu,
com o frio a crescer no coração, — tão cheio
De
ti, até no horror do derradeiro anseio!
Tu,
vendo retorcer-se amarguradamente,
A
boca que beijava a tua boca ardente,
A
boca que foi tua!
E
eu morrendo! e eu morrendo
Vendo-te,
e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo
Tão
bela palpitar nos teus olhos, querida,
A
delícia da vida! a delícia da vida!
Um
horror grande e mudo, um silêncio profundo
No
dia do Pecado amortalhava o mundo.
E
Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que
Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:
"Chega-te
a mim! entre no meu amor,
E
à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme
contra o meu peito o teu seio agitado,
E
aprende a amar o amor, renovando o pecado!
Abençoo
o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te,
de uma em uma, as lágrimas do rosto!
Vê!
tudo nos repele! a toda a criação
Sacode
o mesmo horror e a mesma indignação...
A
cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como
um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre
a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As
estrelas estão cheias de calafrios;
Ruge
soturno o mar; turva-se hediondo o céu...
Vamos!
que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre
a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda
em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te
o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam
feras a uivar de todos os caminhos;
E,
vendo-te a sangrar das urzes através,
Se
emaranhem no chão as serpes aos teus pés...
Que
importa? o amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina
o degredo e perfuma o deserto!
Amo-te!
sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo
tudo, levando o teu corpo querido!
Pode,
em redor de ti, tudo se aniquilar:
—
Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo,
mares e céus, árvores e montanhas,
Porque
a Vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas
te brotarão da boca, se cantares!
Rios
te correrão dos olhos, se chorares!
E
se, em torno ao teu corpo encantador e nu,
Tudo
morrer, que importa? A Natureza és tu,
Agora
que és mulher, agora que pecaste!
Ah!
bendito o momento em que me revelaste
O
amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque,
livre de Deus, redimido e sublime,
Homem
fico, na terra, à luz dos olhos teus,
—
Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!"
Se
ao mesmo gozo antigo me convidas,
Com
esses mesmos olhos abrasados,
Mata
a recordação das horas idas,
Das
horas que vivemos apartados!
Não
me fales das lágrimas perdidas,
Não
me fales dos beijos dissipados!
Há
numa vida humana cem mil vidas,
Cabem
num coração cem mil pecados!
Amo-te!
A febre, que supunhas morta,
Revive.
Esquece o meu passado, louca!
Que
importa a vida que passou? Que importa,
Se
ainda te amo, depois de amores tantos,
E
inda tenho, nos olhos e na boca,
Novas
fontes de beijos e de prantos?!
As
nuvens, que, em bulcões, sobre o rio rodavam,
Já,
com o vir de manhã, do rio se levantam.
Como
ontem, sob a chuva, estas águas choravam!
E
hoje, saudando o sol, como estas águas cantam!
A
estrela, que ficou por último velando,
Noive
que espera o noivo e suspira em segredo,
—
Desmaia de pudor, apaga, palpitando,
A
pupila amorosa, e estremece de medo.
Há
pelo Paraíba um sussurro de vozes,
Tremor
de seios nus, corpos brancos luzindo...
E,
alvas, a cavalgar broncos monstros ferozes,
Passam,
como num sonho, as náiades fugindo.
A
rosa, que acordou sob as ramas cheirosas,
Diz-me:
"Acorda com um beijo as outras flores quietas!
Poeta!
Deus criou as mulheres e as rosas
Para
os beijos do sol e os beijos dos poetas!"
E
a ave diz: "Sabes tu? Conheço-a bem... Parece
Que
os Gênios de Oberon bailam pelo ar dispersos,
E
que o céu se abre todo, e que a terra floresce,
—
Quando ela principia a recitar teus versos!"
E
diz a luz: "Conheço a cor daquela boca!
Bem
conheço a maciez daquelas mãos pequenas!
Não
fosse ela aos jardins roubar, trêfega e louca,
O
rubor da papoula e o alvor das açucenas!"
Diz
a palmeira: "Invejo-a! ao vir a luz radiante,
Vem
o vento agitar-me e desnastrar-me a coma:
E
eu pelo vento envio ao seu cabelo ondeante
Todo
o meu esplendor e todo o meu aroma!"
E
a floresta, que canta, e o sol, que abre a coroa
De
ouro fulvo, espancando a matutina bruma,
E
o lírio, que estremece, e o pássaro, que voa,
E
a água, cheia de sons e de flocos de espuma,
Tudo,
— a cor, o clarão, o perfume e o gorjeio,
Tudo,
elevando a voz, nesta manhã de estio,
Diz:
"Pudesses dormir, poeta! No seu seio,
Curvo
como este céu, manso como este rio!"
Ficas
a um canto da sala,
Olhas-me
e finges que lês...
Ainda
uma vez te ouço a fala,
Olho-te
ainda uma vez;
Saio...
Silêncio por tudo:
Nem
uma folha se agita;
E
o firmamento, amplo e mudo,
Cheio
de estrelas palpita.
E
eu vou sozinho, pensando
Em
teu amor, a sonhar,
No
ouvido e no olhar levando
Tua
voz e teu olhar.
Mas
não sei que luz me banha
Todo
de um vivo clarão;
Não
sei que música estranha
Me
sobre do coração.
Como
que, em cantos suaves,
Pelo
caminho que sigo,
Eu
levo todas as aves,
Todos
os astros comigo.
E
é tanta essa luz, é tanta
Essa
música sem par,
Que
nem sei se é a luz que canta,
Se
é o som que vejo brilhar.
Caminho
em êxtase, cheio
Da
luz de todos os sóis,
Levando
dentro do seio
Um
ninho de rouxinóis.
E
tanto brilho derramo,
E
tanta música espalho,
Que
acordo os ninhos e inflamo
As
gotas frias do orvalho.
E
vou sozinho, pensando
Em
teu amor, a sonhar,
No
ouvido e no olhar levando
Tua
voz e teu olhar.
Caminho.
A terra deserta
Anima-se.
Aqui e ali,
Por
toda parte desperta
Um
coração que sorri.
Em
tudo palpita um beijo,
Longo,
ansioso, apaixonado,
E
um delirante desejo
De
amar e de ser amado.
E
tudo, — o céu que se arqueia
Cheio
de estrelas, o mar,
Os
troncos negros, a areia,
—
Pergunta, ao ver-me passar:
"O
amor, que a teu lado levas,
A
que lugar te conduz,
Que
entras coberto de trevas,
E
sais coberto de luz?
De
onde vens? Que firmamento
Correste
durante o dia,
Que
voltas lançando ao vento
Esta
inaudita harmonia?
Que
país de maravilhas,
Que
Eldorado singular
Tu
visitaste, que brilhas
Mais
do que a estrela polar?"
E
eu continuo a viagem,
Fantasma
deslumbrador,
Seguido
por tua imagem,
Seguido
por teu amor.
Sigo...
Dissipo a tristeza
De
tudo, por todo o espaço,
E
ardo, e canto, e a Natureza
Arde
e canta, quando eu passo,
—
Só porque passo pensando
Em
teu amor, a sonhar,
No
ouvido e no olhar levando
Tua
voz e teu olhar...
Os
anos matam e dizimam tanto
Como
as inundações e como as pestes...
A
alma de cada velho é um Campo-Santo
Que
a velhice cobriu de cruzes e ciprestes
Orvalhados
de pranto.
Mas
as almas não morrem como as flores,
Como
os homens, os pássaros e as feras:
Rotas,
despedaçadas pelas dores,
Renascem
para o sol de novas primaveras
E
de novos amores.
Assim,
às vezes, na amplidão silente,
No
sono fundo, na terrível calma
Do
Campo-Santo, ouve-se um grito ardente:
É
a Saudade! é a Saudade!... E o cemitério da alma
Acorda
de repente.
Uivam
os ventos funerais medonhos...
Brilha
o luar... As lápides se agitam...
E,
sob a rama dos chorões tristonhos,
Sonhos
mortos de amor despertam e palpitam,
Cadáveres
de sonhos...
Já
me não amas? Basta! Irei, triste, e exilado
Do
meu primeiro amor para outro amor, sozinho...
Adeus,
carne cheirosa! Adeus, primeiro ninho
Do
meu delírio! Adeus, belo corpo adorado!
Em
ti, como num vale, adormeci deitado,
No
meu sonho de amor, em meio do caminho...
Beijo-te
inda uma vez, num último carinho,
Como
quem vai sair da pátria desterrado...
Adeus,
corpo gentil, pátria do meu desejo!
Berço
em que se emplumou o meu primeiro idílio,
Terra
em que floresceu o meu primeiro beijo!
Adeus!
Esse outro amor há de amargar-me tanto
Como
o pão que se come entre estranhos, no exílio,
Amassado
com fel e embebido de pranto...
(Ato
III, Cena V)
JULIETA
Por
que partir tão cedo? inda vem longe o dia...
Ouves?
é o rouxinol. Não é da cotovia
Esta
encantada voz. Repara, meu amor:
Quem
canta é o rouxinol na romãzeira em flor.
Toda
a noite essa voz, que te feriu o ouvido,
Povoa
a solidão como um longo gemido.
Abracemo-nos!
fica! Inda vem longe o sol!
Não
canta a cotovia: é a voz do rouxinol!
ROMEU
É
a voz da cotovia anunciando a aurora!
Vês?
há um leve tremor pelo horizonte afora...
Das
nuvens do levante abre-se o argênteo véu,
E
apagam-se de todo as lâmpadas do céu.
Já
sobre o cimo azul das serras nebulosas,
Hesitante,
a manhã coroada de rosas
Agita
os leves pés, e fica a palpitar
Sobre
as asas de luz, como quem quer voar.
Olha!
mais um momento, um rápido momento,
E
o dia sorrirá por todo o firmamento!
Adeus!
devo partir! partir para viver...
Ou
ficar a teus pés para a teus pés morrer!
JULIETA
Não
é o dia! O espaço inda se estende, cheio
Da
noite caridosa. Exala do ígneo seio
O
sol, piedoso e bom, este vivo clarão
Só
para te guiar por entre a cerração...
Fica
um minuto mais! por que partir tão cedo?
ROMEU
Mandas?
não partirei! esperarei sem medo
Que
a morte, com a manhã, venha encontrar-me aqui!
Sucumbirei
feliz, sucumbindo por ti!
Mandas?
não partirei! queres? direi contigo
Que
é mentira o que vejo e mentira o que digo!
Sim!
tens razão! não é da cotovia a voz
Este
encantado som que erra em torno de nós!
É
um reflexo da luz a claridade estranha
Que
aponta no horizonte acima da montanha!
Fico
para te ver, fico para te ouvir,
Fico
para te amar, morro por não partir!
Mandas?
não partirei! cumpra-se a minha sorte!
Julieta
assim o quis: bem-vinda seja a morte!
Meu
amor, meu amor! olha-me assim! assim!
JULIETA
Não!
é o dia! é a manhã! Parte! foge de mim!
Parte!
apressa-te! foge! A cotovia canta
E
do nascente em fogo o dia se levanta...
Ah!
reconheço enfim estas notas fatais!
O
dia!... a luz do sol cresce de mais em mais
Sobre
a noite nupcial do amor e da loucura!
ROMEU
Cresce...
E cresce com ela a nossa desventura!
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