Alexandre Herculano era um daqueles
homens em quem se acham reunidos os predicados mais opostos; possuía uma
sensibilidade ardente e uma profundeza admirável, uma imaginação vulcânica e
uma grande perspicácia na investigação da verdade; a sua inteligência era
eminentemente analítica e sintética; o seu espírito era simultaneamente poético
e filosófico; nas suas obras encontra-se um estilo ao mesmo tempo simples e
solene, conciso e enérgico, claro e imaginoso, sóbrio e elegante. Era
verdadeiramente assombroso o poder e a harmonia das suas faculdades. Herculano
foi um dos gênios mais notáveis do seu século e do seu país; ninguém ainda
revelou uma sensibilidade mais enérgica e varonil do que ele. Em todas as literaturas
raríssimas vezes se encontra um escritor dotado ao mesmo tempo de aptidões tão
elevadas e numerosas.
Não se deve estudar a vida de
Herculano independentemente das suas obras, porque em todas se revela o fogo
sagrado que o anima, a sua grande imaginação, a poderosa energia do seu
temperamento, a rigidez do seu caráter, o seu ardente entusiasmo por tudo
quanto é nobre e belo, o seu amor da ciência e da virtude, a sua paixão pela
liberdade e a sua profunda abnegação; numa palavra, porque em todas as suas
obras está vigorosamente estampado o seu nobre caráter e o seu grandioso espírito.
A índole eminentemente poética e filosófica
de Herculano revelou-se desde a infância; as impressões que se experimentam nos
primeiros anos da vida têm grande analogia com as inclinações dos últimos anos:
nas tendências infantis já se descobre o que se há de vir a ser na idade de
homem.
Pelos escritos de Herculano conhecemos
muitos fatos da sua vida, narrados com a sinceridade que caracterizava o eminente
escritor. No Monge de Císter diz ele, referindo-se aos dias santos dos seus
tenros anos: "A tarde corria pela relva com os outros moços da minha idade,
e travava lutas e gritava e ria e suava e tripudiava nos jogos e brinquedos,
que são próprios daquela idade; mas, quando o sol descia para o horizonte, ia
assentar-me à sombra de uma grande nogueira, sozinho, a ouvir cair num tanque
uma pequena bica d'água, e ali ficava muito tempo a cismar. Em quê? Eu sei lá!
Em nada, provavelmente. Mas cismava e sentia levantar-se-me no coração um
fumosinho de tranquila melancolia, fumosinho que se condensava brevemente nos
olhos em lágrimas, que não chegavam a rolar, mas que neles bailavam. E ali me
achava a noite, e buscavam-me, e desfaziam-me o encanto, mas ticava-me cá a
saudade..."
Estas palavras eloquentes e repassadas
da mais veemente poesia mostram-nos que já na sua infância Herculano revelava
uma grande tendência para a solidão, um temperamento melancólico, um espírito
assaz meditabundo, um coração muito impressionável, uma alma verdadeiramente
poética, onde se começava a acender o amor da natureza. As suas tendências
infantis não denunciariam já o grave e austero solitário de Vale de Lobos?
Aquela criança prodigiosa, que se afastava dos seus companheiros para meditar,
havia de ser mais tarde o vigoroso cantor da Semana Santa e da Arrábida,
o sublime idealista do Eurico e o
renovador dos estudos históricos em Portugal.
Para bem se avaliarem os escritos e as
opiniões de Herculano é mister que examinemos a sua educação. Não há homem
algum, por maior que seja o seu espírito, em quem a educação não exerça uma
poderosa influencia; são profundos os vestígios que deixam no espírito os
primeiros hábitos e ideias.
Herculano era naturalmente religioso
como a maior parte dos grandes poetas, mas a educação que recebeu contribuiu
poderosamente para que no seu espírito ficassem profundamente gravadas as
crenças cristãs. Estas crenças foram certamente modificadas pelo espírito filosófico
de que a natureza o dotara, mas, embora chegasse a combater com a maior energia
os novos dogmas que Roma introduziu no catolicismo, nunca em seu espírito se
extinguiu a religiosidade, nunca renegou um só dos princípios fundamentais do
verdadeiro cristianismo. Em toda a sua vida foi um crente sincero, um entusiasta
da moral evangélica, um espiritualista ardente. Era um velho católico, um
sectário intransigente da igreja primitiva. Foi considerado herege por uma grande
parte do clero, mas aquele herege era um verdadeiro cristão, que não admitia
inovações no catolicismo nem transigia com a Companhia de Jesus.
A luta que se travava no seu espírito
entre a fé e o raciocínio, entre a religião e a filosofia, e que só pode ser
devidamente avaliada por aquelas almas apaixonadas que, depois de receberem uma
educação eminentemente cristã, se acham invadidas pelo verme roedor do ceticismo,
essa luta dolorosa em que se estorce a alma do crente ilustrado está
admiravelmente descrita no magnífico prólogo do "Pároco d'aldeia",
onde se encontra o seguinte trecho, cuja sublimidade rivaliza com a dos mais
belos monumentos da poesia religiosa de todos os séculos:
"Feliz a inteligência vulgar e
rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança
postas pela religião além da morte, sem que um momento vacile; sem que um
momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça! Para ela não há abraçar-se
com a cruz em ímpeto de agonia, e clamar a Jesus: — "Creio, creio, oh
Nazareno! Creio em ti, porque a tua moral é sublime; porque eras humilde e virtuoso;
porque, filho da raça sofredora e austera chamada o povo, eras meu irmão, e não
podias, tão bom, tão singelo, tão puro, enganar teu pobre irmão. Creio, creio,
oh Nazareno! porque até à hora de expirar na ignomínia, até á hora da grande
prova, nunca desmentiste a tua doutrina. Creio, creio, oh Nazareno! porque tu
só nos explicaste o mistério desta associação monstruosa da saúde, do ouro, do
poderio e dos crimes a um lado, e a da enfermidade, da pobreza, da servidão e
da inocência a outro; porque nos explicaste como os destinos humanos se
compensavam além do sepulcro. Creio, creio, oh Nazareno! porque só tu soubeste
revelar a consolação à extrema miséria sem horizonte, e os terrores à completa
felicidade sem termo na vida colocando no lugar do destino a Providência, e no
do nada a imortalidade ! Creio, creio, oh Nazareno! porque a intensidade do teu
viver é um impossível humano; a vitória da tua doutrina severa contra a filosofia
e o paganismo, um milagre; a glória do teu nome de supliciado maior que todas
as glórias das mais altas e virtuosas inteligências do mundo. Mas foste na
verdade um Deus?"
Como é profundamente arrebatador este belíssimo
trecho, onde o sentimento religioso é expresso com tanto vigor como nos Pensamentos de Pascal ou nos Sermões de Bossuet e onde a concisão e a
harmonia se reúnem do modo mais assombroso! No eloquentíssimo prólogo do "Pároco
d'aldeia" há mais profundeza, energia e solenidade do que nos mais belos
capítulos do "Gênio do cristianismo" de Chateaubriand. Este admirável
prólogo é um' verdadeiro poema filosófico, onde se revela um raciocínio
vigoroso aliado a uma pujante imaginação e ardentíssima sensibilidade.
Como Pascal, Herculano caiu no
ceticismo filosófico e, vendo quão profundas eram as dores que a dúvida
produzia na sua alma e quão grande era a fraqueza da razão humana, abraçou-se
com a cruz, procurando refúgio na religião, que era para ele uma fonte perene
de consolações e onde encontrava tudo quanto havia mais belo e grandioso para o
seu coração ardentíssimo, tudo quanto podia satisfazer a sua grande imaginação
de poeta. Para Herculano o cristianismo era não só a mais sublime de todas as
religiões mas a causa principal da civilização moderna. Não ensinou Cristo que
todos os homens eram iguais perante Deus, isto é, perante a Justiça eterna? Não
foi ele quem primeiro pregou a fraternidade universal e a tolerância? Não
causaram as suas palavras vibrantes e sonoras, os seus discursos profundamente liberais
tanto susto aos tiranos e hipócritas?
Para Herculano o cristianismo era um
fato altamente grandioso não só pelo lado poético mas também pelo lado social;
para ele tinham uma significação profundamente análoga estas duas palavras:
redenção e liberdade.
Em Herculano havia duas almas, que
mantinham entre si um perfeito equilíbrio: uma, religiosa e poética; outra, filosófica
e propensa ao ceticismo. A primeira fez dele um escritor de primeira ordem; a
segunda, um pensador profundo, que eliminou da nossa história tudo quanto nela
havia fantástico e milagroso...
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DIOGO ROSA MACHADO
"Alexandre
Herculano: Conferência, 1900".
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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