De Adolfo Caminha são conhecidos
apenas os romances “A Normalista” e “Bom Crioulo”, ambos reeditados ainda há
uns quatro ou cinco anos. Mas “Tentação”, publicado em 1896, depois daqueles
dois livros, é raridade bibliográfica. Lúcia Miguel Pereira, na sua “História
da Literatura Brasileira”, limita-se a uma ligeira referência, considerando-o
obra secundária, e apenas Saboia Ribeiro no “Roteiro de Adolfo Caminha” (1957)
dedica-lhe quatro páginas, resumindo-lhe o enredo e fazendo-lhe uma rápida apreciação.
Atribui-lhe muito acertadamente um “incontestável valor documental”,
acrescentando que não sendo um livro romântico não possui, no entanto,
passagens proibidas. Chega a ver nele um teste de Adolfo Caminha para mostrar
“que as mesmas mãos que tinham escrito o “Bom Crioulo” também podiam escrever
um quase inocente livro de amores burgueses”. Creio que Saboia Ribeiro usou
lentes muito róseas para distinguir no esforço de sedução exercido por Furtado sobre
Adelaide, a esposa do amigo íntimo, naquele beijo que ele lhe roubou e na
ligação adúltera de D. Branca com o Visconde de Santa Quitéria apenas
“inocentes amores burgueses”. Evidentemente, “Tentação” não encerra as cenas eróticas,
descritas com todo rigor da técnica naturalista na “Normalista” e no “Bom
Crioulo”, mas não chega a ser um romance para menores de dezoito anos, segundo
a classificação adotada no teatro e no cinema.
Tomando, porém, a deixa de Saboia
Ribeiro, quando diz não tratar-se de um livro romântico, quero tecer aqui
alguns comentários em torno de “Tentação”. É que, no fundo o enredo dessa obra
me parece justamente inspirar-se numa ideia romântica, que esteve muito em voga
nos fins do século passado: o da superioridade da vida rural sobre a vida
urbana e da província sobre a metrópole. Já me referi detalhadamente a essa ideia,
quando num artigo publicado alhures, em que estabeleci um paralelo entre o
romance “A Capital Federal”, de Coelho Neto e a comédia-burleta do mesmo título
de Artur Azevedo, mostrando a semelhança dos temas de ambos. Pois “Tentação”, guardadas
certas distâncias, pode ser colocada na mesma linha. Eis, em duas palavras, o
enredo. Casando-se, depois de formado em Direito, Evaristo vai viver em
Coqueiros, um recanto de província do Ceará. Inconformado com aquela existência
mesquinha e sem horizontes, resolve, abalar para a Corte, prevalecendo-se das facilidades
que lhe faculta o amigo íntimo e ex-condiscípulo, Luís Furtado. Na Corte,
depois da emoção da chegada, começam logo as decepções. Tanto Evaristo como a
esposa vão sentindo o artificialismo do meio, os recursos de que seria preciso valer-se
para impor-se na sociedade, a hipocrisia e o cabotinismo reinantes por toda
parte. Tornava-se necessário, no entanto, adaptar-se à nova vida; ninguém
conseguia progredir num recanto de província. E num piquenique promovido por Furtado
no Jardim Botânico, Adelaide é surpreendida pela audácia do amigo do marido
que, depois de uma declaração indireta, rouba-lhe um beijo. Mulher honesta,
sente-se com forças para reagir; mas os dias vão passando, o sedutor, embora
com cautela, continua a assediá-la e ela só vê um meio para fugir ao cerco:
propor ao marido o regresso à província. Nessa altura, Evaristo já farto dos
engodos falazes da metrópole e indisposto com o amigo, também não alimenta outra
ideia senão a de procurar o retiro provinciano de Coqueiros, onde não havia
tanta maldade e os espera a preta velha Balbina, fiel e amorosa, por eles tão
ingratamente abandonada.
A ideia romântica a que aludimos
está aí perfeitamente configurada. E como no romance de Coelho Neto, publicado
em 1894 e na peça de Artur Azevedo, em 1897, ambos mais ou menos da mesma
época, em que apareceu o livro de Caminha, o tema pode ser caracterizado no
seguinte esquema: sedução da metrópole, desilusão e regresso à província.
Não obstante, distinguimos um
traço naturalista do romance do escritor cearense. A pressão do ambiente sobre
Adelaide, procurando levá-la ao
adultério lembra a conhecida
teoria zolesca, segundo a qual o procedimento dos personagens resultava das
tendências hereditárias somadas com as influências do meio social. Se o autor não
nos esclarece sobre os ascendentes de Adelaide, dá-nos a entender que ela
conseguiu resistir à tentação do adultério, porque era uma criatura pura, sem nenhuma
inclinação viciosa. Mesmo assim lhe atribuiu o desabafo de um ataque histérico,
no momento, em que ficando decidido o regresso à província da esposa de
Evaristo, compreendera que jamais veria o homem que lhe perturbara os sentidos.
Eis, portanto, como a ideia romântica do tema prevalece em função de uma
coordenada naturalista.
Saboia Ribeiro, considera, com
muita razão, a “Normalista” um ajuste de contas de Adolfo Caminha com o meio
cearense: o ambiente provinciano de Fortaleza que tanto se escandalizara,quando
ele tivera a ousadia de afrontá-lo, unindo-se livremente a uma mulher casada.
Sim, podem os dizer, sem exagero, que a “Normalista” é um romance escrito
contra a província, em que Fortaleza aparece como um antro de maledicência e
coscovelhice, dominado peio preconceito e onde quase somente destacamos
criaturas mesquinhas e sem beleza moral. Em “Tentação”, Adolfo Caminha fez
justamente o contrário: fez a apologia da província: Coqueiros é um lugarejo
nos arredores de Fortaleza, como se depreende do texto do romance. Devemos
admitir que “Tentação” tenha sido escrito antes de “A Normalista", e
portanto antes do fato que provocou a repulsa do Caminha pelo meio cearense?
Saboia Ribeiro, autor da mais
detalhada biografia do romancista até agora escrita, nada nos adianta nesse
sentido. Mas de algumas das “Cartas Literárias” de Caminha e mesmo de alguns dos
seus contos inéditos, que tivemos ocasião de ler, podemos concluir de que ele
não experimentara nenhuma simpatia pelo meio literário do Rio, onde os “novos”
recém-chegados da província eram sempre hostilizados pelos “donos” da rua do
Ouvidor. Assim aconteceu com Sílvio Romero: assim teria acontecido com o autor
da “Normalista”. O não-conformismo, a índole rebelde e independente de Caminha,
que concorria para torná-lo tão pouco feliz na província, como na metrópole, devia
levá-lo a voltar suas armas contra ambas. Ou talvez, depois de abandonar
Fortaleza, sentisse ele que o Rio era, apesar de tudo, muito pior do que a
província.
A intenção de sátira na pintura
de vários tipos da Corte, em “Tentação”, deixa transparecer o ressentimento do
escritor. Sob esse aspecto é deliciosa a caricatura de Valentim Magalhães na figura
burlesca de Valdemiro Manhães, ou o “Dr. Condicional”, “Baixo, pequenino,
metidinho a crítico, um bigodinho quase imperceptível, sempre de lunetas — era
conhecido por Dr. Condicional, porque
nunca dizia as coisas em tom afirmativo: tinha sempre um mas..., um talvez..., um se..., quando criticava as obras
alheias”.
Adolfo Caminha, como, aliás,
vários escritores na época, devia razões de queixas de Valentim Magalhães para
caricaturá-lo impiedosamente. Nas “Cartas Literárias” já lhe atirara algumas
farpas. E Valentim por seu lado lhe pagava na mesma moeda. Se nas conferências
que realizara em Portugal em 1894, sobre a literatura brasileira, não deixara
de citar Caminha — então estreante, apenas com o romance “A Normalista” julgando-o
o verdadeiro continuador de Aluísio de Azevedo, mais tarde, em artigos na
“Notícia”, passara a hostilizá-lo com frequência.
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BRITO BROCA
BRITO BROCA
Revista Leitura,
setembro de 1959.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2020)
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