Alexandre Herculano é uma dessas
figuras esculturais que, antes de desaparecerem em pó, reaparecem em bronze.
Ainda vivo, nos últimos anos, adquirira na penumbra heroica do seu isolamento,
como que a imobilidade sagrada de uma estátua. Desde o dia em que, velho leão
ensanguentado, se retirou de uma luta sem tréguas que durara quarenta anos,
para se ir esconder na benigna e pacificante tranquilidade da natureza, desde
esse dia em que para quase todos começa o esquecimento, começou para Alexandre
Herculano a projeção gloriosa do seu gênio – a imortalidade.” E a sua rude
figura valorosa irá sucessivamente aumentando de proporções à medida que for
correndo o tempo, esse filtro desapaixonado, que separa a verdade cristalina, límpida,
inalterável dos venenos da inveja, das fezes da calúnia, da baba hidrófoba dos
rafeiros magros e pestilentos.
Para medir a estatura de
Herculano será necessário vê-lo de longe, a distância de um século. As grandes
montanhas não se veem ao pé.
***
Alexandre Herculano, antes de ter
pegado numa pena, tinha pegado numa arma. O escritor não foi mais do que o
prolongamento do soldado. Nos seus panfletos vulcânicos ouve-se a cada momento
a detonação formidável da pesada clavina de pederneira do cerco do Porto. Deu
ainda mais tiros com a pena do que com a espingarda. A tinta com que escreveu
essas polêmicas era feita com o sangue dos adversários e com o resto da pólvora
que lhe tinha ficado das campanhas da liberdade. Às vezes, depois de levar os inimigos
a tiro, perseguia-os, lívidos, em debandada, às coronhadas. Defendeu a liberdade
contra a tirania e contra o jesuitismo, contra o cutelo e contra o hissope.
***
O estilo de Alexandre Herculano é,
permita-se-me a expressão, a onomatopeia do seu caráter: grandioso, leonino,
apaixonado. É bronze torcido. Às vezes dentro de um período ha um aríete.
Quando corta é um machado; quando ruge é um trovão. A cólera de Herculano é uma
espada de fogo com uma bainha da justiça. Herculano só tinha fúrias quando
tinha razão. Matava um inimigo? Era para salvar uma vítima. A vítima era esta: a
liberdade. Quando a atacavam, Herculano transformava-se em um tigre com a alma
de um anjo. Rasgava, esmagava, esfacelava. Às vezes ria. Os seus sarcasmos fulminantes
caíam sobre os preconceitos, como um cáustico sobre ama chaga. Aquele riso era
a gargalhada transformada em azorrague; era a alegria ao serviço da indignação.
Quando Herculano se ria de um adversário fazia-o chorar.
***
A história de Portugal era como
um enorme palácio desmantelado, com as janelas trancadas, as paredes fundidas
pelos raios, cobertas de lepra, e onde ninguém ousara penetrar com medo que
desabassem aquelas podres escadarias monumentais, que contavam já setecentos anos
de existência. Inspirava terror. Andavam lá dentro lobisomens, aparições lúgubres,
fantasmas com sudários. As corujas e os milagres esvoaçavam sinistramente
naquelas escuridões supersticiosas. Os ratos tinham feito o ninho nas estantes
e roíam os arquivos. Ouvia-se o piar dos mochos e os assobios das cobras.
De quando em quando dizia-se que
era preciso restaurar o grande monumento nacional, mas não havia artistas, não
havia pedreiros que quisessem aventurar-se no meio daqueles entulhos
tenebrosos.
Foi então que apareceu um homem extraordinário
— Alexandre Herculano, que abriu a porta desse pardieiro monumental, que andou
lá dentro durante vinte anos consecutivos a levantar as escadas, a limpar os móveis,
a abrir as gavetas, a consultar os livros, a erguer as paredes, os tetos, as
colunas, e que, depois de um trabalho incalculável, sobre-humano, em que ele
tinha sido tudo ao mesmo tempo — arquiteto, pedreiro, carpinteiro, paleógrafo,
limpa-chaminés, depois de ter reconstruído enfim a parte mais deteriorada do edifício,
veio à rua dizer com simplicidade aos transeuntes estupefatos: Podem entrar.
E sabeis o que aconteceu?
***
As cobras que Herculano matara lá
dentro não ficaram bem mortas, e abriram coroa, vestiram batinas, e foram
espirrar o veneno dos púlpitos para baixo, sobre a alma mais sinceramente
religiosa, sobre o espírito mais verdadeiramente cristão que eu tenho
conhecido. As corujas que, sentindo os passos do grande historiador, tinham
voado espavoridas, foram pousar nos campanários e nas sacristias segredando ao beatério,
que costuma fornecer-lhes o azeite — que um desalmado iconoclasta as tinha expulso
do ninho em que viviam regaladamente há mais de setecentos anos.
Os mochos, que saíram pela janela
quando Herculano entrou pela porta, andaram a piar em voz baixa pelos concessionários
que aquele homem devia ser entregue ao ódio dos cristãos, já que infelizmente o
não podia ser ao baraço da forca.
O milagre de Oarique, desalojado
da sua toca subterrânea, andou pelas igrejas, pelos campos, pelos jornais,
pregou sermões, escreveu artigos, fez comunicados, pediu assinaturas, debateu-se
enfim com um Tartufo energúmeno, a que acabassem de por a calva à mostra.
E os ratos? Estes espalharam-se
pela península inteira, fizeram-se curas, missionários, sacristães, jornalistas,
e não satisfeitos de terem roído Herculano durante a vida, ainda agora, depois
de morto aparece um desses animaizinhos odiosos e infectos, um velho rato
carlista— "El siglo Futuro" — a enterrar os dentinhos anavalhados no
cadáver ainda quente do grande historiador português. Será bom que junto da
sepultura de Herculano se mande colocar um prato com arsênico.
***
Foi então que Herculano partiu
para Vale de Lobos. Vale de Lobos é o exílio dentro da pátria. Emigrou da
sociedade para a natureza. O formigueiro humano incomodava-o. A personalidade de
Herculano era feita como uma estátua: de um só jato, de uma só peça. Não compreendia
as nossas transigências, os nossos oportunismos, as nossas restrições, enfim
esta sociedade decadente e utilitária baseada sobre o interesse, o egoísmo, à
letra de câmbio.
Herculano era da raça dos
gigantes de 1830. Depois disso viera uma raça dos agiotas. Havia mais estradas,
mais dinheiro, mais polícia, mais tranquilidade, mais conforto, mas o nível da moralidade,
o caráter, esse foi descendo, descendo, até que parou exatamente na linha divisória
em que termina a virtude e começa o código penal. Os grandes sentimentos, os
rudes heroísmos, as nobres abnegações dormiam — e quem sabe se talvez para
sempre! — nas campas obscuras em que estavam deitados os titãs da epopeia da
liberdade.
Herculano sentia-se só. Ele era
no meio de tudo isto como um roble no meio de uma charneca. Os seus compatriotas
davam-lhe pelo joelho. Depois tanto o morderam, tanto o contrariaram, que um
belo dia Herculano, que estrangulara panteras, mas que não estava disposto a catar
pulgas, tomou a resolução inabalável de se recolher dentro do silêncio, como
dentro de uma fortaleza. Às vezes de longe a longe ainda s sentia trovejar lá para
as bandas de Vale de Lobos. Mas era um momento, passava. Herculano fora definitivamente
vencido Por quem? pelos pigmeus. O rato matara o elefante.
***
O enterro do primeiro cidadão português
foi tão pobre e miserável, como o seria o do último. Os extremos tocam-se. Não
censuro a falta de pompa teatral, de mágica fúnebre. Quem foi simples na vida
devia sê-lo na morte. Não são os lacaios agaloados que fazem o luto.
O féretro de Herculano tinha
obrigação de ser humilde, mas tinha também obrigação de ser acompanhado por uma
mulher vestida de negro, banhada em lágrimas, que antigamente se chamava pátria
— e que hoje já não sei bem como se chama, porque nem tenho mesmo à certeza de que
ela ainda exista. Vergonha eterna. A pátria não chorou a morte de Herculano; a
mãe não chorou a morte do filho. Se ainda aqui houvesse porventura um forte e
grandioso sentimento de nacionalidade, a morte desse impecável cidadão, deveria
ter produzido em todos os espíritos um abalo tremendo, um terremoto de angústias
***
Vai, espírito sublime, que não
cabias em Portugal e cabes em sete palmos de terra! vai despir no leu sepulcro
ignorado os andrajos efêmeros, com que a Providência veste as nossas almas imorredouras,
e, como uma águia branca e gloriosa, some-te nessas alturas inacessíveis donde
se não pode ver as grandíssimas misérias dos pequenos vermes deste pequeníssimo
grão de areia.
E enfim se os teus compatriotas à
míngua de dor, por um sentimento de ostentação te quiserem levantar um monumento
grandioso, já lhes deixas preparado o material suficiente para que o possam
fazer ainda maior do que a mais alta das pirâmides do Egito. Basta que reúnam para
isso todas as pedras com que te apedrejaram.
---
GUERRA JUNQUEIRO
O Cearense, 18 de novembro de 1977.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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