Pode-se
com segurança fixar o ano de 1515, como do nascimento de Cristóvão Falcão. Como
filho de fidalgo tinha direito a ser inscrito aos doze anos moço fidalgo, sendo
por isso assentado na Moradia da Casa real, recebendo por procuração de seu pai
o primeiro quartel em Lisboa em 30 de janeiro de 1527. Por esta data se chega à
determinação do tempo em que começaram os seus precoces amores com uma criança
gentil de estirpe espanhola, D. Maria Brandão Sanches, que na exaltação da
adolescência fizeram entre si o casamento à furto, segundo o costume corrente
no século XVI. Para que esse casamento fosse validado, segundo as Constituições
do Arcebispado de Lisboa, canonicamente se exigia que o jovem tivesse quatorze anos
e a menina doze, a perfeita sexualidade.
Sendo de pouca idade,
não se ver tanto sentiam,
que o dia que não se viam,
se viam na saudade
o que ambos se queriam.
.......................................
E com quanto era Maria
pequena, tinha cuidado
de guardar melhor o gado
o que lhe Crisfal dizia;
mas, enfim, foi mal guardado.
Quando
a família de Maria soube dessa
travessura, convenceu-a de que o jovem Falcão, filho do soberbo Capitão da
Mina, fazia caça à sua riqueza, como filha única. Quando ela disse ao Crisfal, que não era válido o casamento
por não ter a idade requerida, o apaixonado moço lembra-lhe a sua própria:
Quando vos dei a vontade,
inda vós éreis menina
e eu de pouca idade...
.....................................
Mas que fosse assim e mais,
Mas que fosse assim e mais,
que remédio vos dão
com quem conselho tomais
à grande obrigação
em que, quanto a Deus, me estais?
Com
os quatorze anos, em 1529, ele
julgava-se adstrito ao seu enlace, como ela tinha igual obrigação grande por
achar-se então com os doze anos da
Constituição arquiepiscopal; tinha por tanto Maria nascido em 1517. Tudo isto se confirma e fundamenta com
documentos da Feitoria de Flandres, referentes ao pai de Maria.
Barbosa
Machado, levado pelas notícias genealógicas confusas, aponta o nome de D. Maria Brandão, como a pastora do Crisfal; embora compile dados sincréticos
dos homônimos de Cristóvão Falcão e das famílias dos Brandões, induziu a crítica
a estabelecer a definitiva veracidade. Foi laboriosa essa diferenciação;
abandonada a filiação, dada por Alão de Moraes, dos Brandões de Coimbra, outros
linhagistas, como Diogo Gomes de Figueiredo, e os três códices da Biblioteca da
Ajuda, apontam D. Maria Brandão, ou Brandoa, com o epíteto de a do Crisfal, sendo filha única de João
Brandão Sanches, que foi Feitor de Flandres. No Nobiliário de Manso de Lima, Famílias de Portugal e no de Rangel de
Macedo é seguida esta filiação, autenticada pelos Documentos da Feitoria de
Flandres publicados no Arquivo histórico.
Alguns fatos e datas da vida de João Brandão Sanches levam-nos ao conhecimento
preciso da situação da namorada de Crisfal.
Filho segundo de João Sanches, de nobreza castelhana, e de Isabel Brandão, este
João Brandão Sanches começou a servir o rei D. Manuel como agente financial em
Flandres em 1509 (cartas de 8 de agosto, 9 e 10 de novembro) servindo até 1513,
em que por carta de 21 de outubro se lhe ordena a entrega da Feitoria a
Salvador Nunes. Feita a entrega, pelo auto datado de 12 de janeiro de 1514,
regressou João Brandão Sanches a Portugal, depois de quite em 27 de agosto deste
ano. Permaneceu dois anos em Lisboa, onde esteve como Vereador, sendo nomeado
Comendador de São João de Cabanas, da Ordem de Cristo, em 1516.
Depois
desta mercê, casou com Guiomar de Refoios, filha de Pantaleão Dias de Landim e
de Maria de Refoios. Nasceu deste enlace uma menina, Maria, a das doces lágrimas, a Brandoa, a do Crisfal, em 1517. Tomou parte na cerimônia da quebra dos escudos pela
morte do rei Dom Manuel, voltando segunda vez para Flandres, começando a servir
na Feitoria portuguesa em 1 de dezembro de 1520. Convinha-lhe ocupar aquela
rendosa comissão, e por carta de 23 de fevereiro de 1522, de Carlos V a seu
cunhado D. João III, conseguiu ser conservado como Feitor. Não voltou mais a
Portugal, porque faleceu no fim de agosto de 1526, como se deduz pela carta de
quitação passada a seus herdeiros, a mulher e a filha, a 5 de novembro desse
ano.
Apurados
estes fatos, contava a gentilíssima Maria Brandão nove anos de idade, quando
ficou órfã de pai. Criada como filha única e com a ternura da viuvez materna, a
sua fibra castelhana atávica acordou-lhe o temperamento; as duas famílias do
Capitão da Mina e de Pantaleão Dias, como alentejanas aproximaram-se,
conviveram, e as duas crianças brincaram descuidadas, simulando e imitando o
que viam. Eram então frequentes os casos de casamentos
a furto, como o de D. Guiomar Coutinho e o Marquês de Torres Novas; talvez
o espírito de imitação determinaria essa união simpática, que florescia como um
primeiro amor, em 1530, quando Maria
atingiu os doze anos da idade
canônica. Aonde se se passava esta aventura, que tomava o aspecto da pastoral
de Dafne e Cloé, da época
alexandrina? Di-lo o poeta, quando veio a narrar os sofrimentos do seu amor em
uma Égloga incomparável:
Entre Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábida é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete nágua salgada,
houve um pastor e pastora,
que com tanto amor se amaram
como males lhe causaram
este bem, que nunca fora,
pois foi o que não cuidaram.
Aqui
se define o lugar da ação idílica. Mais tarde o poeta Dr. Antônio Ferreira, ao
celebrar os seus amores com D. Maria Pimentel, localiza-os por esse tópico:
Tejo, triunfador do claro Oriente,
.....................................................
E antes que ao mar pagues seu tributo
À destra mão da tua praia, um monte
Com graciosa soberba se alevanta,
Ali fiquei ao meu amor sujeito.
Ali as tuas águas parte...
Também
Bernardes, ao falar de uns amores refalsados, acentua na Carta XIV:
Enfim, até chegar lá onde o Tejo
Em águas de Netuno se mistura,
Nem descansara o pé nem o desejo.
Há
quem infira que a estrofe do Crisfal se
refere a Oeiras, por documentos judiciais; é uma alumiada planura para correrem
crianças à solta. Maria não pôde por
muito tempo conservar o seu segredo íntimo, a sua loucura de amor:
Que, depois de assim viver
nesta vida e neste amor,
depois de alcançado ter
maior bem para maior dor,
enfim se houve de saber
por Joana, outra pastora,
que a Crisfal queria bem.
Mas o bem que de tal vem
não ser bem maior bem fora,
por não ser mal a ninguém.
A qual, logo aquele dia
que soube de seus amores,
aos parentes de Maria
fez certos e sabedores
de tudo quanto sabia.
Quem
era esta Joana, também criança, que
denunciara o casamento a furto de Maria, por impulso de tácita rivalidade?
Julgamos poder identificá-la com Joana Brandão casada com João Patalim, ao que
se opõe a distância de idade e de prima remota; nos Brandões de Coimbra,
aparece-nos uma Joana de Souto Maior, com quem casou por amores João Brandão, filho de Fernão Brandão, e neto do Secretario do Cardeal Infante.
Em
1531, desvendado o segredo do casamento das duas crianças, a família de Maria tratou de apartá-la para longe,
para casa dos parentes de Elvas; mas a sorte de Cristóvão Falcão tornou-se
cruenta, porque o severo Capitão da Mina prendeu o filho no Castelo de São
Jorge, como se descobriu por uma carta de Francisco Botelho a D. João III,
falando do filho de João Vaz de Almada Falcão. Agora vemos o valor da rubrica
que foi posta à Carta em redondilhas emparelhadas, que precedeu a composição do
Crisfal: "Carta, estando prezo, que mandou a uma Senhora com quem era
casado a furto contra vontade de seus parentes dela, os quais a queriam casar
com outro, sobre que fez (segundo parece) a passada Égloga."
João
Vaz de Almada Falcão exerceu sobre o filho o pátrio poder segundo o direito
romano vitai et necis; prendeu o
enamorado filho no Castelo, em cárcere duro. Escreveu Cristóvão Falcão em forma
de Carta, em sua angustiada solidão:
Os presos contam os dias
Mil anos por cada dia;
Mas os meus, sem alegria,
Como os passarei eu,
Verdadeiro amor meu.
..................................
Mal, cuja dor se não crê,
De prisão e de ausência,
Pois, sem pecar, penitência
Faço detrás de uma grade
......................................
Bem se enxerga de meus danos,
Que estou prezo há cinco anos,
Afora os que hei de estar...
Cristóvão
Falcão conhecia, que mais do que as penas o separavam de Maria Brandão as
intrigas da família dela:
Pois que vos escrito tenho
Por que não vejo resposta?
Quem vos pôs no que estais posta,
Que palavras vos disseram
Que mais que a razão puderam,
Que já entre nós pusemos?
Cuidai quanto nos quisemos,
E não vos possa mudar
Dizer que vos podem dar
Outrem, que tenha mais que eu.
Era
justamente este argumento da pobreza do Capitão da Mina, que a família de Maria empregava, e o que mais
encarniçava a soberba nobiliárquica de João Vaz de Almada, desagravando-se
sobre o filho. Cinco anos se tinham passado desde a denúncia de Joana, estava-se no ano de 1536, em que
o gênio poético de Cristóvão Falcão se revelava em pequenas Esparsas e
Cançonetas. O desastre da vida de Bernardim Ribeiro, ferido de mal de amores que não tem cura, como diz o povo,
provocava um simpático interesse; e na sua segunda ausência da corte,
imprimiram-lhe em folheto avulso a assombrosa Égloga intitulada Trovas de Dois Pastores, Silvestre e
Amador. Não é possível achar linguagem mais veemente e sentida para exprimir a
tempestade moral da um espírito que vai afundar-se na loucura. Cristóvão Falcão,
na pujança dos seus vinte e um anos leu esse folheto de Bernardim Ribeiro, que
mão estranha publicou em uma forma desengraçada. Bateu em cheio esse foco de
luz na alma de Cristóvão Falcão, e deu largas às suas emoções escrevendo as Trovas do Pastor Crisfal, em que se reflete
o fulgor do original. Pelo tema dessa Égloga depreende-se que ela fora escrita
estando já o poeta solto da prisão do Castelo. Por certo a intervenção
carinhosa de D. João III domou a ferrenha autoridade de João Vaz de Almada;
porque pela carta de Francisco Botelho, aludindo a Cristóvão Falcão, diz — o que
aí esteve prezo no Castelo; e a missão em que o rei o mandou a Roma foi um mero
pretexto para o libertar da crueza do pai e afastá-lo de Lisboa para evitar agravos.
Entre 1536 e 1541, em que Cristóvão Falcão partiu com a missão secreta para
Roma, é que foram escritas as Trovas do
Pastor Crisfal; nesse texto vem a décima, suprimida depois, em que falava
dos projetos de casamento de Maria, por os dois pretendentes
.... já mostrar que temiam
que o sabor de teus beijos
na minha boca achariam.
Solto
da prisão pelo rei, que tanto prezava os poetas, Cristóvão Falcão foi relegado pela
dureza do pai para Portalegre, aonde tinha a sua parentela; foi um conforto
para o poeta, quando soube estar Maria Brandão em Elvas. Fácil se lho tornou o falar-lhe,
e sabendo-o a família Brandão, tratou de enclausurá-la no Mosteiro cisterciense
de Lorvão. Em uma estrofe do Crisfal, diz Maria:
Quando contigo falei
aquela última vez,
o choro que então chorei
que o teu chorar me fez,
nunca o eu esquecerei.
Foi esta a vez derradeira
mas começo de paixão,
passando-me eu então
para o casal da Figueira,
do Vale de Pantaleão.
....................
Por ti vim eu desterrada
a estas estranhas terras
de donde eu fui criada;
e por ti, entre estas serras,
em vida são sepultada,
onde a se me perderam
a flor dos anos se vão;
ora julga se é razão
das minhas lágrimas serem
menos daquelas que são.
O
poeta aponta em uma estância do Crisfal
o mosteiro em que foi recolhida Maria Brandão:
Indo não com menor dor,
Em que já com mais sossego,
Os ventos me foram pôr
Depois de passar Mondego
Sobre as serras de Lor.
Vão ali grandes montanhas
De alguns vales abertas,
Todas de soutos cobertas,
Aos naturais estranhas,
Mas à saudade certas.
Tiveram
os parentes de Maria de sequestrá-la à sua paixão, como o dissera Barbosa Machado,
"recolhida no Convento Cisterciense de Lorvão":
Então descontentes disto
Levaram-na a longes terras,
Esconderam-na entre umas serras
Onde o sol não era visto...
Chorando a lembrança dela,
Virada foi minha face
Para onde o gado pasce,
Da grande Serra da Estrela,
Da qual o Zêzere nasce.
O
mosteiro de Lorvão, onde Maria tinha varias
primas dos Brandões Sanches e dos de Coimbra, era ocupado por perto de
trezentas freiras, noviças e recoletas, de costumes de tanta desenvoltura, que
D. João III se viu forçado a representar ao papa, pedindo a sua reforma. Nesse
meio, fácil foi persuadir Maria a aceitar
um casamento de conveniência, para assim se ver dali fora. Cristóvão Falcão,
sob a dependência da pesada autoridade paterna, não podia ir a Lorvão;
representou essa visita em um Sonho,
que é o centro da ação do Crisfal:
Muito a vi eu mudada;
mas, com tudo, conheci
ser a minha desejada,
a quem , assim vendo, vi,
a vista no chão pregada,
com o seu cantar pensoso
e passadas esquecidas,
ao tom dele medidas,
vestida vir de arenoso,
as mãos nas mangas metidas.
Uma coifa não lavrada,
antes sem nenhum lavor.
O colóquio
amoroso entre os dois namorados, pela eloquência do coração a mais fecunda e
verdadeira, é inigualável; Maria expõe-lhe
os motivos porque a família a enclausurara:
Que me dão certa certeza,
porque fazem conhecer-me
(o que eu hei por grande crueza)
o amor que mostras ter-me
ser só por minha riqueza.
A
este golpe, que tão intimamente o fere, com um acento dorido dá-lhe a resposta
que a imaginação não podia descobrir ante a imponente realidade:
Quando vos dei a vontade,
inda vós éreis menina
e eu de pouca idade;
mas caiu minha mofina
sobre a minha verdade.
Muito vos quis bem, primeiro
que de riquezas soubesse.
E
além desta malsinação para a dissuadirem desse amor, também lhe diziam que não eram
válidas as promessas do casamento a furto, por não ter os doze anos completos, podendo
portanto arrepender-se:
Isto e mais se me diz
— crê que te falo verdade —
que não tinha liberdade
para fazer o que fiz,
por minha pouca idade.
Sentindo-se
opresso por este desmoronamento de todas as suas esperanças, o poeta afoga-se
nas lágrimas silenciosas; Maria abraça-o
para alentá-lo:
Ó mesquinha,
como pude ser tão crua!”
bem abraçado me tinha,
a minha boca na sua
e a sua face na minha.
Lágrimas tinha choradas
que com a boca gostei;
mas, com quanto certo sei
que as lágrimas são salgadas,
aquelas doces achei.
Aqui
o poder da palavra excede a magia da música e da pintura; é a divina Poesia. O
amor é como a criança, quanto mais o ameigam mais dorido se mostra. Crisfal
debulhava-se em lágrimas neste êxtase fugitivo:
Então ela, assim chorosa
de tão choroso me ver,
já para me socorrer,
com uma voz piedosa
começou-me assim dizer:
— Amor de minha vontade,
ora não mais! Crisfal manso,
bem sei tua lealdade:
ai, que grande descanso
é falar com a verdade!
A Égloga
de Crisfal, empolgante pela sua beleza
poética, reservadamente conhecida por cópias manuscritas, provocava também interesse
pelas alusões a sucessos contemporâneos da vida palaciana, escândalos como o do
casamento clandestino de D. Guiomar Coutinho com o Marquês de Torres Novas, ou
o de D. João Lobo, filho do Barão de Alvito, com D. Juliana, filha do Marquês de
Vila Real. O local em que se passaram os amores de Crisfal — entre Cintra a mui prezada e a serra de Ribatejo, que Arrábida é chamada — é esse o sitio para
onde o Marquês de Torres Novas havia sido desterrado da corte depois da queixa
do velho Conde de Marialva.
Era
neste sítio que o Marquês tinha as suas principais herdades. No Crisfal vem a referência a este
clamoroso pleito em que o Marquês foi condenado nos tribunais canônicos e civis
por declarar o seu casamento clandestino com D. Guiomar Coutinho, prometida ao
infante D. Fernando, irmão de Dom João III.
Em um vale, descontente
estar Antônio vi,
que quase não conheci,
sendo bem meu conhecente.
Chorando lágrimas mil,
estava consigo só
ao modo pastoril
de dó, bem para haver dó,
tinto o hábito vil.
Cristóvão
Falcão achava-se em situação análoga, para na sua desventura lembrar-se daquele
amigo:
Deus lhe dê contentamento,
Pois que nos fez a ventura
Companheiros na tristura,
E que seu e meu tormento
Cada vez têm menos cura.
Cristóvão
Falcão acentua mais a realidade do quadro:
Já serranas ao abrigo
se iam, os prados deixando,
as mais delas suspirando:
uma dizia: — Ai, Rodrigo!
outra dizia: — Ai, Fernando!
Fernando
é o infante, que o rei D. Manoel determinou casar com a filha do Conde de
Marialva, para assim apanhar-lhe a riqueza. Parece que alguma cantiga popular aludiu
a este fato; pelo que diz Simão Machado:
Como me cantais por aí,
Namorado andais, Fernando.
Uma
sátira anônima do século XVI acusa o rei D. Manoel por ter joeirado o tesouro do
grão Marialva. Não é de admirar que a parte emocionante do casamento de D.
Guiomar Coutinho entrasse na corrente da tradição popular; em um romance oral
da ilha da Madeira, descreve-se o exílio do namorado D. Henrique de Alencastro:
Neste cerrado arvoredo,
Neste bravio montado,
Aqui vivo como bicho,
Entre rochas enterrado.
Vai-se o dia, vem a noite,
Nada pra mim é mudado,
De minhas penas sustento
O triste de mim coitado.
D'Alencastro,
Dos Duques desta linhagem
Sou o único herdeiro...
Um Conde novo na corte,
O meu amor invejava;
El-rei com minhas herdanças
Dona Guiomar também dava.
— Ai, Dona Guiomar de Castro,
Quem cuidara, quem diria,
Que tu me foras traidora
Quando as juras te ouvia!
Palavras não eram ditas,
Dona Guiomar que aparecia.
Jurei ser tua mulher,
Doutro não, nunca seria
Que me custasse a vida,
Minhas juras cumpriria.
A ti tudo te roubaram,
Tudo por ti deixaria...
Dona Guiomar, aqui estou,
Para tua companhia...
Efetivamente,
pouco tempo depois de casada D. Guiomar Coutinho com o Infante D. Fernando,
ambos pereciam misteriosamente. Na sua Égloga Andrès figurou Sá de Miranda este caso, que chegou a penetrar na corrente
da poesia popular.
Ai, Rodrigo! aludirá ao Barão de Alvito, D. Rodrigo Lobo, cujo
filho casara clandestinamente com D. Juliana, filha do Marquês de Vila Real,
dando o escândalo de "sendo menor, ter entrado em casa dela de noite em Santarém,
escalando e forçando uma janela para tirar certas peças de vestuário."
Outro
escândalo amoroso da corte se deu com o velho Duque D. Jorge de Lencastre, com
D. Maria Manoel, dama de rainha, de dezesseis anos, que ele pretendia desposar.
O
magoado Crisfal, ouvindo uma pastora cantando,
aludir à sua Maria, escutou:
Troquei amor per riqueza
Porque mo trocar fizeram...
Meu esposo aborreço,
Quando me à lembrança vem
Do primeiro querer bem...
Reconheceu-a,
na Elena (D. Maria Manoel):
E então que era Elena,
Minha amiga, conheci,
Esta Dama e pastora,
Certo que melhor lhe ia,
Quando a cantar ouvia,
Dando fé, que em sua cama
O velho não dormiria.
É
uma evidente e direta alusão aos amores do velho Duque D. Jorge, bastardo de D.
João II, caso que provocou riso na corte e a cantiga, vulgarizada no século
XVI, do Velho malo em minha cama.
Quando Camões escreveu a comedia de El-Rei
Seleuco, também aludiu a um escândalo amoroso, fazendo referência à cantiga:
Ouviste vós cantar já
Velho maio em minha cama?
A
cantiga foi adaptada ao caso, de uma forma antiga ainda empregada por Gil
Vicente:
Bien quiere el viejo,
Ay, madre mia!
Bien quiere el viejo
A la niña.
No
romance popular da ilha da Madeira, que descreve os amores do namorado de D.
Guiomar de Castro, vem uma referência ao velho duque:
Entrementes a meu pai
Que tão leal se mostrava,
Por mexericos de um conde
Logo el-rei o condenava.
Mas quando foi a Justiça,
Que por ele procurava,
Já não achou quem prender.
De morrer ele acabava.
Dom
João III apreciava a boa poesia, e teve conhecimento do poeta pelas nomeadas Trovas; revela-o a intimidade e
confiança para subtraí-lo ao meio cortesanesco, enviando-o a Roma para uma
missão delicada e de confiança, — o caso do Cardinalato do Bispo de Viseu D.
Miguel da Silva.
É
uma nova fase da vida de Cristóvão Falcão. Em 26 de dezembro de 1541 partia de
Lisboa Diogo de Mesquita com despachos para o embaixador Cristóvão de Sousa,
para obter do papa as dispensas para o Duque de Bragança D. Teodósio casar com
sua prima D. Isabel de Alencastre.
Em
dezembro se conhecera em Lisboa a nomeação do Bispo de Viseu para o
Cardinalato, o que produziu em D. João III um grande desespero. Pela carta de Cristóvão
Falcão ao rei sobre o caso do Cardeal, vê-se que partira no fim do ano de 1541;
neste mesmo ano viuvou sua irmã D. Braçaida de seu marido Antônio Vaz
Mergulhão, natural de Moimenta da Beira, cavaleiro de Avis, que viera residir
em Portalegre. Citamos o fato porque Cristóvão Falcão escreve: "que eu não era no reino."
Porque era enviado o poeta a Roma, neste caso do Cardeal Silva, reservado in pectore em 19 de dezembro de 1539? É
essencial expor rapidamente o encadeamento dos fatos.
Dom
Miguel da Silva, Bispo de Viseu e Escrivão da Puridade de D. João III, desde o
tempo de D. Manuel, depois da sua estada em Paris assistira em 1510 ao Concílio
Geral Lateranense, onde se distinguiu contraindo aí amizade íntima com
Alexandre Cardeal Farnesi, que foi eleito Papa com o nome de Paulo III. Daí lhe
nasceu a incessante aspiração da púrpura cardinalícia, numa vesânia de mais de
vinte anos. A pretexto da visita Ad
limina Apostolorum, saiu abruptamente de Portugal para Roma, deixando os
mais altos cargos de que o investiu D. João III. Pareceu uma fuga. Dom João III
empregou todos os meios para que o Papa o não criasse Cardeal antes do Infante D.
Henrique, seu irmão; quando D. Miguel da Silva alcançou essa primazia, D. João III
só pôde ser domado pela interferência de Ignácio de Loyola, atenuando a
desobediência do Bispo sem Viseu e a
ofensa ao monarca. Paulo III ia nomear o Cardeal Silva seu Núncio à latere junto de Carlos V; Dom João III
tratou de impedir essa nomeação junto de seu cunhado. Era embaixador de Carlos
V em Roma o Marquês de Aguilar, primo-coirmão de João Vaz de Almada, e foi em
casa do embaixador que se hospedou Cristóvão Falcão, como se vê pela carta de
Francisco Botelho, remetendo uma carta do Marquês de Aguilar ao pai do poeta,
para lhe ser entregue por mão de D. João III. O efeito foi imediato; Carlos V
não recebeu o Cardeal Silva e o Papa Paulo III teve de substituí-lo por outro
Legado que não tivesse ofendido o rei de Portugal. Foi Cristóvão esse gentil-homem enviado pelo rei sobre o
caso do bispo, das memórias avulsas.
Em
10 de março de 1542, escrevia Cristóvão Falcão a D. João III: "julgando acertar nisso a vontade real; aí
lhe dava conta como entrara em casa do Marquês
de Aguilar, embaixador de Carlos V, como
em casa de meu primo segundo coirmão, onde sirvo Vossa Alteza naquelas coisas
que servir posso..."
Como identificar este Cristóvão Falcão com o
poeta do Crisfal? Aí temos a carta de
Francisco Botelho de 26 de dezembro de 1542, remetendo a D. João III uma carta do
Marquês de Aguilar sobre João Vaz de Almada, "que traz em sua casa um filho, que lá esteve prezo no Castelo, e
trata-o como parente..." É a prova histórica da rubrica da Carta, que acompanha o Crisfal, na edição de 1554, impiamente
suprimida no intuito de converterem Cristóvão Falcão em um mito. Por estas
relações com o Marquês de Aguilar se infere a via como a Menina e Moça apareceu manuscrita em Espanha, e com ela se
imprimiram o Crisfal com o pequeno Cancioneiro
que o completa.
Em
carta de 1 de outubro de 1542, dirigida por Cristóvão Falcão a D. João III, fala-lhe
da questão do Bispo sem Viseu, e como
se achava em casa do Marquês de Aguilar; e que tendo de ir a Perusa a chamado
do Papa, passou pela cidade de Assis onde está o corpo de São Francisco, e
também explica as causas da pirataria dos Turcos. Vivia então em Roma, em casa
do Cardeal Silva um Antônio Ribeiro, que julgamos ser o autor da Bucólica, em dez Églogas, publicada em 1586, segundo Barbosa; fundamo-nos nesse meio
de cultura humanista, em que D. Miguel da Silva era o completo luminar. Por
este mesmo tempo encontrava-se também em Roma D. Manuel de Portugal, que em
1542 voltara para a corte de Lisboa. No ano de 1543, recebia o embaixador Dr.
Baltazar de Faria, carta de D. João III, sendo datada de 31 de agosto, para
tratar da reforma do Mosteiro de Lorvão, de cento e sessenta mulheres, freiras,
noviças e conversas, que viviam em habitual desenvoltura. Cristóvão Falcão
previu que Maria Brandão tinha de sair daquele coio devasso, pelo que se
trataria de realizar o seu casamento. Seria a carta do Marquês de Aguilar para
ser entregue por mão de D. João III, ao pai do poeta para consentir na sua
demora em Roma?
No
seu regresso a Portugal ao sair de Roma, cumpria ver Veneza, e em 1543 aí se encontrava
o celebre judeu português Diogo Pires (Jacó Flávio), Pyrrus Lusitanas, autor de livros de poesia amorosa latina, tendo
por muitos anos vivido em Ferrara, onde se imprimiam então livros portugueses
nos prelos judaicos. Este fato mostra-nos quem em 1554 poderia em Ferrara
interessar-se pelas composições da Menina
e Moça, e Églogas do Bernardim
Ribeiro, e publicando no mesmo volume uma edição retocada das Trovas do Crisfal, em que primeiro se
desvendou o anônimo autor que dizem ser
Cristóvão Falcão, e o título de Égloga
em vez de ser Trovas, denunciando o espírito
clássico de um cultor de poesia amorosa latina.
Pelo
ano de 1544 Cristóvão Falcão já estava em Lisboa dando conta da sua missão diplomática;
e Maria Brandão deixava o Mosteiro de Lorvão pelos pródromos da reformação. Viram-se
os dois namorados? Em uma cançoneta dá-o a entender:
Vi o cabo no começo,
Vejo o começo no cabo...
Nas
Cantigas e Esparsas que seguem ao Crisfal
ha situações que revelam ter-se reacendido a paixão de Maria. Na segunda parte do Sonho
de Crisfal, esclarece-se a situação:
Levantou-me a confiança
Maria, de me querer,
Renovou-me este prazer,
Mas foi prazer de esperança,
E esperança de mulher.
Porque crendo alcançaria
Com ela um fim descansado,
Enfim, deixou-me frustrado;
Julga tu que fim teria
Quem se viu tão enganado.
Trocou-me o bem que esperava
Em cruel encerramento;
Meteu-se em certo convento
E a mim que ao vento gritava,
Deixou-me gritar ao vento.
E depois que me chegou
A perder vida e sentido,
Escolheu outro marido,
Que nela o prêmio gozou
De meu amor merecido.
O
seu amor afogado logo à nascença, e agora quando tudo o dava por findo outra
vez se renovava para maior desilusão, e um cruel
encerramento. A presença de Cristóvão Falcão na corte tornava-se embaraçosa
para a conclusão do casamento de Maria;
convinha afastar o poeta temporariamente da corte. D. João III, por carta de 21
de março de 1545, despachou-o por três anos para a Capitania da Fortaleza de
Arguim. A sua partida e esses três anos de isolamento dão-nos o sentido e o
sentimento das composições líricas que se seguem ao Crisfal. Nesta ausência é que mão atilada e inconfidente imprimiu
sem data e anônimas as Trovas do Pastor Crisfal;
porque na Carta que de África escreveu Camões em 1547, intercala com intenção
na sua prosa muitos versos tomados com sentido aforístico do Crisfal, podendo destacar-se versos das estrofes
10, 12, 43 e 85, o que bem nos revela quanto Camões admirava essa maravilha de
arte, que ao fluir da prosa lhe ocorriam os versos dela. Acabados os três anos
da Capitania de Arguim, Cristóvão Falcão regressou a Lisboa em 1548. Em 10 de outubro
de 1548 morre sua irmã D. Braçaida de Sousa, cujo segundo marido Heitor de
Figueiredo alcaide-mor de Borba apodera-se dos bens do seu enteado; Cristóvão
Falcão pugna a favor do sobrinho em carta de 1 1 de novembro de 1548, dirigida
a D. João III : " fez meu pai, antes que partisse, petição a El-Rei, para
lhe ser entregue seu neto e tirar do poder do padrasto."
É
também por este ano de 1548 que se deve colocar o casamento de D. Maria Brandão
com Luís da Silva de Meneses, capitão de Tanger, da qual houve dois filhos,
Francisco da Silva e Margarida da Silva, vindo ela a falecer por fins de 1554,
como o comprova a carta de quitação da Feitoria de Flandres de 28 de agosto de
1555. Ao fato do casamento de Maria
glosou essa deliciosa canção que realça nos versos do Cancioneiro de Resende:
Se vos eu vira casada
Com quem vos bem conhecera,
Já em vos ver descansada
Algum descanso tivera;
Mas o vosso mau casar
Dobra minha saudade.
Casada sem piedade,
Vosso amor me há de matar.
Mas ver-vos mal empregada,
Triste de vós e de mim,
De vós por ver-vos casada,
E de mim porque vos vi.
A
história nestes amores chegou a impressionar o público, como se vê pelo emprego
do nome civil de Crisfal. O poeta, neste
sofrimento, mais apreciaria o olvido que as consolações:
Em descontento de meu mal,
Não queria maior bem
Que não mo saber ninguém.
Cristóvão
Falcão demorava-se em Portalegre para tratar das questões do sobrinho entregue
a seu irmão Bernabé de Sousa. Para curar-se da decepção do consórcio de D.
Maria Brandão, a do Crisfal, casou-se em Portalegre, como se
lê em uma cópia de Nobiliário de Damião de Góes, com Aditamentos: "Cristóvão
Falcão, filho de João de Almada Falcão. Cristóvão foi muito bom poeta. Casou
com Isabel Caldeira, de quem não houve filhos; mas houve em uma mulher solteira
um filho que se chamou Cristóvão Falcão, também." Em um Obituário
encontrado por Antônio Sardinha, lê-se que Isabel Caldeira, filha de Mestre
Mendo Caldeira e Mor Dias, e mulher de Cristóvão Falcão, falecera em 7 de maio
de 1555. Desde 1548 a vida do poeta fora sempre agitada, tendo sido prezo porque
ferira o meirinho de Portalegre, do que se fez uma devassa em maio de 1548; por
interferência direta Dom João III, em carta aos Desembargadores, em 14 de julho
de 1551, acudiu-lhe assinando depois o alvará de perdão.
Esta
benevolência do rei e do príncipe D. João seria também devida à extrema simpatia
manifestada pelos poetas portugueses, mandando copiar as composições de Sá de Miranda
e de D. Diogo da Silveira, filho do poeta do Cancioneiro Geral, D. Luís da Silveira. Esta corrente de simpatia
suspendeu-se bruscamente pela prematura morte do príncipe Dom João, celebrada
por todos os poetas da nova Escola italiana. Neste ano de 1554 apareceu
impressa em Ferrara a História da Menina
e Moça, de Bernardim Ribeiro, e
algumas Églogas suas, e desvendando o seu segredo: "Há uma mui agradável Égloga chamada Crisfal, que dizem ser de Cristóvão
Falcão, o que parece aludir o nome da mesma Égloga."
As
Trovas de Crisfal é que continuaram a
ser citadas pelos escritores portugueses do século XVI, sinal de que a edição
de Ferrara não chegaria a ser conhecida, porque os vestígios dela em edições
avulsas do século XVII, derivaram da reprodução de 1559, de Birckman, em Colônia.
Neste ano de 1554 faleceu D. Maria Brandão; comprova-se pela quitação passada
em 28 de agosto de 1555 aos herdeiros de João Brandão Sanches, Feitor de
Flandres, de 1 de dezembro de 1520 ao fim de agosto de 1525. Os herdeiros são
os filhos menores, de D. Maria Brandão representada por eles na pessoa de seu
marido Luís da Silva de Meneses e genro do Feitor. Os últimos anos de Cristóvão
Falcão parece apagarem-se na prosa da vida, e quanto mais, os documentos históricos
o trazem à concreta realidade, mais a lenda amorosa vem de novo aureolá-lo, com
a tradição da Fons Chrisfalis, de que
fala João Soares de Brito, no Theatrum Luzitaniai
Litterarium: "conforme uma antiga tradição o mesmo Cristóvão Falcão se
apaixonara por uma lindíssima mulher, D. Margarida da Silva, a tal ponto que
tendo-se esta recolhido no convento de Lorvão, ele foi viver para aquele sítio
e conservando-lhe constante amor até à velhice. Que no Lorvão ainda existia em
1635 uma Fonte do Crisfal, onde
costumavam ir os namorados." Esta lenda formou-se sobro a Segunda parte do Sonho de Crisfal, que
se julga ter sido impressa em 1571 na Sílvia
de Lisardo. A inscrição de seu filho como fidalgo da Casa Real em 1576,
revela-nos ter sucedido a seu pai após esta data. A influência de Cristóvão
Falcão reconhece-se em Camões, Jorge de Montemor, em Francisco Rodrigues Lobo,
glosando algumas das suas Cantigas, em Manoel da Veiga e nos líricos que
escaparam ao Culteranismo.
Cristóvão
Falcão imitou Bernardim Ribeiro pela impressão primeira que lhe suscitou avocação
poética; mas como tirava das suas emoções íntimas os elementos das belas idealizações,
quando imita esse modelo dominante excede-o, como naquela imagem do fuso, que
caía da mão da pastora esquecida em devaneio amoroso. Bernardim Ribeiro tinha esboçado
essa imagem na Égloga III:
Quando vem ao sol posto,
Que então soía de ver
Aquele formoso rosto,
Torno a ensandecer,
Porque perdi tanto gosto,
Que vinha sempre cantando,
Tão desejoso de vê-la,
E agora ando chorando,
Porque a achava fiando,
E eu porque me fiei dela.
Cristóvão
Falcão sentindo a beleza da situação, toma esse traço pitoresco e anima-o com
um sentido moral:
Ali triste, só, saudosa,
vi entre duas ribeiras
uma serrana queixosa
cercando umas cordeiras,
sendo cordeira formosa.
E, como ali tem por uso,
em uma roca fiando,
mas, como que ia cuidando,
caía-se-lhe o fuso
da mão de quando em quando.
Camões
não podia ser insensível à beleza natural deste quadro, e imitou-o em um dos
seus Sonetos; perante a Carta de África
se pode fixar o tempo desde quando Camões conheceu a Égloga de Crisfal. É admissível que existisse
conhecimento pessoal entre os dois poetas, no regresso de 1543 de Itália, ou em
1548, terminado o triênio da Capitania de Arguim. Faria e Sousa, que escavava todos
os lugares análogos e trechos de Camões, fixou o Soneto XLI da primeira centúria,
aproximando-lhe a estrofe típica do Crisfal:
Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
Outras tantas de um áspero receio
Salteado Laurênio a cor perdia.
...............................................
Como pode a desordem da natura
Fazer tão diferentes na vontade
Aos que fez tão conformes na ventura?
Quando
Camões, já na índia, escrevia o quadro mais grandioso da sua Epopeia, o Adamastor, foi levado a servir- se de
certas rimas do Crisfal a que deu um
efeito estético inigualável:
Que não sei como o conte
Mui quieto e mui quedo
Por ser entre monte e monte;
Que não sei como o conte
Estar junto de um penedo,
Por ser entre monte e monte.
Jorge
de Monte-Mor, que viera a Portugal no séquito da princesa D. Joana em 1553,
conheceu a Égloga Crisfal, em que Maria
tanto se parecia com Diana, pelo que diz do seu desgraçado casamento:
Quiso bien y fué querida,
Olvidé y fué olvidada,
Esto causó mi casamiento
Que a mi me tiene cansada.
Casara yo con la tierra.
No me viera sepultada
Entre tanta desventura
Que no puede ser contada.
Nina me casó mi padre
De su obedienza forçada;
Puse à Sireno en olvido
Que la fé me tenia dada.
...................................
Como vivirá la triste
Que se vê tan mal casada!
Francisco
Rodrigues Lobo deveu-lhe o timbre das deliciosas Esparsas que espalhou por entre
as prosas da sua Primavera; e embora D.
Francisco Manoel de Melo não o nomeie no Hospital
das Letras, examina a Sílvia de Lisardo,
onde se imita superiormente as belezas de Crisfal,
completando a história dos amores do veemente namorado. As numerosas edições de
Crisfal, no século XVII, embora descuradas,
mostram a simpatia com que eram recebidas pelo vulgo em edições de folha
volante ou pliego suelto. O século
XVIII desconheceu muito Cristóvão Falcão, apesar de apontado como autoridade quinhentista
para o Dicionário da Academia das Ciências. A Arcádia desconheceu-o, ou não
tomou conhecimento do Crisfal pela edição
plebeia de 1721. José Agostinho de Macedo, pelas tradições lorbanenses da Fons Chrisfalis, é que conseguiu ver um
raro exemplar da Égloga, e debalde chamou para ela a atenção do jovem poeta Antônio
Feliciano de Castilho, em 1824, para afastar o ingênuo Mênide Eginense do desorado arcadismo das Cartas de Eco e Narciso. Castilho estava virado para a imitação dos
bucólicos alemães, e Macedo declara-lhe: Todas
as traduções da coleção de Huber não valem um Cristóvão Falcão, autor daquelas "namoradas
Trovas", como diz um historiador nosso... Olhe que os antediluvianos não
eram mais chorões que Crisfal quando diz:
E por quanto certo sei
Que as lágrimas são salgadas
Aquelas doces achei...
Em uma roca fiando,
Mas o fuso lhe caía
Dos dedos de quando em quando.
Castilho
não pôde seguir a indicação de José Agostinho de Macedo, por que era de extrema
raridade a Égloga Crisfal, que desde
1721 não fora mais reimpressa. Garret não pôde incluí-la no Parnaso lusitano, e não o aprecia no seu
belo quadro da história da Literatura portuguesa. No começo do século XIX,
quando o sábio Bouterwek imprimia a História
da Literatura Espanhola, limitava-se a aditar-lhe um capítulo final sobre a
Literatura portuguesa; mas por felicidade, as suas relações em 1802 com um erudito
português, que lhe comunicara os seus subsídios sobre os escritores pátrios,
levaram-no a escrever sobre esse ignorado assunto um volume, dando o quadro
completo da História da Literatura
Portuguesa. Nesta obra, depois de apreciar com suma lucidez Bernardim
Ribeiro, apresenta um rápido mas nítido estudo sobre Cristóvão Falcão; vê-se
que conheceu a edição de Colônia de 1559, e comparando o estilo do Crisfal com o das Églogas de Bernardim
Ribeiro, considera o estilo e linguagem daquele mais arcaicos. Isso já
notáramos, mas este juízo leva-nos à observação que Bernardim Ribeiro era um
graduado da Universidade de Lisboa e em relações pessoais com humanistas; e Cristóvão
Falcão que só tarde entrou na vida da corte. Bouterwek considera que as Canções
líricas que se seguem ao Crisfal pertencem
também a Cristóvão Falcão; e conhecendo a importância da Carta, em que o poeta alude à sua prisão, transcreve essa rubrica
explicativa, pelo seu valor histórico. Vê-se que no princípio do século XIX
começava a ser estudado Cristóvão Falcão: Bouterwek transcreve no seu texto alemão
seis das mais lindas estâncias do Crisfal,
em português. Isso bastava para acordar o interesse da crítica europeia. Foi devido
a esta notícia que um curioso português que estivera em Hamburgo com casa comercial,
durante as lutas fratricidas dos Braganças, adquiriu o raríssimo exemplar de Colônia
de 1559, que guardou com o mais egoístico carinho, sobre o qual planeara uma novela
no estilo das do Conselheiro Bastos. Desse exemplar é que saiu a cópia, que
serviu para a edição feita no Porto em 1871 longe do recurso do Arquivo e das Bibliotecas,
que no ano seguinte viemos a frequentar em Lisboa. Não pudemos logo recomeçar em
Lisboa o nosso estudo; novos volumes da História
da Literatura Portuguesa vieram a lume, e uma intensa atividade de
propaganda filosófica e política, de conferências, congressos, comícios,
revistas e jornais afastaram-nos desses estudos encetados. Estava provocado o interesse
por Cristóvão Falcão; mas fizeram-se estudos, investigações e críticas subjetivas,
folhetos, livros e polêmicas, reclames retumbantes em gazetas, para concluírem
que Cristóvão Falcão era um mito com que andamos séculos iludidos.
---
TEÓFILO BRAGA
"Obras de Cristóvão Falcão"
(1915)
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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