12/14/2019

A poesia de Fagundes Varela (Resenha)





A poesia de Fagundes Varela
Na poesia de Fagundes Varela, o satanismo byroniano de Álvares de Azevedo, o indianismo de Gonçalves Dias e o condoreirismo de Castro Alves e Tobias Barreto se misturam. Há no seu estro uma tal versatilidade de sentimento e expressão, como só encontraremos, depois, entre os parnasianos e naturalistas. Infelizmente o poeta do Evangelho nas Selvas não teve, ainda, o seu lugar devidamente marcado na história da nossa literatura. Franklin Távora, Sílvio Romero e José Veríssimo, para não falar em Lery dos Santos e Visconti Coaraci, meros e lacunosos biógrafos, fixaram-lhe somente alguns aspectos, contornaram-lhe apenas a múltipla e interessantíssima fisionomia, sendo que Távora e Sílvio andaram mais perto da sua psique do que todos os outros.
Fagundes Varela não é unicamente um dos nossos bons liristas, mas também, e principalmente, um dos nossos melhores poetas descritivos. Esse dom de pintor, que foi singular em Gonçalves Dias, e que é muito da índole dos nossos escritores, ele o teve como raros na poesia brasileira. Suas descrições têm vigor, não são monótonas, como as de Bruno Seabra, Bitencourt Sampaio ou Juvenal Galeno; são leves, movimentadas e límpidas. Em muitas, nada fica a dever ao cantor maranhense, a quem amou e imitou confessadamente. Na companhia dos condoreiros, formado entre o exagero e a ênfase dos românticos hugoanos, não se entregou, embora, a desregramentos de forma e de sintaxe. Ficou em um meio termo discreto e apurado, como ficara o próprio Gonçalves Dias entre o farelório estrepitoso de Magalhães e Porto-Alegre.
Sua poesia não é de segunda mão, como afirmou José Veríssimo, somente porque há uma certa semelhança entre ela e a de Castro Alves. Varela, posto em confronto com muitos dos seus trombeteados êmulos, não perderá a mínima parcela do real valor que possui. Ao contrário. Ver-se-á, então, que ele tem uma forma muito mais perfeita e um estilo muito mais variado e múltiplo do que geralmente se supõe. Há em sua obra inspirações de toda ordem, da alma e da natureza, da vida rústica e civilizada, da fantasia e da realidade, do mundo fictício e presente.
Leiam-se, como exemplo de lirismo popular, as trovas seguintes:
A casa era pequenina,
Não era? — Mas tão bonita
Que teu seio inda palpita
Lembrando delia, não é?

Queres voltar? eu te sigo,
Eu amo o ermo profundo;
A paz que foge do mundo
Preza aos tetos de sapé.

Bem vejo que tens saudades,
Não tens? pobre passarinho!
De teu venturoso ninho
Passaste à dura prisão!

Vamos, as matas e os campos
Estão cobertos de flores,
Tecem mimosos cantores
Hinos à bela estação.

Escuta filha, a estas horas
Que a sombra deixa as alturas,
Não cantam as saracuras
Junto aos lagos cor de anil.

Os vagalumes, em bando
Correm sobre a relva fria,
Enquanto o vento cicia
Na sombra dos taquarais.
Sua palheta podia fornecer-lhe, como nos versos ao Vagalume, gamas e toques delicadíssimos:
Quando apareces, o lago
De estranhas luzes fulgura,
Os mochos voam medrosos
Buscando a floresta escura.
As folhas brilham, refletem,
Como espelhos de esmeralda,
Fulge o íris nas torrentes
Da serrania na falda.
O grilo salta das garças,
Pulam gênios nos palmares,
Começa o baile dos silfos
No meio dos nenúfares.


Nos seus quadros campesinos há notas assim:

As trepadeiras curvam-se à janela,
Gemem no teto os pombos amorosos,
Suspenso à porta, na prisão gorjeia
O sabiá das serras.
Tudo isto ela adorava, e ela não vive!
E ela passou ligeira como a névoa
Que o vento da manhã varre do outeiro,
E dissipa nos ares!
Tudo isto ela adorava! Ao sol poente,
Leda e risonha, coroada a fronte
De rubras maravilhas, leve, airosa,
Vinha regar as flores;
E em meio erguida a barra do vestido,
Saltava como a corça, ora amparando
A haste pendida de viçosa dália,
Outras vezes solicita
Bravias plantas arrancando em torno
Dos pequenos craveiros, ou tranquila
Contemplando os botões que se entreabriam
A frescura da tarde.
A natureza do nosso trabalho não permite, infelizmente, maior numero de transcrições. Estas que aí ficam, entretanto, dão bem a medida do seu engenho, que, por muitos modos, se casa ao dos mais famosos poetas modernos e, até contemporâneos do Brasil. A justeza da sua expressão, o ritmo dos seus metros, onde quase não se observa a toada estafante dos versos de nove e onze sílabas, substituídos geralmente por decassílabos e redondilhas, fazem-no um poeta divergente, nem acentuadamente naturalista, nem exclusivamente romântico. Varela é, pois, com Machado de Assis e Luiz Guimarães Júnior, uma figura de transição entre o romantismo e o parnasianismo.
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RONALD DE CARVALHO
"Pequena História da Literatura Brasileira (1937)
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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