A ELISA
Thus, while I ape the measure wild,
Of tales that charmed me yet a child,
Rude though they be, still with the chime
Return the thoughts of early time;
And feelings, roused in life's first day
Glow in the line, and prompt the lay.
Walter
Scott
Campo
da lide é este; aqui lidaram,
Elisa,
os nossos quando os nossos eram
Lidadores
por glória, – aqui prostraram
Soberbas
castelhanas, e – venceram;
Que
pelo rei e pátria combatendo
Nunca
foram vencidos portugueses.
–
Este terreno é santo; inda estás vendo
Ali
aqueles restos mal poupados
Do
tempo esquecedor,
Dos
homens deslembrados;
Nobres
relíquias são de altas muralhas
Forradas
já de lúcidos arneses,
De
tresdobradas malhas.
Talvez
flutuava ali naquele canto,
Soberbo
e vencedor
Das
Quinas o pendão vitorioso;
E
juntos ao redor
Desse
paládio augusto e sacrossanto,
Invencível
trincheira lhe faziam
Toda
a flor dos mais nobres e esforçados;
Que
à voz da pátria (voz que nunca ouviam
Sem
sentir redobrados
Do
nobre coração os movimentos)
Heróis
são todos, fácil a vitória,
Fáceis
as palmas que lhe enfeixa a glória.
Ah!
– paremos aqui: – vê quais na frente
As
artérias violentas me rebatem:
Febril,
descompassado corre e ardente
E
me angustia o sangue...
–
Ah! sim paremos
Aqui...
Não, aqui não; esse outeirinho
Depressa
o descemos.
Faz-me
bem esta vista: – essas arcadas
Soberbas,
elevadas,
Que
uniram monte a monte e serra a serra,
Acaso
não serão
Tão
ilustres talvez, – não lembram guerra,
Glória
não lembram; nem com sangue lívido
A
morte da vitória companheira
Para
o erguido padrão
O
cimento amassou.
Um
rei que amou as artes, rei pacífico,
A
quem amor fadou
Que
se eu fosse e das musas, – que fugidas,
Da
pátria há tanto, à pátria as volveria;
Do
povo à utilidade
Este
sublime monumento erguia
Para
a posteridade
Isto
só lhe apurou o nome e a glória,
E
lhe ganhou as páginas da história.
Inda
é multa opressão; inda me acanha
Tanta
arte humana o coração no peito.
Tão
grandes massas, fábrica tamanha,
Absorto
deixarão – mas satisfeito
O
ânimo, os sentidos?... Não, Elisa,
Não
satisfaz ao homem a arte humana;
Por
mais que ela se ufana,
Que
aos abismos o centro oprime e pisa
Com
os fundamentos de eternais pirâmides,
Ou
com os erguidos vértices
Às
nuvens rasga o seio tempestuoso.
Nem
assim: – à tristeza ou à alegria,
E
àquele estado de inefável gozo
Que
entre a dor e o prazer a alma suspende
Brandamente
e se diz melancolia,
Oh!
nada disso o excita.
Oh!
nada disso o coração entende!
Oh!
nada disso o espírito nos move
Se
a natureza, a pura natureza
Por
sua ingênua atração nos não comove.
Posso
admirar o homem e a grandeza
De
suas nobres feituras,
Mas
somente admirar;
Mais
não pode excitar
Mesquinha
criação de criaturas.
Vamos
por essa encosta
Subindo.
–
Eu gosto do alto das montanhas,
Dos
picos das erguidas serranias,
O
avaro à terra mãe abra as entranhas,
Cave
oiro e crimes, com que encurte os dias
Seus
e dos seus, e a sombra da virtude
Acabe
de varrer da face dela.
Mas
o que, em paz comigo e com a existência,
Ainda
ama a inocência,
Inda
se apraz com a natureza bela,
A
seus quadros sorri, com seus dons goza,
Oh!
esse venha ao cume do alto monte,
Venha
estender a vista saudosa
Pelo
vale que à falda lhe verdeja,
A
messe que loureja,
E
a despenhada fonte
Que
vai garrula e trépida saltando
Até
que se junta em cava pederneira.
Donde
sai, o arco-íris imitando
Na
espadana da férvida cachoeira.
Venha
na solidão – e o só dos montes
É
mais só que nenhum, – o silencioso
Mais
augusto, solene e majestoso!
Venha
na solidão
Consigo
conversar, falar uma hora
Com
o seu coração.
–
Quantos há que anos longos hão vivido
Com
os outros sempre, sempre com os de fora
Sem
viverem consigo nem um dia,
Nem
um momento só!
Tenhamos
deles dó;
Viver
não... têm apenas existido.
Tua
meiga companhia
É
doce, Elisa; e sempre na minha alma
Foi
teu brando falar – e quantas vezes!
–
Celeste orvalho que abrandou a calma
De
paixões, que adoçou o agro a revezes:
Porém
a minha solidão querida,
De
vez em quando, lá quando alma o pede,
Oh!
não ma tirem que é tirar-me a vida.
Agora
conversemos: eu ignoro
A
arte das vãs palavras que bem soam;
Ouço-as,
e não demoro
No
ouvido os sons que de per si se escoam.
O
sol declina; – temos largamente
Hoje
filosofado.
Na
viva flor da idade e da saúde
Nem
de todos seria acreditado
Que
tão suavemente
Em
austeras conversas de virtude
Nos
fosse o tempo.
–
Crê-me, Elisa amável,
Tem
muito mais prazeres a amizade
E
mais doces que amor:
Para
todos os sexos, toda a idade,
Em
todo o tempo a mesma, sempre afável,
Sem
o cancro roedor
Do
ciúme voraz que no mais puro
De
amor, no mais seguro
Suas
raízes venenosas lança,
E
com a mais branda flor
Seus
mordentes espinhos lhe entrança.
Detestemos,
Elisa, essa funesta
Paixão
brutal que a tudo e em tudo dana,
Da
virtude a tirana:
Não
nos iluda a tão comum cegueira;
Detesta
o crime quem amor detesta.
Crimes!
– vê a amizade prazenteira,
Que
nenhuns tem; – e amor, ai! quantos, quantos?
Honras
perdidas, tálamos violados,
Os
vínculos mais santos
Dos
homens e de Deus, da natureza,
Da
própria natureza – espedaçados
Por
esse amor, que era tocha acesa
Do
vivo fogo traz do Averno imundo
Para
de crimes abrasar o mundo.
Honesto,
justo, santo, consagrado,
Nada
respeita: – o sangue, o altar em meio
De
seus desejos não é termo ou freio;
Não
há pomo vedado
No
Éden da virtude
Que
a mão perversa e rude
Tocar
não ouse, – árvore da vida
Que
dos grifos mordida,
Em
peçonha de morte não converta,
E
a seiva salutar já corrompida
Em
letal benefício não perverta.
Lembra-te
aquela história
Que
ingênuo o povo em seus trabalhos canta,
E
de longa memória
Entre
eles perpetuada,
É
singela legenda de uma santa,
Que
por brutal amor sacrificada,
Desvalida
virtude,
Só
do crime escapou no seio à morte?
Eu
a canção magoada
Em
verso menos rude,
Mais
moldado verti, dei novo corte
Ao
vestido antiquíssimo, à simpleza
Que
há séculos lhe deu
De
nossos bons maiores a rudeza.
Sereno
está o céu,
Tranquilo
o vento, a calma descaída;
E,
pois que não te enfada
A
singela toada
Do
bardo alaúde que sem arte soa
E
a rima desgarrada
Da
popular canção rústico entoa,
Aqui
ta cantarei; ouve: e se ao pranto
Te
comover a saudosa endecha,
Na
selvagem bonina,
Na
campainha agreste desse mato
Arrociá-lo
deixa;
São
lágrimas sinceras, própria fonte
Para
regar as inocentes flores
Que
arte não sabem nem conhecem arte;
Flores
como os meus versos não variados
De
refinadas cores
Em
que alma só e coração tem parte.
Não
por clássica música modulados
Ao
graduado som de grega lira,
De
citara romana.
A
minha é melodia que só mana
Dos
íntimos acordes só do peito;
Nem
há corda que fira
Em
meu alaúde rústico
Tom
menos natural, mais contrafeito.
Em
soberbos canais, alto empedrados
Por
engenhoso hidráulico,
Vão
da arte subjugados
Os
caudais da torrente conduzindo
Riquezas
de preciosa mercancia:
E
o arroio, que serpeia entre pedrinhas
Pela
relva macia,
Bordado
em torno sinuosamente,
Que
pode ele levar
Em
sua doce e trépida corrente?
–
Alguma folha de silvestre rosa
Que,
ingênua divagando
Pastorinha
formosa
Lhe
foi acaso à margem desfolhando.
CANTIGA
PRIMEIRA
No,
I'll not weep:
I have full cause of weeping; but this heart
Shall break into an hundred thousand flaws
Or ere I'll weep.
Shakespeare
I
Onde
vais tão alva e linda,
Mas
tão triste e pensativa
Pura,
celeste Adozinda,
Da
cor da singela rosa
Que
nasceu ao pé do rio?
Tão
ingênua, tão formosa
Como
a flor, das flores brio
Que
em serena madrugada
Abre
o seio descuidada
A
doce manhã de abril!
–
Roupas de seda que leva
Alvas
de neve, que cega
Como
os picos do Gerês
Quando
em janeiro lhe neva.
Cinto
cor de violeta
Que
à sombra desabrochou;
Cintura
mais delicada
Nunca
outro cinto apertou.
Anéis
louros do cabelo
Como
o sol resplandecentes
Folgam
soltos; dá-lho vento,
Dá
no véu ligeiro e belo,
Véu
por suas mãos bordado,
De
um santo ermitão fadado
Que
vinha da Palestina;
Passou
pelo povoado,
Foi-se
direito ao castelo
Pediu
pousada, e lha deram
Porque
intercede a menina:
Que
o pai soberbo e descrido,
–
Nessa gente peregrina,
Disse,
quem sabe o que vem?
–
Mas pede Adozinda bela,
Tão
virtude e formosura,
Quem
lho há de negar a ela?
Não
pode o pai nem ninguém.
II
Mas
o outro dia, à luz nada
Houve
quem visse Adozinda
Debruçada
em seu balcão
Haver
prática alongada
Com
aquele velho ermitão.
Quem
sabe o que lhe ele disse?
Ninguém
no castelo ouviu:
Mas
daquela ocasião,
A
alegria lhe fugiu
Dos
olhos e do semblante:
Ficou
triste, sempre triste;
Mas
em seu rosto divino
Fez-se
formosa a tristeza.
Como
olhos de amor quebrados
Disseras
os olhos dela;
Mas
não tem de amor cuidados,
Que
a ninguém conhece a bela.
III
Qual
semente arrebatada
Da
flor de vergel mimoso
Pelos
furacões do Outono,
Vai
no encosto pedregoso
Cair
de serra escalvada;
Vem
abril, e a seu bafejo
Brota
e nasce a linda flor,
De
ninguém vista ou sabida,
Nem
de damas cobiçada
Nem
de pastores colhida,
E
o vento da solidão
Lhe
bebe o perfume em vão.
IV
Quinze
anos tem Adozinda;
E
desde a vez que o romeiro
Do
saio pardo e grosseiro
Lhe
falou ao seu balcão,
Faz
três para o São João.
V
E
Adozinda sempre triste
Vai
sozinha pelo eirado,
Pelo
jardim, pelo prado;
Nem
já a divertem flores
Em
que punha o seu cuidado
Pelos
sombrios verdores
De
sua espessa coutada
Vaga
à toa e derramada,
Como
a novilha perdida,
Como
a ovelha desgarrada
A
quem o tenro filhinho
Lobo
do mato levou:
–
Desfaz-se a mãe em balidos,
Que
de ninguém são ouvidos,
E
o filhinho não tornou!
VI
Que
tem Adozinda bela
Que
em tal desconsolo a traz?
Serão
saudades do pai
Que
anda com os Mouros à guerra
Por
defender sua terra
Mais
a santa lei de Deus?
Três
anos há que se foi;
E
dois filhos que levou,
A
cada qual sua espada
Com
juramento entregou
De
lha tornarem lavada
No
sangue mouro descrido:
E
assim cada um jurou.
Fizeram
gente em suas vilas,
(Que
preito muitas lhe dão)
E
guiaram seu pendão
Para
terras de Moirama.
Já
vejo chorar donzelas,
Vejo
carpir muita dama,
Que
onde chega Dom Sisnando,
Com
sua espada portuguesa,
Não
há lanças nem rodelas
Que
sirvam para defesa.
VII
Mas
não são do pai saudades,
Que
sempre a lidar com armas
Como
elas duro se fez;
Mais
lhe importam do que a filha
Seus
ginetes, seu arnês.
E
até – quem diria tal!
–
Quando a mãe, por diverti-la,
Lhe
fala do pai ausente
E
lhe diz que há de voltar,
Parece
que se lhe sente
O
coração apertar.
Suspira
em silêncio
Ausenda,
Ausenda tão bela ainda
Que
ao pé da bela Adozinda
Mais
irmã que mãe parece
De
filha tão moça e linda
Suspira
em silêncio a triste,
Porque
suspira não diz:
–
Filha amante de seu pai
Conceder-me
o céu não quis!”
Ai!
que sem razão se chora!
Ai!
Ausenda malfadada,
Tem
de vir minguada hora
Que
à filhinha desgraçada
Darás
mais razão que agora.
VIII
Que
tropel que vai nos Paços
De
Landim ao pé dos rios!
Sons
de festa e sons de guerra
Em
seus muros e alta torre?
Geme
a ponte, treme a terra
Com
o peso de homens armados.
Cavalos
acobertados
Trotam
ligeiros; – e corre
O
alferes que tremulando
Vai
guião de roxa cruz...
Já
chegado é Dom Sisnando.
Entre
os cavaleiros todos
Sua
armadura reluz:
E
o penacho flutuante
Das
plumas altas de neve
Sobre
o elmo rutilante
De
longe a vista percebe.
IX
–
“Portas do castelo, abri-vos,
Correi,
pajens e donzelas,
Que
é chegado meu senhor,
Meu
esposo e meu amor!”
Ausenda
bradava e corre.
Portas
se abrem, soam vivas,
E
o eco da antiga torre
Com
o som festivo acordou.
–
“Viva, viva Dom Sisnando!”
E
o tropel que dobra e cresce,
E
às portas que chega o bando
Dos
guerreiros triunfantes.
Do
corcel soberbo desce
E
aos braços anelantes
Da
cara esposa voou.
Doce
amor que os apertou
Não
lhes deixou mais sentidos
Que
para se ver unidos,
Ajuntar-se
peito a peito,
E
em laço tão brando e estreito
Longa
saudade afogar.
A
Ausenda goteja o pranto,
Pranto
que é todo alegria;
E
o rosto que nunca enfia
Do
esforçado lidador,
Também
sentiu – mais que a dor
Pode
o gozo! – descuidada
Uma
lágrima sensível
De
seus olhos escapada.
X
Mas
as lágrimas de gosto,
Como
as de mágoa, têm fim;
Dom
Sisnando enxuga o rosto,
E
tomando a mão à esposa:
–
Donde vem, lhe diz, senhora,
Que
a joia mais preciosa
Não
vejo destes meus paços,
Donde
vem que aos meus braços
Minha
filha?... – A filha bela,
Pasmada,
trêmula, a um lado,
O
rosto ao chão inclinado,
Parecia
humilde estrela
Que
ao primeiro ralo vivo
Do
sol que no alvor reluz
Não
fica, não, menos bela,
Porém
pálida e sem luz.
XI
Três
anos já são passados
Que
Dom Sisnando a não via,
Nessa
jovem, linda dama
Sua
filha não conhecia.
–
“Ei-la aqui, senhor”, dizia
A
mãe, que dum braço a trava,
“Ei-la
aqui”.
–
Os olhos crava
O
pai na formosa filha,
E
de assombro e maravilha
Mudo,
extático ficou.
Cora
Adozinda, suspira,
E
“Pai!” disse em voz tremente
Submissa...
languidamente
Ajoelha,
ósculo frio
Na
paterna mão imprime:
Pranto
que até ali reprime,
Corre
agora em solto rio.
–
“Que tens tu, filha querida,
Que
assim choras tão carpida?
É
teu pai, que há de querer-te,
Que
há de amar-te como eu te amo”.
E
tomou-a nos seus braços,
E
a levanta Ausenda bela.
Pasma
o pai, suspira ela;
E
a custo os doces abraços
De
pai, de filha se deram.
XII
Pouco
alegre a companhia
Entrou
nos paços brilhantes;
E
os atabales soantes
Pregoaram
festas e alegria
No
castelo de Landim.
CANTIGA
SEGUNDA
But yet thou art my flesh, my blood, my daughter.
Shakespeare
I
Oh!
que alegrias que vão
Pelos
paços de Landim!
Que
magníficos banquetes
Que
suntuoso festim!
Junto
ao valente campeão,
À
cabeceira da mesa
Ficou
a bela Adozinda.
A
tão celeste beleza
Estão
todos admirando;
E
o embevecido Sisnando
Não
se farta de abraçá-la,
De
beijar filha tão linda.
Ausenda
de gosto chora,
E
abençoa a feliz hora
Em
que tanto amor nasceu.
–
“Inda bem” – diz – “que a rudeza
De
tanto lidar com armas
À
inocência, à beleza
Da
amada filha cedeu!”
Ela
às carícias paternas
Já
não ousa de esquivar-se,
Cora,
mas deixa abraçar-se;
Vê-se
que tantos afagos
A
repugnância venceram
Da
timidez natural,
Ou,
se outra causa fatal,
Mais
encoberta ela tinha.
Ao
menos lha adormeceram.
II
Já
de esquisitos manjares
Os
convivas saciados,
De
folias e cantares
Pajens,
donzelas cansados,
E
dos brindes amiudados
Finda
a primeira alegria,
Doce
repoiso pedia
Quanto
esta noite em Landim
Velou
em baile e festim.
A
seus nobres aposentos
Adozinda
retirada,
Com
permissão outorgada
A
custo – do pai, se foi.
Ausenda,
em grave cortejo
De
suas damas rodeada
Deixou
há muito o festejo,
E
em seu camarim deitada
Espera
o momento ansiosa
Em
que a sós a amante e a esposa
Nos
braços de Dom Sisnando
Se
hão de em breve confundir.
III
Como
um tapete mimoso,
Junto
ao paço de Landim
Se
estende jardim formoso,
De
boninas arrelvado
Da
verde grama e de flores:
Remata
em bosque frondoso
Cujos
opacos verdores
Eternas
sombras acoitam,
De
pesados sentimentos
Opresso
o peito fremente,
A
respirar livremente
O
ar puro da noite fria
Entrou
insensivelmente
Dom
Sisnando em seu vergel.
Jamais
tão rico dossel
De
azul bordado de estrelas
Se
estendeu sobre a terra
Do
estio nas noites belas.
IV
Alta
a lua vai no céu,
E
as sombras leves e raras
Não
impedem às florinhas,
Não
tolhem às águas claras
De
brilhar com a luz noturna,
Menos
resplendente e fúlgida,
Porém
mais suave e plácida,
Mais
amável que a diurna.
Manso
o vento, que murmura
Entre
as folhas brandamente,
Convida
suavemente
A
respirar, a bebê-la,
Essa
fresca viração,
Das
flores exalação,
Tão
doce como o bafejo
De
dois amantes queridos
Quando
por amor unidos
Se
dão mútuo e doce beijo.
V
Na
feiticeira beleza
Da
noite, do céu, das flores
Várias
de aroma e de cores,
Sisnando
todo embebido,
No
seio da natureza
Do
resto do orbe esquecido,
Pouco
a pouco a agitação
De
alma lhe foi abrandando,
E
o pesado coração
Do
afogo desapertando:
Já
pode gemer, – suspira,
E
como que se lhe tira
Um
peso de sobre o peito,
Que
a suspirar foi desfeito.
VI
Por
que geme, por que anseia
Dom
Sisnando, o lidador?
Sisnando,
o triunfador,
Cujo
alto pendão campeia
Vitorioso
e senhor
Por
tanta soberba ameia
De
nunca entrado castelo,
De
jamais vencida torre!
–
Dor que lhe nasce no peito
É
dor que no peito morre;
Ânsia
que lhe rala a vida
Não
é para ser sabida.
–
E desde quando? há tão pouco
Feliz
e ditoso ainda,
Com
tanta alegria e júbilo
Festejada
sua vinda!...
Vassalos,
esposa, filha...
Filha!...
A filha é tão formosa!
Oh!
essa Adozinda bela
Nos
olhos encantadores
Tem
com que matar de amores
A
metade dos humanos!
Não,
não é peito sensível
Peito
que lhe resistir:
Mas
o pai!... não é possível.
VII
Não
é, não é.
–
Mas Sisnando,
Sem
saber onde caminha,
Melancólico
e pesado.
Insensível
foi entrando
Pelo
bosque emaranhado
Que
ao jardim avizinha:
E
o silêncio, que o seguiu,
Que
no espesso coito habita,
Nem
um verde ramo agita,
Nem
uma folha buliu.
À
toa por entre as árvores
Sem
seguir carreiro ou trilho,
Nem
guiado de um só brilho
De
froixa estreia que entrasse
Por
tão medonha espessura,
Ora
lento e vagaroso,
Ora
os passos apressura,
Já
por caminho fragoso,
Já
por vereda macia.
Até
que num claro onde os troncos
Escasseiam
de repente,
E
onde pálido e tremente
Seu
reflexo a lua enfia,
Sem
o saber, foi parar.
VIII
Agreste,
não feio é o sítio
Medonho,
horrível de ver;
Porém
tem a natureza
Horrores
que são beleza,
Tristezas
que dão prazer,
Mão
de arte ali não chegou;
A
virginal aspereza
Ficou
em toda a rudeza
Que
a criação lhe deixou.
De
um lado, choupos anciãos
Seus
ramos lúgubres pendem,
E
o vivo seixo fendem
Crespas
raízes nodosas
Das
sovereiras anosas
Que
as cortiças remendadas
Têm
dos estilos lascadas
A
pedaços a cair.
Do
outro, altivos rochedos,
Como
do céu pendurados,
Difundem
pálidos medos
Que
em funda gruta acoitados
De
espectros a povoaram.
–
Di-lo toda a vizinhança,
Que
ou são sombras de finados,
Ou
de negras bruxas más
Ali
há noturna dança.
Redobra
do sítio o pavor
Um
jorro alto que despenha
Saltando
de penha em penha,
E
os ecos em derredor
Vai
temeroso acordando,
Este
único som de horror
À
calada solidão
Da
mudez quebra o condão.
Sisnando,
o ardido Sisnando,
O
do forte coração,
Sentiu
soçobrar-lhe o ânimo:
Uma
voz dentro do peito
Lhe
diz que não passe avante;
Mas
outra voz mais possante,
Outra
voz que é voz do fado,
Voz
que ao mortal desgraçado
Não
deixa força ou razão,
Lhe
brada: Persiste, segue...
–
Ai do que a ela se entregue,
Que
se entrega à perdição!
IX
No
seixo cavada gruta
Tem
escassa entrada aberta,
Quase
de todo coberta
De
festões de hera lustrosa
Que
cingindo a rocha bruta
Pende
em grinalda ramosa.
Entre
as folhas, que meneia
Ligeiro
sopro de vento,
Viu
Sisnando – e alma lhe anseia
–
Um lampejar vago, incerto
De
luz fraca, – ouve um acento
De
voz doce mas gemente,
Voz
que se ouve e que está perto,
Que
entoa suavemente
Uma
angélica harmonia,
Tão
triste que faz chorar!
E
esta voz assim dizia
Em
seu lânguido cantar:
“Anjos
do céu, acudi-me,
Valei-me,
santos do céu,
Que
me rouba mais que a vida
Quem
só a vida me deu.
“Santo
ermitão, que me deste
Aquela
esperança ainda
Que
a desgraçada Adozinda
Viria
a ser venturosa
Após
de longo penar...
Sorte
que vieste
Sobre
mim deitar,
Sorte
desastrosa
Vem
ver começar.
“Anjos
do céu, acudi-me,
Valei-me,
santos do céu,
Que
me rouba mais que a vida
Quem
só a vida me deu.
Mas
ah! tão negro crime,
Tão
hórrida paixão
De
um pai no coração...
De
um pai...
–
Como é possível!
Não,
não, não há de entrar.”
X
–
“Pois treme, infeliz, e sabe
Que
essa horrorosa paixão
Aqui
neste coração...”
Sisnando,
a quem já não cabe
No
peito a angústia o tormento
De
tão criminoso amor,
Nestas
vozes de terror
Rompendo,
a caverna entrou.
XI
Oh
que pavoroso instante!
Os
anjos todos cobriram
Seus
rostos com a asa brilhante;
Sem
vento os troncos de em torno
A
ramagem sacudiram;
A
lua no céu mais pálida
Como
de susto enfiou
E
para trás da montanha
Foi
correndo, e se eclipsou.
XII
Quem
há de a filha chorar
Que
está nos braços paternos!
Oh!
quem se há de horrorizar
Dos
beijos doces e ternos
Que
o amor...
–
Que amor é esse?
De
ouvir tão medonho horror
O
próprio inferno estremece
E
só lá... há tal amor!
XIII
Oh!
como hei de eu cantar
Se
no peito a voz me treme!
História
que é de chorar,
Quem
a diz não canta, geme.
–
Só não gemia Adozinda,
Que
toda morta, gelada,
Santo
Deus! – mais bela ainda,
Na
viva rocha, estirada
Como
um cadáver ficou.
XIV
E
o pai ousou levantá-la,
E
apertar junto a seu peito
Aquela
morta beleza!
–
Repugnou a natureza:
E,
da paixão a despeito,
De
si a afasta, vacila...
O
anjo da sua guarda
Inda
um momento o resguarda...
Mas
há na terra ou no céu
Força
maior que a paixão,
Que
subjugue um coração
Que
de amor endoideceu?
Se
a há, não lhe acudiu Deus,
Venceram
pecados seus.
Lembrou-lhe
fugir... ficou:
Sim,
lembrou-lhe a salvação...
E
à sua condenação
O
infeliz se votou.
XV
Geme,
chora; altos soluços
Do
peito lhe vêm bradando;
Porém
fugir de Adozinda
Não
pode o triste Sisnando,
Ela
acorda, e em voz sumida:
Piedade,
senhor, piedade!...
Só
pôde dizer: perdida
Nos
ecos da soledade
Vai
soando e murmurando
A
voz triste e condoída.
Ouve-a
ele; e o coração
No
peito lhe estremeceu;
Na
execranda pretensão
Recua,
– mas não cedeu.
XVI
Palavras
que lhe ele disse
Respostas
que lhe ela deu,
Oh,
não as contarei eu,
Não
as contará ninguém...
Quis
que lhe ela prometesse
(E
a terra ali não se abriu
Quando
tal a um pai ouviu!)
Que
para a noite seguinte,
Quando
tudo em paz jazesse
Em
seu leitoso recebesse...
XVII
Chora
a infeliz, chora, geme,
De
horror e de pasmo treine:
Insta
o perigo iminente,
A
esperança na demora...
Com
voz cortada e gemente:
“Senhor,
não insteis agora,
Deixai-me
cobrar alento,
E
amanhã responderei.”
–
“Pois, solene juramento
Farás
de que...”
–
Sim, farei...
–
“Que amanhã, antes que o dia
Do
horizonte desapareça,
Darás
resposta final
E
ai de ti, ai do mortal
A
quem ousasses!... – Pereça
O
infeliz nesse momento:
Só
a morte, só o inferno
De
meu cru ressentimento
O
poderiam salvar.”
CANTIGA
TERCEIRA
I
must a tale unfold whose lightest word will harrow up thy soul; freeze thy
blood; Make thy two eyes, like stars, start from their spheres.
Shakespeare
I
Que
mau fado, que hora má,
Oh!
qual agoirada estrela
Levou
Adozinda bela
À
fadada gruta escura?
Que
foi ela fazer lá?
No
mais denso da espessura,
A
tão aziagas horas,
Só,
alta noite, a desoras,
Sem
donzela ou escudeiro,
Como
o pedia a decência,
Sem
levar mais companheiro
Que
sua débil inocência,
Que
seu jovem coração!
II
Quem
o sabe? – No castelo
Nem
a própria mãe, que a adora,
Que
pela filha querida
Dera
tudo, dera a vida...
Nem
a própria mãe sabe-lo!
E
como é que Ausenda ignora,
Por
que encanto ou maravilha,
Que
ao pino da meia-noite
Todos
os dias a filha o escuro parque atravessa,
E
tenteando a treva espessa
Vai
sozinha àquela gruta
Que
no mais claro do dia
Ninguém
a entrar ousaria?
–
Mas vai; não o sabe Ausenda:
Neste
segredo fatal
Coisa
sobrenatural,
Coisa
medonha, tremenda
Há
por certo... Oh! que inda mal!
III
Desde
aquela madrugada
Que
Adozinda em seu balcão
Falou
com o velho ermitão,
De
noite à gruta fadada
Sempre
vai. Sibile o vento
No
bosque medonho e feio,
Às
nuvens o pardo seio
Rasgue
horríssono trovão,
Nada
teme; a passo lento,
Só,
para ali se encaminha
E
em rezas, em penitência
Horas
longas jaz sozinha.
Talvez
daquele romeiro,
Por
salutar providência,
Seu
fado lhe foi predito;
Talvez
lhe fosse prescrito.
Por
tão santo conselheiro
Que
passasse em oração
Naquelas
medonhas fragas
Certas
horas aziagas
Em
que a fatal conjunção
De
um astro seu inimigo
Maior
fizesse o perigo
Da
terrível maldição
Que
a persegue, – ela inocente!
–
Que tão injusta caiu
Naquela
votada frente...
Mas
diz que não há condão
Pior
que o da maldição!
E
quantas não atraiu
Sobre
a família inculpada
A
soberba despiedada
Desse
orgulhoso Sisnando?
Quantas
vezes o infeliz,
Com
os filhinhos expirando,
À
porta do seu castelo
Se
viu gemendo e chorando,
E
o desalmado senhor
Essa
gentalha atrevida
Escorraçar
a mancou!
Tais
pecados não guardou
Para
os punir na outra vida
O
supremo Arbitrador.
IV
Mas
já despontava o dia,
Que
tão alegre hoje vem,
Tão
risonho parecia,
Que
não dissera ninguém
Senão
que trás alegria:
–
E tantas, tão negras mágoas,
Nunca
as trouxe o sol nascente
Desde
que assoma no Oriente
E
se sepulta nas águas.
Toda
a noite longa, imensa,
Ausenda
velou chorando,
De
suas lágrimas regando o leito viúvo e só;
A
ninguém sua dor intensa
A
desgraçada confia:
Ninguém
da triste ouve dó,
Que
do esposo em companhia
Todo
o castelo a julgou.
Porém
a noite passou,
E
por fim, do novo dia
Já
o alvor vinha ralando,
Sem
aparecer Sisnando,
V
É
manhã; – tênue ainda a luz,
Mas
vê-se que é madrugada
Ausenda
ainda acordada
Sente
abrirem-lhe com tento
A
porta do aposento,
E
entrar... – “Será ele?... Oh vem!
És
tu, suspirado esposo?!
Disse
ela em tímida voz:
Não
lhe responde ninguém.
Um
suspiro doloroso
Lhe
dissipou a ilusão.
Oh
quem se há de enganar
Com
aquele suspirar!
É
Adozinda, – voaram
Do
maternal coração
Toda
a mágoa e dissabores;
E
os sentidos que ficaram
Foi
para amargar as dores
Que
naquele ai a assaltaram.
VI
–
“Filha, filha... a esta hora!
Que
sucedeu?... que tens tu?”
Calada
Adozinda chora
“Ai,
não me chameis filha!”
Rompe
enfim, a soluçar,
Nadando
num mar de pranto.
Pasmo,
terror, maravilha.
Susto,
medo, horror, espanto
No
peito da triste Ausenda
Em
confusão estupenda
De
tropel foram quebrar.
–
Que será? – E esse tirano
De
todo o sossego humano,
Dúvida,
o monstro fatal.
Que
até nos deixa a esperança
Para
que do incerto mal
Seja
maior a pujança,
Venha
mais fino o punhal
Quando
na alma se nos crava,
Esse
do peito lhe trava,
E
ao cruel padecimento
Dobra
angústias e tormento,
VII
Adozinda,
ajoelhada
Junto
ao leito onde convulsa
Jaz
a mãe atribulada,
Do
coração, que lhe pulsa
Como
se fora quebrar,
Traz
de amargo pranto um rio,
Que
dos olhos vem a fio
As
maternas mãos banhar;
As
mãos que ela aperta e beija,
E
que o pranto que goteja
Já
não sentem derramar.
VIII
Volve
a ti, mãe desgraçada,
Volve,
que o morrer agora
Tamanha
ventura fora
Que
da sorte despiedada.
Concedido
não será
Vem
ouvir tua sentença
De
morte... pior que morte,
Vergonha
horrorosa, ofensa...
E
de quem!... de teu consorte.
Do
pai monstro, monstro esposo...
Ai!
para o tormento odioso,
Para
tamanha aflição
Não
tem força o coração.
IX
Tudo
lhe conta Adozinda,
Tudo...
tudo interrompendo
A
horrorosa narração
Ora
as lágrimas fervendo,
Ora
os soluços rompendo
Do
rasgado coração,
Ora
os lábios descorados
De
pejo e terror gelados,
Sem
poder nem balbuciar
O
que é força revelar
X
–
“Irás” disse Ausenda enfim,
E
a voz, que treme, assegura:
“Irás,
a teu...” – pai não disse,
E
um som rouco lhe murmura
Nos
lábios onde a meiguice,
Onde
a maternal ternura
Procuram
em vão sorrir:
“Irás,
filha, a Dom Sisnando
E
lhe dirás que...”
“Senhora!”
Interrompe ela chorando
–
“Que” torna a mãe quando a hora
Da
meia-noite soar,
Em
teu quarto o hás de esperar.
Não
tremas, filha, não tremas,
Não
chores, minha Adozinda,
Querida
filha, não gemas,
Que
hás de ser feliz ainda.
No
angustiado seio
Guardemos
inda a esperança:
Do
céu mandada me veio
Uma
ditosa lembrança
Que
nos poderá salvar.
No
teu leito de ouro fino
Sou
eu que me hei de ir deitar;
Tua
camisa de holanda
A
meu corpo hei de lançar:
E
quando ele nos seus braços
Ter
Adozinda julgar...
Ah!
que o céu há de abençoar
Este
engano virtuoso,
E
a ser pai, a ser esposo
Dom
Sisnando há de voltar.
XI
O
dia em rezas passaram
Em
devotas orações;
Mas
quando as trevas pousaram
Sobre
as muralhas da torre,
Voltaram
as aflições:
E
o tempo – que leve corre
Para
todos os viventes
–
Só àquelas inocentes
Acintoso
parecia
Que
da ampulheta fadada
Bago
por bago espremia
Cada
hora minguada.
XII
Enfim
meia-noite soa:
Dom
Sisnando, aguilhoado
Do
torpe amor – do pecado,
Impaciente
ao prazo voa
Que
ele de amor julga dado.
Como
louco, arrebatado
Corre
ao leito de Adozinda,
Cego
beija a face linda,
Que
decerto não é dela,
Mas
que não é menos bela;
Ao
convulso peito aperta
Aquele
peito formoso...
–
Desgraçado, é tempo ainda,
Do
cruel sonho desperta,
Que
ao precipício horroroso
Já
te vai a despenhar!...
XIII
Dom
Sisnando é criminoso
Quanto
o podia ficar
Do
intento abominoso
Nada
resta consumar.
Já
tristemente acordou
De
seu delírio fatal.
E
sorrindo amargamente,
À
infeliz assim falou:
–
“E era por isto... inocente!
Que
tanto se recatava
Tua
virtude fingida?
Ah!
essa alma corrompida
Mais
do que teu corpo estava. E tu...”
Não
pôde ouvir mais
A
triste mãe; não lhe sofrem
As
entranhas maternais
Ouvir
a filha adorada
De
tal modo caluniada,
E
por quem, e em que momento,
Com
um sufocado lamento,
Que
do peito rebentando
Trouxe
aos lábios alma e vida,
Quebra
o silêncio:
–
“Ah, Sisnando!
Ah,
senhor, matai-me embora;
A
desgraçada sou eu.”
E
a terra naquela hora
Rasgada
não soverteu
O
infeliz, que meio morto,
No
abismo do crime absorto,
Deste
golpe inesperado
À
violência cedeu!
XIV
Silêncio
largo, mortal
Foi
a única expressão
Que
por longa duração
Naquele
estado fatal
Entre
esses dois foi ouvida.
Porém
no perdido peito
De
Sisnando atribulado
Foi
a vergonha vencida
Pelo
irritado despeito:
Dos
remorsos avexado,
Porém
mais pungido ainda.
De
seu crime malogrado,
Brada
em cólera abrasado:
–
“Pereça a filha descrida
Que
desonrou seu pai”
Pai
não ousa proferir
A
palavra, suspendida
Por
fria, pesada mão
De
remorso insubjugado,
Lhe
voltou ao coração
A
lacerar-lho, a vingar-se
Da
malsofrida opressão.
XV
–
“Ouvi-me, senhor, culpada
Sou
eu só...” a triste esposa
Lhe
diz, mas não ouve nada
Aquela
alma furiosa,
Já
neste mundo ralada
De
quanta pena horrorosa
No
inferno está guardada
Para
crimes como o seu.
XVI
Parte;
corre; – o brado horrível
Por
todo o castelo soa
Tão
medonho como troa
Medonho
trovão de outono
Despertos
do brando sono
Todos
são: – ordem que deu.
São
tais, que de horror tremeu
A
gente absorta pasmada.
Tristemente
obedecendo,
Com
a face ao chão inclinada
Se
vão a medo, e mal crendo
Que
não seja sonho vão
O
que ouvindo e vendo estão.
XVII
Do
castelo para um lado
Uma
antiga torre havia
Cercada
de largos fossos,
Que
é memória haver fundado
Um
rei mouro que vivia
Há
muito, de quando os nossos
Mourisca
gente regia.
Ali
uma esposa sua
Que
ele achou ser-lhe infiel,
Sete
anos e mais um dia
Fechada
a teve o cruel,
Sozinha,
a grilhões e nua;
E
só pão seco lhe dava,
Mas
água não consentia
Que
nunca ninguém lha desse
Para
que à sede morresse.
Valeu-lhe
quem tudo pode,
Que
ao infeliz sempre acode:
Vinha-lhe
orvalho do céu,
De
que os sete anos bebeu
E
enfim o sétimo ano
De
tal milagre vencido
Foi
o próprio rei tirano,
Que
a liberdade lhe deu,
E
do crime cometido,
Se
o havia, se esqueceu.
XVIII
Para
esta torre deserta,
No
verão ao sol exposta,
Que
abrasado a queima e tosta,
No
rigor do inverno aberta
A
chuvas, à ventania,
Sisnando
– quem tal diria!
Mandou
a filhinha linda,
Que
ali fechada gemesse,
A
virtuosa Adozinda!...
E
ai de quem água lhe desse,
Lhe
desse vestido ou cama,
Que
da sede à morte crua
–
Qual o mouro a sua dama
–
Ali quer que morra nua,
De
todos desamparada,
De
seu pai amaldiçoada,
Só
da triste mãe chorada!
XIX
Sem
dar somente um gemido,
Sem
se carpir, nem queixar,
Como
a ovelhinha tremente
Que
sem dar nem um balido
Se
deixa à morte levar,
Vai
Adozinda inocente
Para
aquela feia torre.
Pranto
que furtivo corre
De
quantos olhos a viam,
A
acompanha tristemente,
E
o pai!... Ânsias que o remordem
Ninguém
as sabe nem vê.
Num
aposento encerrado,
Onde
nem do mais privado
Concedido
é meter pé,
Só
ficou, só permanece:
Só!
– antes acompanhado
De
quem os seus não esquece
Do
remorso, – do pecado.
CANTIGA
QUARTA
You do me wrong, to take me out o'the grave:
– Thou art a soul of bliss: but I am hound
Upon a wheel of fire, that mine own tears
Do scald like molten lead.
Shakespeare
I
Sete
anos e um dia
Foi
a sentença cruel
Que
Adozinda cumpriria
Naquela
torre fechada.
E
o tirano bem sabia
Que
nem três dias somente
Viver
podia a inocente
Com
a sede, a desnudez.
Uma
semana é passada
Passado
é um mês e outro mês,
Ano
e anos decorreram;
E
os sete anos feneceram
Sem
que Adozinda formosa
Em
tal míngua perecesse,
Sem
que ao menos desmerecesse
Em
seu rosto uma só rosa.
II
Veio
um dia – nesse dia
O
cativeiro acabava
–
No mais alto o sol ardia
E
a terra toda abrasava.
Na
torre uma voz se ouvia,
(E
é esta a primeira vez)
Era
uma voz que pedia,
Que
suplicava piedade:
“Uma
sede, uma só de água,
Uma
só por compaixão,
Que
me abraso nesta frágua,
Que
me estala o coração”.
III
A
voz de Adozinda bela
Todos
clara conheceram;
Com
os olhos na alta janela
De
toda a parte correram:
–
“Vive, inda vive! bradavam,
A
inocente! vinde vê-la.”
E
uns aos outros recontavam
Das
virtudes, da paciência
Daquele
anjo de inocência
Que,
há muito, morta julgavam.
Outra
vez se torna a ouvir
O
mesmo clamor sair
Da
torreada prisão:
–
“Uma sede, uma só de água,
Uma
só por compaixão,
Que
me abraso nesta frágua,
Que
me estala o coração?”
IV
A
todos se comoveu
O
mais íntimo do peito,
Mas
não ousam a afrontar
Do
pai o sevo despeito.
–
“Tem paciência, anjo do céu!”
Com
lágrimas responderam
“Que
já não pode tardar
O
pai que te vem soltar.
Os
sete anos decorreram,
O
dia está a acabar;
Sofre
mais este momento,
Que
hoje acaba o teu tormento.”
V
–
“Oh! como hei de eu suportar,
Amigos
meus da minha alma,
Se
a vida sinto acabar,
Sinto
abrasar-me da calma!
Sete
anos me acudiu Deus,
Que
por milagre vivi,
Dava-me
orvalho dos céus,
De
que sete anos bebi.
Do
estio ardentes queimores
No
meu corpo os não senti,
Do
inverno os frios rigores
Também
esses não tremi.
Mas
há três dias que a mão
Do
Senhor me abandonou.
Tudo,
tudo me faltou...
Oh!
tende de mim piedade!
Uma
sede, uma só de água,
Uma
só por compaixão,
Que
me abraso nesta frágua,
Que
me estala o coração!”
–
De novo alto choro ergueram,
Lastimado
pranto gemem;
Mas
de seu tirano tremem,
Só
a chorar se atreveram.
VI
Soa
a nova no castelo,
Vai
correndo em derredor,
De
que por fim fora ouvido
Aquele
anjo sofredor
Soltar
queixoso gemido,
Piedade
enfim suplicar.
Só
a Ausenda, que expirando
No
leito da morte jaz,
Para
que morresse em paz
Vão
a noticia ocultando.
Mas
soube tudo Sisnando,
E
no duro coração
Já
vacila a crueldade, já vislumbra a compaixão:
Dos
secos olhos covados,
Que
inspiravam medo e espanto,
Como
que da mão tocados
De
algum anjo punidor,
Salta
repentino o pranto.
Qual
onda que estala em flor
Sobre
o penedo ouriçado,
Todo
em lágrimas sanguíneas
O
infeliz debulhado,
Para
aquela infausta torre
Com
incerto passo corre
Em
altos gritos bradando:
–
“Água! trazei água, vinde,
Acudi
à desgraçada,
A
uma filha malfadada
Que
por mãos de seu pai morre!”
VII
Assim
correndo e gritando
Chegava
à horrível prisão
Em
que gemia Adozinda:
–
“Filha, filha, é tempo ainda;
Perdão,
á filha, perdão
Para
este algoz...”
–
Cortou-lhe
O
excesso da paixão
Língua
e força; a voz quebrou-lhe,
E
por morto cai no chão.
VIII
Oh!
que povo se ajuntava
No
Castelo de Landim!
E
com que horror que ele olhava
Para
aquele triste fim
De
tamanho cavaleiro
Tão
rico e grande senhor,
Tão
esforçado guerreiro!
A
Ausenda chega o rumor
Do
sucesso inesperado,
Dá–lhe
força e vida amor;
O
fio meio cortado
Da
existência lhe atou.
Ei-la
se ergue, e em mal firmado
Passo
corre – e lá chegou.
IX
E
já por ordem de Ausenda
Com
a porta negra e tremenda
Investem
da torre erguida:
Range
o ferro, os gonzos gemem,
Parece
que já rendida
ai
de todo; – à roda tremem,
Do
fundamento aluída
A
torre, os sólidos muros.
Mas
em vão de centenares
Dos
mais rijos braços duros
Se
movem os instrumentos
Que
em muralhas mais valentes
De
castelos regulares,
De
mais sólidos cimentos
Têm
a miúdo triunfado.
X
Parece
encanto; – será?
O
povo maravilhado já por tal, tremendo, o dá,
Cessam
todos, encantado
É
o negro portão ferrado...
E
o povo desanimado
Da
empresa desiste já.
XI
Arreda,
arreda, infanções,
Cavaleiros,
dai lugar,
Com
licença, nobre dama,
Que
aí vem um santo ermitão:
Com
as suas orações
Este
encanto há de quebrar,
Ou,
se do demônio é trama,
Com
o seu bento condão
Ele
o há de desmanchar.
–
Ei-lo chega: – este semblante
Não
é aqui desconhecido...
Esta
barba, este vestido...
É
ele o mesmo ermitão
Que
a noite de São João
(Não
há dez anos ainda)
No
castelo pernoitou,
Que
Sisnando maltratou,
Mas,
por a bela Adozinda
Pedir
muito, lá ficou.
XII
Com
a cabeça coberta
Do
seu agudo capuz,
Os
olhos de cor incerta.
Pasmados,
fixos... e a luz
Que
deles sai é tão viva
Que
a espaços da vista priva
Quem
de perto os quer fitar!
As
mãos cruzadas rio peito,
Vagaroso
seu andar,
Tão
pesado e de tal jeito
Que
faz um eco tremendo
Quando
os passos vai movendo,
E
como que a terra e o ar,
Com
o peso vão gemendo...
–
Foi seu caminho direito
Da
torre à porta ferrada;
Sem
atender a mais nada,
Sem
olhar nem para Ausenda,
Que
em lágrimas debulhada
Súplices
mãos lhe estendia,
Chega
à porta, e em voz horrenda
–
“Abre-te!” – disse. Estalou
O
ferro medonhamente,
E
a porta se escancarou;
–
Mas ele subitamente,
Voltando-se
para a turba,
Que
alto alarido alevanta
E
em redor se perturba,
Com
gesto que aos mais ousados
Todo
o ânimo quebranta:
–
“Emudecei!” – lhes bradou.
Ficaram
todos calados;
E
– emudecei – revibrou
De
ecos em ecos dobrados
Pelo
castelo e jardim;
Pelos
soutos ao redor,
Pelos
campos dilatados
Que
a Dom Sisnando obedecem
E
por senhor reconhecem
Ao
rico-homem de Landim.
–
Depois estendendo a mão
Ao
lugar onde jazia
Por
morto no frio chão
O
desgraçado Sisnando,
Estas
palavras dizia
Que
em rouco som vão soando:
–
“Eu te esconjuro,
Alma
perdida,
Volta-te
à vida!”
“Que
o teu pecado,
Abominado
Do
próprio inferno,
Só
tem perdão
Com
longa vida
De
penitência,
De
contrição,
Que
a alma perdida
Salve
do inferno,
Da
maldição.
“Eu
te esconjuro,
Alma
perdida,
Volta-te
à vida!
“O
anjo celeste
Na
hora última
Te
perdoou,
E
ao Pai Eterno
A
tua vítima
Por
ti rogou.
“Lázaro
imundo,
Nesta
grande hora
Volve-te
à vida,
Vem,
surge fora!”
XIII
Em
pé esta Dom Sisnando:
Vivo
está, morto parece,
Tão
negro véu lhe enoitece
O
verde-pálido rosto,
Onde
o seu selo já posto
Tinha
o arcanjo da morte.
XIV
De
joelhos o ermitão,
Com
a cabeça coberta,
À
porta da torre aberta
Faz
breve e baixa oração
Eis
violento repelão
A
terra, tremendo, deu.
E
de alto abaixo a muralha
Largamente
se fendeu.
Viram
todos claramente
O
interior patente
Em
que jazia Adozinda,
Donde
há poucas horas inda
Sua
voz se ouviu chamar.
E
por uma sede de água
Ao
seu algoz suplicar.
XV
Num
leito de frescas rosas,
Que
aromas do céu recendem
Morta
Adozinda jazia:
Suas
feições mais formosas,
Mais
angélicas resplendem.
Uma
suave harmonia
Tão
brandamente soava,
Que
ao coração parecia
Que
por piedade o afagava
A
quem saudoso gemia.
–
A alva frente, não tocada
Pela
mão da morte lívida,
De
lírios do céu coroada
Brilhava
com luz tão vivida
Que
parecia toucada
De
puros raios do Sol
As
mãos postas sobre o peito
Para
o céu se alevantavam,
E
como que de alma justa
Para
a morada apontavam.
XVI
Oh!
que vista, oh! que momento
Para
a triste mãe! – Faltava
Só
este último tormento.
A
malfadada cuidava
Que
nenhum padecimento
Para
gemer lhe sobrava!
Era
este. – E a dor ignora,
Não
sabe o que é padecer
Quem
o filhinho que adora
Não
viu ainda morrer...
XVII
Levantou-se
o Ermitão
E
bradou: – “Ajoelhemos,
E
a mão de Deus adoremos.”
Submissa
resignação
Pode
a voz tolher à dor,
Não
tira do coração
Seu
espinho pungidor,
Que
em silêncio é mais cruel,
Rasga
mais e na ferida
Mais
acre derrama-o fel.
A
paciência sofrida
Da
triste Ausenda cedeu;
Não
exclamou, não gemeu,
E
em tributo de respeito
Sua
mágoa fechou rio peito.
XVIII
E
Sisnando? – O desgraçado
No
pó da terra humilhado,
Só
lhe conhece a vida
Na
agitação comprimida
Do
convulso soluçar.
XIX
Para
a ermida do castelo
Enfim
o corpo levaram
E
num cofre de ouro fino
Como
relíquia o guardaram.
–
Muito a não carpiu Ausenda,
Que
a morte compadecida
Cedo
a libertou da vida.
Porém
a longa existência
De
remorso e penitência
Sisnando
foi condenado:
Coberto
de horror e opróbrio
Cumpriu
seu mesquinho fado;
Onde?
– Ninguém mais o soube
Do
castelo aquela noite
Com
o Ermitão se sumiu:
Nunca
mais dele se ouviu.
Mas
à meia-noite em ponto
Na
capela de Landim
Se
ficou sempre escutando
Gemer
uma voz medonha,
Que
pede perdão bradando;
E
essa voz diziam todos
Que
era a voz de Dom Sisnando.
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