I
Tarde triste e
silenciosa
De vila de beira-mar:
Uma tarde cor-de-rosa
Que vai morrendo em
luar...
Ao longe, a várzea
cintila
De uns restos de sol
poente:
Mas, por sobre toda a
vila
— Do morro a que fica
rente
Desce uma sombra
tranquila —
E anoitece
lentamente.
Não aparece viv’alma.
Nem rumor da
natureza,
Nem eco de voz humana
Perturba a infinita
calma,
A solitária tristeza
Da pobre vila
praiana.
Nem se ouve o mar,
longe, e manso.
A tudo, em redor,
invade
Um ar de mole
descanso...
Silêncio...
Imobilidade...
Como que,
interrompida,
A correnteza da vida
Fez neste ponto um
remanso.
De súbito, rumoreja
Violentamente o ar:
Na torrezinha da
igreja
Rompe o sino a
badalar.
Ponho-me atento, a
escutá-lo:
Que diz, alto e
repentino,
Esse bater de um
badalo
Num sino?
Badalo que assim
badalas
No sino que assim
ressoa,
Aves, já nenhuma voa:
Dormem: e vais
acordá-las
À toa...
Vais espantar quanta
moça
Aí pelos arredores
Depois de um dia de
roça,
De enxada e de
soalheira,
Dedica a tarde
ligeira
A tarefas bem
melhores;
Pelas discretas
beiradas
De alguma fonte;
fiadas
Na proteção pitoresca
De ramagens, folhas,
flores;
Que fazem elas?
Coitadas,
Bebem, nas mãos, água
fresca...
Lavam as caras
tostadas...
Ou cuidam dos seus
amores...
Badalo que assim
badalas
No sino que assim
ressoa,
Olha que vais
espantá-las
À toa...
Badalas... E eu que
te falo
Não sei e nem imagino
Que pretendes tu,
badalo,
A bater, bater no
sino.
Talvez convoques à
ceia
Pescadores que,
lidando,
Nem viram que
entardeceu;
Algum se estendeu na
areia
A descansar; senão
quando,
De cansado
adormeceu...
Badala-me assim,
badala:
Esperta este
dorminhoco;
Que ou ele,
acordando, abala,
Ou fica dormindo — e
em troco
Da sua madraçaria,
Chegando à casa
atrasado
Acha no fogo apagado
A caldeirada já fria.
Badalo que assim
badalas
No sino que assim
atroa,
Porque é que tão alto
falas
À toa?
A andar com menos
demora
Talvez tua voz
compila
Certo rei dos
mandriões
Encarregado em má
hora
De, nas três ruas da
vila,
Acender os
lampiões...
Chamas, talvez, ao
seu posto...
Quem? algum
camaroeiro
Retardado e mal
disposto
A seguir para o
pesqueiro?
Badala-lhe que é sol
posto,
Que a luz cheia está
fora,
Que, com pequena demora,
Vai a maré a vazar:
Para chegar à
costeira
Tem ele uma légua
inteira
De caminho a
caminhar,
Vencendo-a de combro
em combro,
De atoleiro em
atoleiro,
Com o remo e o puçá
no ombro
E, na mão, o
candeeiro...
Ruidoso sino da vila!
E é por coisas tão vulgares
Que atroas assim os
ares
De uma tarde tão
tranquila?
II
Badalo que assim
badalas...
Que voz de repente
soa
Acompanhando-te as
falas
À toa?
É voz de gente que
canta...
De gente... E parece
tanta.
Da humilde igreja
irradia
E para o céu se alevanta
A reza da Ave, Maria.
As vozes e as
badaladas
Confundem-se...
Misturadas
No fervor da mesma
prece,
Sobem juntas para o
ar
Onde a lua
resplandece
E a noite, imensa,
parece
Feita do alvor do
luar...
Sobre a soleira da
porta
Da casa pegada à
minha,
Vejo sentada a
vizinha:
Moça, e bonita... Que
importa?
Tem nos braços o
filhinho;
Fala-lhe, toda
carinho;
Ele ouve; sorri,
depois,
Responde-lhe,
balbucia...
E, de mãos postas, os
dois
Murmuram a Ave,
Maria.
Ante meus olhos
perpassa
Uma visão: imagino
Maria, cheia de
graça,
Jesus, loiro e
pequenino.
Uma tarde
cor-de-rosa...
Uma vila assim
modesta,
Assim tristonha como
esta...
De pescadores,
também...
Sobre a planície
arenosa
Por onde o Jordão
deriva
Pousa a sombra
evocativa
Das montanhas de
Siquém...
À porta de humilde
choça,
Uma mulher... Quem é
ela?
É pobre... é jovem...
é bela...
E é Mãe: comovida, a
espaços
O seu sorriso se
adoça,
O seu olhar se
ilumina
Para a figura divina
Do filho que tem nos
braços.
Mostra-lhe, à noite
que estrela
O céu e que a terra ensombra,
Como a terra é toda
sombra
Como o céu é todo
luz...
E o filho, enlevado
nela,
Em êxtase balbucia...
A primeira Ave, Maria
Quem a rezou foi
Jesus.
Sigo o meu sonho...
imagino
Que, por todas essas
roças
Aonde chega a voz do
sino,
A sombra triste das
choças
Frouxamente se alumia
Da vela de cera acesa
Ante uma Virgem Maria
Tendo nos braços
Jesus.
É a hora augusta da
reza...
Mães, pobres mães
andrajosas
De filhinhos seminus,
No chão de terra
ajoelhadas,
Dizem coisas
misteriosas,
Palavras entrecortadas
De mágoa que se
lastima,
De súplica, e de
esperança
A essa outra Mãe que,
lá em cima,
Na glória do céu,
descansa
Do que passou neste
mundo.
Ela que, com o mesmo
eterno
Requinte do amor
materno,
Sorriu a Jesus
criança,
Chorou Jesus
moribundo,
Lá, do alto céu
infinito,
Olha com olhos de
Santa
E de Mãe que já
sofreu
Tanto coração aflito
Que se volta para o
seu.
Na roça a miséria é
tanta...
Quanta pobre gente,
quanta,
Expia o ser mal
nascida
Cumprindo a pena da
vida
Como pregada a uma
cruz;
E, na angústia que a
quebranta,
Somente espera e
antegoza
A proteção milagrosa
Da virgem Mãe de
Jesus!...
Na roça a miséria é
tanta...
E cada choça sombria
Para o claro céu
levanta
A reza da Ave, Maria.
Não, tu não falas à
toa;
Errei, confesso-o...
Perdoa,
Ó sino humilde da
vila,
Que assim badalas,
badalas,
Na paz da tarde
tranquila;
Ó sino, que também
rezas,
Ó sino, que tanto
falas
À terra, toda
asperezas,
Como ao céu, todo
luar,
Chamando, com o mesmo
zelo,
Cada infeliz — a
rezar,
Nossa Senhora — a
atendê-lo.
Consolador de
tristezas!
Semeador de
esperanças!
Aqui nestas
redondezas
Não há vida tão
bonanças
Nem casebre tão
remoto
Onde quanto o sino
diz
Não abençoe um
devoto,
Não console um
infeliz...
Por essas várzeas tão
ermas
Onde, perdidas e sós,
Há tantas almas
enfermas
De desesperos sem
voz,
Onde tanto desdenhado
De Deus, que decerto
o olvida,
Vive, até morrer,
vergado
Ao pêso da própria
vida,
Vais chamar, em altos
gritos
— Como se fosse a um
dever —
Desamparados e
aflitos
— Para o consolo de
crer.
E de casebre em
casebre
Onde gente, a vida
inteira,
Vive de trabalho e
febre,
Morre de fome e
canseira,
Afirmas à angústia
surda
Do mísero tabaréu
Que o brejo em que
ele chafurda
— É um caminho para o
céu.
A cada pobre praiano
Que, na sua dura lida
De afrontar o largo
oceano,
Vive de arriscar a
vida.
Tu, consoladoramente,
Falas para lhe
lembrar
Que há quem reze por
a gente
— E há céu por cima
do mar...
Da mesma igreja
alvadia
Evolam-se as
badaladas
E a reza da Ave,
Maria.
Evolam-se...Misturadas,
Sobem juntas para o
ar
Onde, pálida e
sozinha
Tão alva, que
resplandece,
Tão só, que vai a
sonhar,
Caminha a lua,
caminha,
E o céu, imenso,
parece
Feito de sonho e
luar...
Humilde sino da vila,
Que assim badalas,
badalas,
Na paz da tarde
tranquila;
Não, tu não falas à
toa
Não, tu não falas à
toa:
Percebo o que a quem
falas,
Perdoa!
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