A CRISTÃ-NOVA
...essa mesma
foi levada
cativa para uma
terra estranha.
NAUM, CAP. III, V. 10.
PRIMEIRA PARTE
I
Olhos fitos no céu, sentado à
porta,
O velho pai estava. Um luar
frouxo
Vinha beijar-lhe a veneranda
barba
Alva e longa, que o peito lhe
cobria,
Como a névoa na encosta da
montanha
Ao destoucar da aurora. Alta
ia a noite,
E silenciosa: a praia era
deserta,
Ouvia-se o bater pausado e
longo
Da sonolenta vaga, — único e
triste
Som que a mudez quebrava à
natureza.
II
Assim talvez nas solidões
sombrias
Da velha Palestina
Um profeta no espírito
volvera
As desgraças da pátria. Quão
remota
Aquela de seus pais sagrada
terra,
Quão diferente desta em que
há vivido
Os seus dias melhores! Vago e
doce,
Este luar não alumia os
serros
Estéreis, nem as últimas
ruínas,
Nem as ermas planícies, nem
aquele
Morno silêncio da região que
fora
E que a história de todo
amortalhara.
Ó torrentes antigas! águas
santas
De Cedron! Já talvez o sol
que passa,
E vê nascer e vê morrer as
flores,
Todas no leito vos secou,
enquanto
Estas murmuram plácidas e
cheias,
E vão contando às deleitosas
praias
Esperanças futuras. Longo e
longo
O devolver dos séculos
Será, primeiro que a memória
do homem
Teça a mortalha fria
Da região que inda tinge o
albor da aurora.
III
Talvez, talvez no espírito
fechado
Do ancião vagueavam
lentamente
Estas ideias tristes. Junto à
praia
Era a austera mansão, donde
se via
Desenrolarem-se as serenas
vagas
Do nosso golfo azul. Não a
enfeitavam
As galas da opulência, nem os
olhos
Entristecia coo medonho
aspecto
Da miséria; não pródiga nem
surda
A fortuna lhe fora, mas
aquela
Mediana sóbria, que os desejos
Contenta do filósofo, lhe
havia
Dourado os tetos. Guanabara
ainda
Não era a flor aberta
Da nossa idade; era botão
apenas,
Que rompia do hastil, nascido
à beira
De suas ondas mansas. Simples
e rude,
Ia brotando a juvenil cidade,
Nestas incultas terras, que a
lembrança
Recordava talvez do antigo
povo,
E o guau alegre, e as
ríspidas pelejas,
Toda essa vida que morreu.
IV
Sentada
Aos pés do velho estava a
amada filha,
Bela como a açucena dos
Cantares,
Como a rosa dos campos. A
cabeça
Nos joelhos do pai reclina a
moça,
E deixa resvalar o pensamento
Rio abaixo das longas
esperanças
E namorados sonhos. Negros
olhos
Por entre os mal fechados
Cílios estende à serra que
recorta
Ao longe o céu. Morena é a
face linda
E levemente pálida. Mais
bela,
Nem mais suave era a formosa
Rute
Ante o rico Booz, do que essa
virgem,
Flor que Israel brotou do
antigo tronco,
Corada ao sol da juvenil
América.
V
Mudos viam correr aquelas
horas
Da noite, os dois: ele
voltando o rosto
Ao passado, ela os olhos ao
futuro.
Cansam-lhe enfim ao
pensamento as asas
De ir voando, através da
espessa treva,
Frouxas as colhe, e desce ao
campo exíguo
Da realidade. A delicada
virgem
Primeiro volve a si; os
lindos dedos
Corre-lhe ao longo da nevada
barba,
E: “— Pai amigo, que pensar
vos leva
Tão longe a alma?”
Estremecendo o velho:
— “Curiosa! — lhe disse, — o
pensamento
É como as aves passageiras:
voa
A buscar melhor clima. —
Oposto rumo
Ias tu, alma em flor, aberta
apenas,
Tão longe ainda do calor da
sesta,
Tão remota da noite... Uma
esperança
Te sorria talvez? Talvez,
quem sabe,
Uns namorados olhos que me
roubem,
Que te levem... Não cores,
filha minha!
Esquecimento, não; lembrança
ao menos
Ficar-te-á do paterno afeto;
e um dia,
Quando eu na terra descansar
meus ossos,
Haverás doce bálsamo no seio
Da afeição juvenil... Sim;
não te acuso;
Ama: é a lei da natureza,
eterna!
Ama: um homem será da nossa
raça...”
VI
Estas palavras tais ouvindo a
moça,
Turbada os olhos descaiu na
terra,
E algum tempo ficou calada e
triste,
Como no azul do céu o astro
da noite,
Se uma nuvem lhe empana a
meio a face.
Súbito a voz e o rosto
alevantando,
Com dissimulação, — pecado
embora,
Mas inocente: — “Olhai, a
noite é linda!
O vento encrespa molemente as
ondas,
E o céu é todo azul e todo
estrelas!
Formosa, oh! quão formosa a
terra minha!
Dizei: além desses compridos
serros,
Além daquele mar, à orla de
outros,
Outras como esta vivem?”
VII
Fresca e pura
Era-lhe a voz, voz d’alma que
sabia
Entrar no coração paterno. A
fronte
Inclina o velho sobre o rosto
amado
De Ângela. — Na cabeça ósculo
santo
Imprime à filha; e
suspirando, os olhos
Melancolicamente ao ar
levanta,
Desce-os e assim murmura:
“Vaso é digno de ti, lírio
dos vales,
Terra solene e bela. A
natureza
Aqui pomposa, compassiva e
grande,
No regaço recebe a alma que
chora
E o coração que túmido
suspira.
Contudo, a sombra pesarosa e
errante
Do povo que acabou pranteia
ainda
Ao longo das areias,
Onde o mar bate, ou no
cerrado bosque
Inda povoado das relíquias
suas,
Que o nome de Tupã confessar
podem
No próprio templo augusto.
Última e forte
Consolação é esta do vencido
Que viu tudo perder-se no
passado,
E único salva do naufrágio
imenso
O seu Deus. Pátria não. Uma
há na terra
Que eu nunca vi... Hoje é
ruína tudo,
E viuvez e morte. Um tempo,
entanto,
Bela e forte ela foi; mas
longe, longe
Os dias vão da fortaleza e
glória
Escoados de todo como as
águas
Que não volvem jamais. Óleo
que a unge,
Finas telas que a vestem,
atavios
De ouro e prata que o colo e
os braços lhe ornam,
E a flor de trigo e mel de
que se nutre,
Sonhos, são sonhos do
profeta. É morta
Jerusalém! Oh! quem lhe dera
os dias
Da passada grandeza, quando a
planta
Da senhora das gentes sobre o
peito
Pousava dos vencidos, quando
o nome
Do que há salvo Israel,
Moisés”.
“— Não! Cristo,
Filho de Deus! Só ele há
salvo os homens!”
Isto dizendo, a delicada
virgem
As mãos postas ergueu. Uma
palavra
Não disse mais; no coração,
entanto,
Murmurava uma prece silenciosa,
Ardente e viva, como a fé que
a anima
Ou como a luz da alâmpada
A que não faltou óleo.
VIII
Taciturno
Esteve longo tempo o ancião.
Aquela
Alma infeliz nem toda era de
Cristo
Nem toda de Moisés; ouvia
atento
A palavra da Lei, como nos
dias
Do eleito povo; mas a doce
nota
Do Evangelho não raro lhe
batia
No alvoroçado peito,
Soleníssima e pura...
Descambava
No entanto a lua. A noite era
mais linda,
E mais augusta a solidão. Na
alcova
Entre a pálida moça. Da
parede
Um Cristo pende; ela os
joelhos dobra,
Os dedos cruza e reza, — não
serena,
Nem alegre também, como
costuma,
Mas a tremer-lhe nos formosos
olhos
Uma lágrima.
IX
A lâmpada acendida
Sobre a mesa do velho, as
largas folhas
Alumia de um livro. O máximo
era
Dos livros todos. A escolhida
lauda
Era a do canto dos cativos
que iam
Pelas ribas do Eufrates,
relembrando
As desgraças da pátria. A
sós, com eles,
Suspira o velho aquele salmo
antigo:
Junto os rios da terra
amaldiçoada
De Babilônia, um dia nos
sentamos,
Com saudades de Sião amada.
As harpas nos salgueiros
penduramos,
E ao relembrarmos os extintos
dias
As lágrimas dos olhos
desatamos.
Os que nos davam cruas
agonias
De cativeiro, ali nos
perguntavam
Pelas nossas antigas
harmonias.
E dizíamos nós aos que
falavam:
“Como em terra de exílio
amargo e duro
Cantar os hinos que ao Senhor
louvavam?”
Jerusalém, se inda num sol
futuro,
Eu desviar de ti meu
pensamento
E teu nome entregar a olvido
escuro,
A minha destra a frio
esquecimento
Votada seja; apegue-se à
garganta
Esta língua infiel, se um só
momento
Me não lembrar de ti, se a
grande e santa
Jerusalém não for minha
alegria
Melhor no meio de miséria
tanta.
Oh! lembra-lhes, Senhor,
aquele dia
Da abatida Sião, lembra-lho
aos duros
Filhos de Edom, e à voz que
ali dizia:
"Arruinai-a, arruinai-a;
os muros
Arrasemo-los todos; só lhe
baste
Um montão de destroços mal
seguros.”
Filha de Babilônia, que
pecaste,
Abençoado o que se houver
contigo
Com a mesma opressão que nos
mostraste!
Abençoado o bárbaro inimigo
Que os tenros filhos teus às
mãos tomando,
Os for, por teu justíssimo
castigo,
Contra um duro penedo
esmigalhando!
PARTE II
I
Era naquela doce e amável
hora
Em que vem branqueando a alva
celeste,
Quando parece que remoça a
vida
E toda se espreguiça a
natureza.
Alva neblina que espalhara a
noite
Frouxamente nos ares se
dissolve,
Como de uns olhos tristes
Foge coo tempo a já ligeira
sombra
De consoladas mágoas. Vida é
tudo.
E pompa e graça natural da
terra,
Mas que não seja no ermo,
Onde seus olhos rútilos
espraia
Livres a aurora, sem tocar
vestígios
De obras caducas do homem,
onde as águas
Do rio bebe a fugitiva corça,
Vivo aroma nos ares se
difunde,
E aves, e aves de infinitas
cores
Voando vão e revoando tornam,
Inda senhoras da amplidão que
é sua.
Donde as há de fugir o homem
um dia
Quando a agreste solidão
entrar o passo
Criador que derruba. Já de
todo
Nado era o sol; e à viva luz
que inunda
Estes meus pátrios morros e
estas praias,
Sorrindo a terra moça
Noiva parece que o virgíneo
seio
Entrega ao beijo nupcial do
amado.
E há de os fúnebres véus
lançar a morte
Na verdura do campo? A
natureza
A nota vibrará da extrema
angústia
Neste festivo cântico de
graças
Ao sol que nasce, ao Criador
que o envia,
Como renovação de juventude?
II
Coava o sol pela miúda e fina
Gelosia da alcova em que se
apresta
A recente cristã. Singelas
roupas
Traja da ingênua cor que a
natureza
Pintou nas plumas que
primeiro brota
O seu pátrio guará. Vínculo
frouxo
Mal lhe segura a luzidia
trança,
Como ao desdém lançada
Sobre a espádua gentil. Joia
nenhuma,
Mais que seus olhos meigos, e
essa doce
Modéstia natural, encanto,
enlevo,
Casta flor que aborrece os
mimos do horto,
E ama livre nascer no campo,
à larga,
Rústica, mas formosa. Não lhe
ensombram
As tristezas da véspera o
semblante,
Nem da secreta lágrima na
face
Ficou vestígio, — Descuidosa
e alegre,
Ri-se, murmura uma cantiga,
ou pensa,
E repete baixinho um nome...
Oh! se ele
Espreitá-la pudesse ali
risonha,
A sós consigo, entre o seu
Cristo e as flores
Colhidas ao tombar da extinta
noite,
E vicejantes inda!
III
De repente,
Aos ouvidos da moça enamorada
Chega um surdo rumor de
soltas vozes,
Que ora crescendo vai, ora se
apaga,
Estranho, desusado. Eram...
São eles,
Os franceses, que vêm de
longes praias
A cobiçar a pérola mimosa,
Niterói, na alva-azul concha
nascida
De suas águas recatadas. Rege
O atrevido Duclerc a flor dos
nobres,
Cuja tez branca requeimara o
fogo
Que o vivo sol dos trópicos
dardeja,
E a lufada dos ventos do
oceano.
Cobiçam-te eles, minha terra
amada,
Como quando nas faixas
sempre-verdes
Eras envolta; e rude, inda
que belo,
O aspecto havias que poliu
mais tarde
A clara mão do tempo. Inda
repetem
Os ecos do recôncavo os suspiros
Dos que vieram a buscar a
morte,
E a receberam dos varões
possantes
Companheiros de Estácio. A
todos eles,
Prole de Luso ou geração da
Gália,
Cativara-os a náiade
escondida,
E o sol os viu travados nessa
longa
E sangrenta porfia, cujo
prêmio
Era teu verde, cândido
regaço.
Triunfara o trabuco lusitano
Naquele extinto século.
Vencido,
O pavilhão francês volvera à
pátria,
Pela água arrastando o longo
crepe
De suas tristes, mortas
esperanças,
Que vento novo o desfraldou
nos ares?
IV
Ângela ouvira as vozes da
cidade,
As vozes do furor. Já
receosa,
Trêmula, foge à alcova e se
encaminha
À câmera paterna. Ia
transpondo
A franqueada porta... e para.
O peito
Rompe-lhe quase o coração, —
tamanho
É o palpitar, um palpitar de
gosto,
De surpresa e de susto.
Aqueles olhos,
Aquela graça máscula do
gesto,
Graça e olhos são dele, o
amado noivo,
Que entre os mais homens
elegeu sua alma
Para o vínculo eterno... Sim,
que a morte
Pode arrancar ao seio humano
o alento
Último e derradeiro; os que
deveras
Unidos foram, volverão unidos
A mergulhar na eternidade.
Estava
Junto do velho pai o gentil
moço,
Ele todo agitado, o ancião
sombrio,
Calados ambos. A atitude de
ambos,
O misterioso, gélido
silêncio,
Mais que tudo, a presença
nunca usada
Daquele homem ali, que mal a
espreita
De longe e a furto, nos
instantes breves
Em que lhe é dado vê-la, tudo
à moça
O ânimo abala e o coração
enfia.
V
Mas o tropel de fora avulta e
cresce
E os três acorda. A virgem,
lentamente,
Rosto inclinado ao chão,
transpõe o espaço
Que dos dois a separa... O
tenro colo
Curva ante o pai, e na
enrugada destra
O ósculo imprime, herdada
usança antiga
De filial respeito. As mãos
lhe toma
Enternecido o velho; olhos
com olhos
Alguns instantes rápidos
ficaram,
Até que ele, voltando o rosto
ao moço:
“— Perdoai, — disse, — se o
paterno afeto
Me atou a língua. Vacilar é
justo
Quando à pobre ruína a flor
lhe pedem
Que única lhe nasceu, — única
adorna
A aridez melancólica do
extremo,
Pálido sol... Não protesteis!
Roubá-la,
Arrancá-la aos meus últimos
instantes,
Não o fareis decerto. Pouco
importa
Dês que a metade lhe levais
da vida,
Dês que seu coração, convosco
parte
Afeições minhas. — Ao demais,
o sangue
Que lhe corre nas veias,
condenado,
Nuno, será dos vossos...”
Longo e frio
Olhar estas palavras
acompanha,
Como a arrancar-lhe o
pensamento interno.
A donzela estremece. Nuno o
alento
Recobra e fala: “Puro sangue
é ele,
Se lhe corre nas veias. Tão
mimosa,
Cândida criatura, alma tão
casta,
Inda nascida entre os incréus
da Arábia,
Deus a votara à conversão e à
vida
Dos eleitos do céu. Águas
sagradas
Que a lavaram no berço, já
nas veias
O sangue velho e impuro lhe
trocaram
Pelo sangue de Cristo...”
VI
Neste instante
Cresce o tumulto exterior. A
virgem
Medrosa toda se conchega ao
colo
Do velho pai. “Ouvis? Falai!
é tempo!
Nuno prossegue. Este comum
perigo
Chama os varões à ríspida
batalha;
Com eles vou. Se um galardão,
entanto,
Merecer de meus feitos, não à
pátria
Irei pedi-lo; só de vós o
espero,
Não o melhor, mas o único na
terra,
Que a minha vida...” Rematar
não pôde
Esta palavra. Ao escutar-lhe
a nova
Da iminente peleja
E a decisão de combater por
ela,
Inteiras sente as forças que
se perdem
A donzela, e bem como ao rijo
vento
Inclina o colo o arbusto
Nos braços desmaiou do pai.
Volvida
A si, na palidez do rosto o
velho
Atenta um pouco, e
suspirando: “As armas
Empunhai; combatei; Ângela é
vossa.
Não de mim a havereis: ela a
si mesma
Toda nas vossas mãos se
entrega. Morta
Ou feliz é a escolha; não
vacilo:
Seja feliz, e folgarei com
ela...”
VII
Sobre a fronte dos dois as
mãos impondo,
Ao seio os conchegou, bem
como a tenda
Do patriarca santo agasalhava
O moço Isaac e a delicada
virgem
Que entre os rios nasceu.
Delicioso
E solene era o quadro; mas
solene
E delicioso embora, ia
esvair-se
Qual celeste visão, que
acende a espaços
O ânimo do infeliz. A guerra,
a dura
Necessidade de imolar os
homens,
Por salvar homens, a terrível
guerra
Corta o amoroso vínculo que
os prende
E à moça o riso lhe converte
em lágrimas.
Mísera és tu, pálida flor;
mas sofre
Que o calor deste sol te
acurve o cálix,
Morta, não, nem já murcha, —
mas apenas
Como cansada de queimor do
estio.
Sofre; a tarde virá serena e
branda
A reviver-te o alento; a
fresca noite
Choverá sobre ti piedoso
orvalho
E mais risonha surgirás à
aurora.
VIII
Foge à estância da paz o ardido
moço;
Esperança, fortuna, amor e
pátria
A guerrear o levam. Já nas
veias
O vivo sangue irrequieto
pulsa,
Como ansioso de correr por
ambas,
A bela terra e a suspirada
noiva.
Triste quadro a seus olhos se
apresenta;
Nos femininos rostos vê
pintados
Incerteza e terror; lamentos,
gritos
Soam de entorno. Voam pelas
ruas
Homens de guerra; homens de
paz se aprestam
Para a crua peleja; e, ou
nobre estância,
Ou choupana rasteira, armado
é tudo
Contra a forte invasão. Nem
lá se deixa
Quieto, a sós com Deus, na estreita
cela,
O solitário monge que às
batalhas
Fugiu da vida. O patrimônio
santo
Cumpre salvá-lo. Cruz e
espada empunha,
Deixa a serena região da
prece
E voa ao torvelinho do
combate.
IX
Entre os fortes alunos que
dirige
O ardido Bento, a perfilar-se
corre
Nuno. Estes são os que o
primeiro golpe
Descarregam no atônito
inimigo.
Do militar ofício ignoram
tudo,
De armas não sabem; mas o
brio e a honra
E a lembrança da terra em que
primeiro
Viram a luz, e onde o
perdê-la é doce,
Essa a escola lhes foi. Pasma
o inimigo
Do nobre esforço e galhardia
rara,
Com que inda nos umbrais da
vida que orna
Tanta esperança, tanto sonho
de ouro,
Resolutos a morte encaram,
prestes
A retalhar nas dobras
Da vestidura fúnebre da
pátria
O piedoso lençol que os leve
à campa,
Ou com ela cingir o eterno
louro.
X
Ó mocidade, ó baluarte vivo
Da cara pátria! Já perdida é
ela,
Quando em teu peito
entusiasmo santo
E puro amor se extingue, e
àquele nobre,
Generoso despejo e ardor
antigo
Sucede o frio calcular, e o
torpe
Egoísmo, e quanto há aí no
humano peito,
Que é fruto nosso e podre...
Muitos caem
Mortos ali. Que importa? Vão
seguindo
Avante os bravos, que a
invasão caminha
Implacável e dura, como a
morte,
A pelejar e a destruir.
Tingidas
Ruas de estranho sangue
E sangue nosso, lacerados
membros,
Corpos de que há fugido a
alma cansada,
E o denso fumo e os fúnebres
lamentos,
Quem nessa confusão, miséria
e glória
Conhecerá da juvenil cidade
O aspecto, a vida? Aqui da
infância os dias
Nuno vivera, à vicejante
sombra
Do seu pátrio arvoredo, ao
som das vagas
Que inda batendo vão na amada
areia;
Risos, jogos da verde
meninice,
Esta praia lhe lembra, aquela
pedra,
A mangueira do campo, a tosca
cerca
De espinheiro e de flores
enlaçadas,
A ave que voa, a brisa que
suspira,
Que suspira como ele há suspirado,
Quando rompendo o coração do
peito
Ia-lhe empós dessa visão
divina,
Realidade agora... E há de
perdê-las
Pátria e noiva? Esta ideia
lhe esvoaça
Torva e surda no cérebro do
moço,
E ao contraído espírito
redobra
Ímpeto e forças. Rompe
Por entre a multidão dos
seus, e investe
Contra o duro inimigo; as
balas voam,
E com elas a morte, que não
sabe
Dos escolhidos seus a terra e
o sangue,
E indistintos os toma; ele,
no meio
Daquele horrível turbilhão,
parece
Que a faísca do gênio o leva
e anima,
Que a fortuna o votara à
glória.
XI
Soam
Enfim os gritos de triunfo; e
o peito
Do povo que lutou respira à
larga,
Como ao que, após árdua
subida, chega
Ao cimo da montanha, e ao
longe os olhos
Estende pelo azul dos céus, e
a vida
Bebe nesse ar mais puro.
Farto sangue
A vitória custara; mas, se em
meio
De tanta glória há lágrimas,
soluços,
Gemidos de viuvez, quem os
escuta,
Quem as vê essas lágrimas
choradas
Na multidão da praça que
troveja
E folga e ri? O sacro bronze
que usa
Os fiéis convidar à prece, e
a morte
Do homem pranteia lúgubre e
solene,
Ora festivo canta
O comum regozijo; e pela
aberta
Porta dos templos entra a
frouxo o povo
A agradecer com lágrimas e
vozes
O triunfo, — piedoso instinto
da alma,
Que a Deus levanta o
pensamento e as graças.
XII
Tu, mancebo feliz, tu bravo e
amado,
Voa nas asas rútilas e leves
Da fortuna e do amor. Como ao
indiano,
Que, ao regressar das
porfiadas lutas,
Por estas mesmas regiões
entrava,
A encontrá-lo saía a meiga
esposa,
— A recente cristã, entre
assustada
E jubilosa coroará teus
feitos
Coa melhor das capelas que
hão pousado
Em fronte de varão, — um doce
e longo
Olhar que inteiro encerra a
alma que chora
De gosto e vida! Voa o moço à
estância
Do ancião; e ao pôr na
suspirada porta
Olhos que traz famintos de
encontrá-la,
Frio terror lhe empece os
membros. Frouxo
Ia o sol transmontando; lenta
a vaga
Melancolicamente ali gemia,
E todo o ar parecia arfar de
morte.
Qual se pálida a vira, já
cerrados
Os desmaiados olhos,
Frios os doces lábios
Cansados de pedir aos céus
por ele,
Nuno estacara; e pelo rosto
em fio
O suor lhe caiu da extrema
angústia;
Longo tempo vacila;
Vence-se enfim, e entra a
mansão da esposa.
XIII
Quatro vultos na câmara
paterna
Eram. O pai sentado,
Calado e triste. Reclinada a
fronte
No espaldar da cadeira, a filha
os olhos
E o rosto esconde, mas tremor
contínuo
De um abafado soluçar o
esbelto
Corpo lhe agita. Nuno aos
dois se chega;
Ia a falar, quando a formosa
virgem,
Os lacrimosos olhos
levantando,
Um grito solta do íntimo do
peito
E se lhe prostra aos pés: “Oh!
vivo, és vivo!
Inda bem... Mas o céu, que
por nós vela,
Aqui te envia... Salva-o tu,
se podes,
Salva meu pobre pai!”
Estremecendo,
Nela e no velho fita Nuno os
olhos,
E agitado pergunta: “Qual
ousado
Braço lhe ameaça a vida?”
Cavernosa
Uma voz lhe responde: “O
santo ofício!”
Volve o mancebo o rosto
E o merencório aspecto
De dois familiares todo o
sangue
Nas veias lhe gelou.
XIV
Solene o velho
Com a voz, não frouxa, mas
pausada, fala:
“Vês? Todo o brio, todo o
amor no peito
Te emudeceu. Só lastimar-me podes,
Salvar-me, nunca. O cárcere
me aguarda,
E a fogueira talvez;
cumpri-la, é tempo,
A vontade de Deus. Tu, pai e
esposo
Da desvalida filha que aí
deixo,
Nuno, serás. A relembrar com
ela
Meu pobre nome, aplacareis a
imensa
Cólera do Senhor...” Sorrindo
irônico,
Estas palavras últimas lhe
caem
Dos lábios tristes. Ergue-se:
“Partamos!
Adeus! Negou-me Aquele que no
campo
Deixa a árvore anciã perder
as folhas
No mesmo ponto em que as
nutriu viçosas,
Negou-me ver por estas longas
serras
Ir-se-me o último sol. Brando
regaço
A filial piedade me daria
Em que eu dormisse o
derradeiro sono,
E em braços de meu sangue
transportado
Fora em horas de paz e de
silêncio
Levado ao leito extremo e
eterno. Vive
Ao menos tu...”
XV
Um familiar lhe corta
O adeus último: “Vamos: é já
tempo!”
Resignado o infeliz, ao seio
aperta
A filha, e todo o coração num
beijo
Lhe transmitiu, e a caminhar
começa.
Ângela os lindos braços sobre
os ombros
Trava do austero pai; flores
disséreis
De parasita, que enroscou
seus ramos
Pelo cansado tronco, estéril,
seco
De árvore antiga: “Nunca! Hão
de primeiro
A alma arrancar-me! Ou se
heis pecado, e a morte
Pena há de ser da cometida
culpa,
Convosco descerei à campa
fria,
Juntos a mergulhar na
eternidade.
Israel tem vertido
Um mar de sangue. Embora! à
tona dele
Verdeja a nossa fé, a fé que
anima
O eleito povo, flor suave e
bela
Que o medo não desfolha, nem
já seca
Ao vento mau da cólera dos
homens!”
XVI
Trêmula a voz do peito lhe
saía.
Das mãos lhe trava um dos
algozes. Ela
Entrega-se risonha,
Como se o cálix da amargura
extrema
Pelos meles da vida lhe
trocassem
Celeste e eterna. O coração
do moço
Latejava de espanto e susto.
Os olhos
Pousa na filha o desvairado
velho.
Que ouviu? — Atenta nela; o
lindo rosto
O céu não busca jubiloso e
livre,
Antes, como travado de agra
pena,
Pende-lhe agora ao chão.
Dizia acaso
Entre si mesma uma oração, e
o nome
De Jesus repetia, mas tão
baixo,
Que o coração do pai mal pôde
ouvir-lho.
Mas ouviu-lho; e tão forte
amor, tamanho
Sacrifício da vida a alma lhe
rasga
E deslumbra. Escoou-se um
breve tempo
De silêncio; ele e ela, os
tristes noivos,
Como se a eterna noite os
recebera,
Gelados eram; levantar não
ousam
Um para o outro os arrasados
olhos
De mal contidas e teimosas
lágrimas.
XVII
Nuno, enfim, lentamente e a
custo arranca
Do coração estas palavras:
“Fora
Misericórdia ao menos
confessá-lo
Quando ao fogo do bárbaro
inimigo
Me era fácil deixar o
derradeiro
Sopro da vida. Prêmio é este
acaso
De tamanho lidar? Que mal te
hei feito,
Por que me dês tão bárbara e
medonha
Morte, como esta, em que o
cadáver guarda
Inteiro o pensamento, inteiro
o aspecto
Da vida que fugiu?” Ângela os
olhos
Magoados ergue; arfa-lhe o
peito aflito,
Como o dorso da vaga que
intumesce
A asa da tempestade. “Adeus!”
suspira,
E a fronte abriga no paterno
seio.
XVIII
O rebelde ancião, domado
entanto,
Afracar-se-lhe sente dentro
d’alma
O sentimento velho que bebera
Com o leite dos seus; e sem
que o lábio
Transmita a ouvidos de homem
O duvidar do coração, murmura
Dentro de si: “Tão poderosa é
essa
Ingênua fé, que inda negando
o nome
Do seu Deus, confiada aceita
a morte,
E guarda puro o sentimento
interno
Com que o véu rasgará da
eternidade?
Ó Nazareno, ó filho do
mistério,
Se é tua lei a única da vida
Escreve-ma no peito; e dá que
eu veja
Morrer comigo a filha de meus
olhos
E unidos irmos, pela porta
imensa
Do teu perdão, à eternidade
tua!”
XIX
Mergulhara de todo o sol no
ocaso,
E a noite, clara, deliciosa e
bela,
A cidade cobriu, — não
sossegada,
Como costuma, — porém leda e
viva,
Cheia de luz, de cantos e
rumores,
Vitoriosa enfim. Eles,
calados,
Foram por entre a multidão
alegre,
A penetrar o cárcere sombrio.
Donde ao mar passarão, que os
leve às praias
Da anciã Europa. Carregado o
rosto,
Ia o pai; ela, não. Serena e
meiga,
Entra afoita o caminho da
amargura,
A custo sofreando internas
mágoas
Da amarga vida, breve flor
como ela,
Que inda mais breve a mente
lhe afigura.
Anjo, descera da região
celeste
A pairar sobre o abismo;
anjo, subia
De novo à esfera luminosa e
eterna,
Pátria sua. Levar-lhe-á Deus
em conta
O muito amor e o padecer
extremo,
Quando romper a túnica da
vida
E o silêncio imortal fechar
seus lábios.
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