O “Fausto” de Goethe
Resumir o
“Fausto” de Goethe, é tarefa dificílima, dada a complexa simbologia da obra.
Procuramos dar aqui aos nossos leitores menos informados, uma ideia do
desenvolvimento do poema, sem nos atermos à sua exegese. Goethe consumiu quase toda a existência — sessenta e cinco anos —
na elaboração do "Fausto", iniciado na mocidade e terminado na
velhice. Como se sabe, o poema, composto de duas partes, baseia-se na lenda do
Doutor Fausto, que o autor vira representar em 1773, num teatro de bonecos. Daí
lhe nascera a inspiração enriquecida por outras sugestões. Lera, naturalmente,
o "Livro Popular do Doutor Fausto", impresso em 1587 e conhecia
decerto o drama de Marlowe sobre o assunto. Pudera remontar, enfim, à história
autêntica do sábio, de nome Fausto, que estudou ciências em Cracóvia, praticou
a magia, percorreu parte da Europa e morreu assassinado.
Nenhum assunto era mais célebre,
na época, nenhum tentara maior número de escritores; todo mundo na Alemanha
estava familiarizado com essa lenda que se reduzia, em suma, salvo no drama de
Marlowe, a um pacto entre Fausto e o diabo, a uma tentativa de arrependimento
do primeiro, seguida por sua dominação, que demônios burlescos carregavam para
o inferno. Se Goethe se aproveitou desse personagem popular e de um argumento
um tanto grotesco, foi porque apreendeu o que tudo isso podia encerrar de
profundo no seu sentido humano e filosófico.
O PRIMEIRO FAUSTO
O Primeiro "Fausto",
terminado em 1808, começa com um prólogo no céu, em que assistimos a uma aposta
entre Deus e o Mefistófeles. Este obtém a permissão para tentar Fausto e se
regozija, antecipadamente, de arrastá-lo ao inferno. Deus deixa entender que
Fausto, apesar de suas faltas, mas porque se empenhou na procura da verdade,
resistirá à tentação e salvar-se-á.
O Fausto de Goethe é um sábio
atormentado pela sede de tudo saber, desesperado por haver chegado à velhice
sem haver arrancado à natureza nenhum dos seus segredos, e por outro lado,
arrependido, ante esse fracasso, de haver consumido no estudo a juventude e a
maturidade. Expõe ele sua crise moral ao
discípulo Wagner, no qual não encontra senão formalismo estéril. Então, vem-lhe
o desejo de envenenar-se. Mas os sinos da Páscoa chegam-lhe aos ouvidos e com
eles o coro dos anjos: "Cristo ressuscitou!” Fausto chora e renuncia ao
suicídio. Sai a passear com Wagner e
nota um cão negro que se aproxima de ambos, envolvendo-os num círculo cada vez
mais estreito. Fausto leva o animal para casa, dando-lhe um leito perto da
lareira. E ali, enquanto o sábio lê o Evangelho, o cão começa a roncar e
transforma-se em Mefistófeles, personificação do diabo, mas um diabo elegante e
gentleman. Mefistófeles apresenta-lhe uma proposta: restituir-lhe-á a mocidade
e servi-lo-á docilmente na terra, facultando-lhe meios para conseguir a ventura
que até então não lograra, com condição de ganhar-lhe a alma, no momento em
ele, Fausto, disser à hora que passa: "Para tu, que és tão bela!”. O sábio
aceita o contrato e assina-o com o
próprio sangue. Saem, então, ambos pelo mundo. Mefisto conduz, primeiro, Fausto
a uma taberna de estudantes cm plena orgia, mas essa grosseira bacanal não
conquista a alma do sábio que aspira prazeres mais nobres. Mefisto terá de
recorrer ao amor. Leva-o, agora ao antro das feiticeiras, onde uma bebida
mágica rejuvenesce-o, e estendendo-lhe um espelho encantado, lhe faz ver nele o
rosto de uma jovem de uma beleza ideal: Margarida. Fausto fica imediatamente
apaixonado.
O poema torna-se nessa altura um
idílio. Fausto, vê, pela primeira vez, em pessoa, Margarida, saindo da missa;
encontra-a, depois, no jardim de uma vizinha, passeiam juntos e juram um amor
eterno. Fausto associa a natureza à felicidade que o embriaga. Margarida é um
tipo encantador, simples e inocente e inteiramente inventado por Goethe, pois
não figura na lenda. Já antes, em "Egmont", o poeta havia criado um
personagem semelhante. Clara, modesta operária, transfigurada pelo amor.
Mas o idílio não tarda a
transformar-se em drama. Fausto depois de haver seduzido Margarida, abandona-a.
Um irmão dela retorna da guerra e ouvindo dizer mal da irmã, quer vingar-lhe a
honra. Fausto, impelido por Mefisto, provoca-o a um duelo e mata-o. Para o
cúmulo da desgraça, Margarida mata o filho, que lhe dera Fausto, e é conduzida
à prisão, onda se debate no maior desespero.
Enquanto isso, Fausto assiste o
“shabat das feiticeiras”, na noite de Walpurgio. Em vão Mefisto se esforça para
arrancar-lhe do coração a lembrança de Margarida e destruir-lhe o lado ideal da
personalidade. Fausto não consegue esquecê-la. Corre ao cárcere; ela se
enternece ao vê-lo, mas recusa-se a
acompanhá-lo. No momento em que Fausto, assistido por Mefisto vai arrebatá-la à
força, a pequena morre. Logo urna vez celeste se faz ouvir: "Salva!
Salva!" Margarida fora redimida de suas culpas pelo arrependimento e pelas
lágrimas.
O SECUNDO FAUSTO
O "Segundo Fausto" é
uma continuação do poema, composto por Goethe nos últimos anos de vida. No
primeiro, o herói, conduzido por Mefistófeles, percorrera o "pequeno
mundo"; a ciência desiludira-o; o prazer não lhe deixara senão
remorsos. Agora, vai percorrer o
"grande mundo”, o da atividade da vida de ação.
No começo do poema, dividido em
cinco atos, encontramos Fausto, depois da morte de Margarida, estendido num
leito de flores, em meio de uma bela paisagem. Os cantos de Ariel o dos
espíritos que o acompanhara acalmam-lhe os remorsos. Vemo-lo, em seguida, na
corte de um imperador da Idade Média, que se debate numa penosa crise
financeira. Fausto aconselha o imperador a fabricar moeda cujo valor será
lastreado pela exploração de minas de ouro. O imperador pede a Fausto e ao diabo, para ressuscitar em carne e osso
Helena e Páris, as duas famosas figuras da guerra de Troia. Mefistófeles não
pode senão destruir; é-lhe impossível criar. Mas Fausto vai procurai entre
"Ideias Mães" (ideias tipos das coisas), alusão à teoria de Platão,
um tripé mágico, de onde faz surgir Páris e Helena. Torna-se, porém, logo
apaixonado pela formosura de Helena, personificação da beleza clássica e procura
arrebatá-la a Páris, no que é impedido por uma intervenção misteriosa.
Depois do episódio do Hormunculus
criado por Wagner, Fausto parte em companhia deste à procura de Helena, e
conseguindo encontrá-la de novo, desposa-a, dando-lhe um filho, Euforion, que
depois de esvoaçar às tontas pelos ares, como um novo Ícaro, cai, vinde morrer
aos pés dos pais. Essa união de Fausto com Helena encerra, como quase todos os
episódios do poema um símbolo. Aqui — pode-se ver a aliança da arte clássica
com o espírito moderno, engendrando a poesia nova — transposição do que se deu
com Goethe que se libertou do culto dos exageros românticos.
A trama do poema se complica,
tornando-se difícil resumi-lo. Fausto, sem ter aplacado sua inquietude,
decide-se a procurar a felicidade na ação prática; e com grandes sacrifícios
consegue recuar as águas do oceano, conquistando ao mar uma região que deverá
fertilizar e povoar. Velho e cego, ele saberá que não chegará a terminar tão
gigantesca obra. Que importa? Aquela atividade não será vã. Trabalhou para o futuro. E sentindo por
antecipação o deslumbramento do seu sonho realizado, exclama, dirigindo-se à
hora que passa: "Para! tu, que és tão bela!'' Chegara o momento longamente
esperado por Mefistófeles; este corre para arrebatar a presa; ruas Deus
intervém. O espírito do Mal perdeu a aposta, porque, apesar dos seus erros e de
suas faltas, Fausto será salvo, graças à suprema virtude de haver conservado um
IDEAL.
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"Letras e Artes", 28 de agosto de 1949.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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