A tragédia Fausto de Goethe aclamado imperador pontífice dos poetas da Alemanha, é obra indubitavelmente única no seu gênero.
Em menos de meio século todas as nações têm
forcejado para a ler e estudar nos próprios idiomas. Em toda a parte os mais
soberbos talentos lhe sentiram em si os influxos triunfais, ao mesmo passo que
o senso das turbas mal sabia como se houvesse com as trevas e monstros desta
cordilheira de poesia rebentada a súbitas de profundezas desconhecidas.
De nenhum outro livro se tem dito e escrito
tanto; é por que este é que foi o verdadeiro padrão que estremou o mundo
poético antigo do mundo poético hodierno. Pode-se-lhe já hoje, sem medo de
arriscar a profecia, aplicar o que o diabo e os anjos dizem da Margarida no
final da primeira parte do poema: — Sentenciada! — Salva!
Como quer que seja, o indubitável é que esta
Bíblia ou Alcorão, esta como que filosofia mal distinta, esta reforma da
religião poética, merece e necessita que se teime ainda (e Deus sabe até
quando) em na discutir; que só depois de bem padejado o grão na eira e levado
no vento o palhiço, é que se averigua que abastança entrou para a tulha, e com
que pão se pode contar, se ainda assim o gorgulho se não meter meeiro com o
lavrador.
Para que tais apurações (que segundo as
mostras têm ainda de tardar) se possam vir a fazer, claro está que a primeira
condição é conhecer-se a coisa que tem de ser sentenciada. Daqui a multidão de
traduções da tragédia Fausto tentadas
em todos os países em que há literatura; daqui o acolhimento que mais ou menos
a todas elas se concede, e daqui também o continuar-se na própria Alemanha o
estudo dum sem conto de dificuldades de que o poema original nasceu inçado e
ouriçado para os seus próprios conterrâneos.
Em Portugal corria já de anos a esta parte
uma certa adoração pânica do nome de Goethe, e o contagioso assombro da
tragédia Fausto, apenas enxergada mui
por longe entre neblinas. O primeiro português que se determinou em empreender
o descobrimento desta região nova da arte foi, não me consta de outro, meu
irmão José Feliciano de Castilho durante a sua estada em Hamburgo, há hoje o
melhor de trinta anos. Versado já, como quer que fosse, na língua alemã pelo
trato com os da terra, entendeu que bom serviço faria aos da nossa,
passando-lhes para vulgar o que por lá se lhe deparava de mais afamado e
esplêndido, de mais convidativo e fecundo por entre as produções ubérrimas da
caudalosa veia dos Germanos.
Assim escreveu excertos da Messiada de Klopstock, trechos de
Wieland, e anos depois, e já em tempos mais chegados, a tradução do Guilherme Tell e da Maria Stuart de Schiller, e finalmente a do Fausto.
Aqui porém houve de reconhecer que todo o seu
alemão laboriosamente granjeado naquelas versões, não bastava para autor tão
abstruso no pensamento, tão fora do comum no estilo, e tão cheio de nós górdios
na linguagem; e que não havia remédio senão socorrer-se a algum valente e
zeloso auxiliar. Deparou-lho a sua boa estrela na pessoa de um amigo, o Sr.
Eduardo Laemmert, alemão residente como ele e já de muito no Rio de Janeiro,
erudito notável, e hoje sabedor por igual das duas línguas.
Aqui sobre a minha mesa tenho eu o autógrafo
precioso da tradução interlinear e fidelíssima que o Sr. Laemmert fez, não só
em obséquio à amizade, mas também em razão do afeto que lhe merecem os créditos
da terra em que nasceu, e os da que hoje ama como segunda pátria.
Nada mais curioso que este inédito; sente-se
em cada frase e em cada palavra a probidade, o escrúpulo quase beato do
intérprete. O como ele depois de colocar as palavras portuguesas na confusa
ordem das alemãs as concerta fora do hipérbato segundo a nossa ordem usual! O
como procura e acha as frases, os modismos quando os há, que melhor se
correspondem com os do idioma que transplanta! A sinonímia com que os termos
embaraçosos do original vêm com ilustrada crítica trocados em miúdos! E
sobretudo a franqueza de verdadeiro sabedor, com que às vezes declara que não
aventa o senso ou a intenção do seu poeta, senso e intenção que os mais finos
alemães não dissimulam escapar-lhes a miúdo.
Com esta colaboração, pois, levou meu irmão a
cabo a sua tradução em metros variados do, em mais de um sentido,
terribilíssimo e verdadeiramente diabólico poema Fausto.
Se louvores fraternos não foram proibidos
pelos melindres da decência, e repugnantes ao pejo natural, folgaria de
aquilatar o muitíssimo que na sua versão, miudamente examinada e confrontando-a
ponto por ponto com outras estrangeiras, descobri de paciente investigação, de
assisada crítica, de tino divinatório, de acerto e de ousadias felizes de
linguagem, e não raro também de valentia no metro e originalidade na rima.
Outros com menos suspeições para juízes
encarecerão isso tudo se a obra algum dia sair a público. Com pesar meu ponho
este se por não saber o que a este e
outros seus inéditos literários e poéticos, quase todos semi-improvisos de
horas furtadas a imperiosas ocupações de maior monta, o autor fará por
derradeiro quando vir que lhe falecem os ócios indispensáveis para minuciosas e
prolixas emendações, coisa mal compatível com as índoles como a sua,
impetuosas, precipita das, ferventes, indomáveis. A abundância estrepitosa,
brilhante, esplêndida, é do seu; nada lhe custa; a paciência dos aprimoradores
sumos recusou-lha a natureza, que raro ou nunca dá tudo a um só homem.
O seu Fausto,
o seu Tell, a sua Stuart, e bem assim o seu drama Pujol, feito em colaboração com o nosso
amigo Jacques Arago, as suas comédias originais O amor e a morte, Os estudantes de
Coimbra, O mundo, e outros seus improvisos,
formariam uma coleção festejável no juízo dos partidários das nossas boas
letras, se quem tal fundiu não carecesse do necessário lazer e gosto para o
limar e brunir à horaciana: nove anos e dez aperfeiçoamentos!
Por que pois traduzi eu o Fausto, se já em Portugal, e como que de
portas a dentro, se achava traduzido? Direi isto francamente e em poucas
palavras.
A primeira leitura que meu irmão me fez do
seu Fausto, com aquele fogo e
intimativa que lhe anima a declamação, e que nem na prática mais correntia e
doméstica o desacompanha, maravilhou-me, absorveu-me, aturdiu-me; nada mais vi
que excelências e formosuras! Como porém somos conhecidos de largos anos, e sei
que a qualificação de grand dupeur
d’oreilles que a si mesmo dava Andrieux, em ninguém acertou nunca mais à
própria que em meu irmão, requeri logo segunda leitura, feita por outrem,
despida de prestígios e pausada.
Nesta, posto não desaparecessem os motivos da
minha primeira admiração, tive azo de ir descobrindo suas máculas das que o
Horácio perdoava:
...quas aut incuria fudit,
aut humana parum cavit natura.
e sobretudo reconheci que a pressa e fogo do
trabalho deixara por muitas partes menos clareza, e em algumas outras menos
vernaculidade, do que fora para desejar em obra destinada por sua natureza a
estudo e meditação de muita e boa gente.
Enfim como quer que não haja dois gostos
perfeitamente semelhantes, e cada qual abunda no seu senso, muita coisa me
ocorria naquele escrito, que, sem me provocar censura nem merecer tacha de
menos boa, desdizia do que eu tivera preferido por mais fluente, mais
expressivo, ou por qualquer outra razão mais aceitável aos ouvidos do nosso
povo.
Para melhor explicar ao tradutor todas estas
minúcias, ou por ventura impertinências, comecei traduzindo a sua tradução mais
achegada e conchegadamente à índole portuguesa.
Não sei se mereci, sei que obtive, a sua
aprovação a essa primeira amostra. Animei-me, prossegui instado por ele e por
ele próprio coadjuvado.
Nesta luta fraternal entre o Fausto português improvisado e o Fausto português reconsiderado e
reconstruído de frase a frase e de palavra a palavra, se consumiu inteiro o ano
que lá vai de 1870.
O como de tão prolixo trabalho, se a algum
curioso importar por ventura conhecê-lo, aqui vai francamente declarado.
Estão simultaneamente abertas à roda de nós,
a tradução textual e ilustrativa do Sr. Laemmert, a de meu irmão, em certo modo
filha da precedente, a portuguesa do Sr. Ornellas, e quatro francesas em prosa
raro entremeada de pequenos trechos em verso.
Sobre cada período do poeta alemão são
sucessivamente chamados a depor todos estes sete interpretes e acareados uns
com os outros com a maior severidade de crítica. A minha consciência está para
ali como júri imparcial incumbido e ávido de liquidar entre tantos depoimentos
diversos, muita vez confusos e não poucas vezes contraditórios, as máximas
probabilidades de certeza, quando a certezas se não chegue.
Passos há, devo confessá-lo, em que nem
sequer boas probabilidades se liquidam; discute-se, reestuda-se, medita-se de
novo e quando Deus quer transfere-se para hora melhorada, ou para outro dia, a
solução da dúvida com que o atual momento se não atreve, até que afinal,
atinada a verdadeira, ou a mais plausível, ou a menos ruim sabida da
dificuldade, diligenceio expor a coisa a nosso modo, que todos a entendam sem
esforço e a possam escutar sem desagrado nem estranheza.
Devo declarar explícita e solenemente que a
terem-me desacompanhado as luzes, a sagacidade investigativa com que meu irmão,
só ele, me auxiliou para eu poder refundir acertadamente o seu primeiro tentame,
nunca eu daria conta dele.
Logo nas primeiras jornadas me houveram
faltado as forças, a fé, o ânimo e a vontade, porque (e aí vai outra revelação
arriscada a graves perigos) a minha crença nas excelências, nas vantagens, no
préstimo real e efetivo da tragédia Fausto, não era nem é ainda hoje tão
exaltada, tão ardentemente devota como a de meu irmão; diferença essa
fundamental, que a miúdo nos fazia perder em altercações escusadas o tempo que
melhor se lograra em apressar a tarefa começada.
De tão espinhoso labirinto, ao cabo de tantos
dias de trabalho ininterrupto, e não poucas noites desveladas até sol fora,
saiu a presente versão, por mim ditada, e escrita pela própria pena que lançara
a primeira.
Fora essa, até por ser a primeira, obra de
muito maior mérito e dificuldade, posto que a segunda, pelo tempo que se lhe
consagrou, e pelo valioso concurso de circunstâncias que segundo se vê a
favoreceram, poderá talvez obter maior número de sufrágios. Uma recomendação, e
para mim a mais invejável, tem ela já; e vem a ser a generosa preferência que
meu irmão mesmo lhe liberalizou; ato esse que, ainda mais do que a mim, o honra
a ele.
Aqui seria já supérfluo ponderar uma verdade,
que à primeira vista pareceria paradoxo, a saber: que dadas certas circunstâncias
pode um poeta de consciência verter a obra de outro sem aliás lhe conhecer a
língua, muitos fatos o comprovam. Monti, que deu à Itália a melhor tradução da Ilíada, pelo menos a que se lê com maior
gosto, não sabia o grego.
Os Salmos de David, centenas de vezes
passados a diversas línguas por poetas excelentes, nunca talvez o foram do
idioma original. O Oberon, que
traduzido diretamente do alemão pela Marquesa de Alorna tão dessalgado saiu,
que mal deixa adivinhar porque é que a Wieland se dera a qualificação de
Voltaire do Norte, o Oberon veio a
ser um dos mais saboreados poemas em nossa língua, saído da pena de Filinto,
que nos declara não saber palavra do alemão; o meu admirável poeta Machado de Assis,
ornamento brilhantíssimo das letras brasileiras, deu-nos lindos fragmentos de
poesias orientais tomadas não dos textos primitivos, senão de uma interpretação
inglesa; e sem me andar à procura de mais exemplos, eu próprio, que do
dinamarquês e do sueco não entendo uma sílaba única, traduzi poesias suecas e
dinamarquesas, e fui por competentes juízes aprovado. Tudo esteve em ter quem
minuciosamente mas interpretasse. Quanto ao grego, peço meças em ignorância ao
Vicente Monti. O mestre que tive dessa língua, no meu primeiro tirocínio de
humanidades, desconhecia-a quase tão crassamente como os seus ouvintes, o que
me fez perder-lhe para logo todo o gosto; e todavia não foi isso parte para eu
não dar uma tradução de Anacreonte e outra do Rapto de Europa, por Moscho, com as quais os raros que têm voto na
matéria não ficaram mal avindos.
Por aqui me cerro, ponderando só que me
parece questão ociosa esta de se perquirir se um tradutor sabe ou não a língua
do seu original; o que importa, e muito, é se expressou bem na sua, isto é, com
vernaculidade, clareza, acerto e a elegância possível, as ideias e afetos do
seu autor.
Fazem-se retratos do sol para o tornar, como
quer que seja, conhecido de quem fito a fito o não encararia; e como se avém na
empresa o desenhador? Não podendo encará-lo em frente, copia-o da imagem
estampada no espelho refletor; aí desapareceram os esplendores que deslumbram,
mas as feições do astro descobriram-se. Este símile da física, tão sabido de
toda a gente, explica, me parece, com assaz de propriedade, o como se podia
fazer, e se fez, das já mencionadas traduções, esta novíssima reprodução da
maravilha germânica. Neste particular, tenho que não há mais contas que pedir,
nem mais explicações que dar a curiosos.
Outra e derradeira declaração.
A divisão e subdivisões do poema, como neste
livro aparecem, não pertencem ao original, nem também o descritivo do cenário e
outras particularidades da execução teatral.
Goethe, como também Molière, como todos os
dramaturgos da Grécia e da Itália antiga, transcuravam miudear com estas e
semelhantes circunstâncias os seus grandiosos poemas, ainda que o subsídio de
tais acessórios bem poderia contribuir para lhes completar as obras
aclarando-as e para solver de antemão de modo autêntico e, por que assim o
digamos, oficial, muitas perplexidades, muitas dúvidas, muitos perigos de
desacerto, em que forçosamente laborariam empresários e atores quando
pretendessem expor tais dramas aos seus públicos, especialmente em países
remotíssimos, em civilizações quase em tudo outras, quando dos primitivos usos
e costumes pouquíssimo ou nada subsistisse.
Em Molière e Goethe, sendo aliás ambos diretores
de teatro, custa realmente a explicar esta omissão, e em Molière ainda mais,
que além de empresário fora também ator, como o fora Plauto, que lhes legara o
mau exemplo tal como já o havia recebido de predecessores seus, poetas e
comediantes da grande Grécia. Fosse qual fosse a causa desta falta deplorável,
o caso é que todos esses notabilíssimos engenhos a cometeram com dano seu e
prejuízo ainda maior para quem lá para ao diante os pretendesse interpretar
conscienciosamente.
Todas essas lacunas me pareceu indispensável
preencher; preenchi-as pois como pude pela reflexão e conjecturando, isto e,
apalpando muita vez por entre sombras cerradíssimas. Outros fariam ou farão melhor;
eu fiz o que pude. E por aqui me cerro quanto a isto.
Ao segundo Fausto, ao Fausto da
velhice de Goethe, não me atrevi, seria esse um trabalho ainda mais fragoso e,
quando as dificuldades se vencessem, menos acondicionado para ser bem aceito da
nossa gente.
Na segunda parte, dizem alemães, é que o
autor mais se despendeu em gentilezas e esmeros líricos. Pode ser; contemplado
nos refletores não o parece; e depois quando essas excelências acidentais e de
mera forma, rara vez traduzíveis, sejam tais como no-las querem encarecer,
tantos e tão crespos são no último Fausto
os enigmas filosóficos, tão abstruso o senso das ficções, e as ficções
mesmas tão desnaturais, tão inverossímeis, tão impossíveis, (ia-me quase
escapando tão absurdas) que o bom gosto e o bom senso, que tão benévolos
perdoaram e receberam a lenda velha do Dr. Fausto, não sei como se haveriam com
o Fausto último. O primeiro, o nosso,
foi um gigante; o último figura-se ao espírito da nossa consciência o homúnculo, um produto abusivo das forças
da arte.
Agora é que de vós me despeço a valer,
leitores caríssimos, para vos deixar já à pratica de muito melhor poeta, e
inquestionavelmente um dos maiores de todo o mundo.
CASTILHO
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