A missão da Rússia
A Rússia é
bárbara.
Entre a
sociabilidade cortes, o sentimento da justiça e a expansiva espiritualidade
latina, ou saxônia, penetrou, vigorosamente, o impulsivo e a rude selvatiqueza
do tártaro, para se criar o tipo histórico do eslavo — isto é, um
intermediário, um povo de vida transbordante e forte e incoerente, refletindo
aqueles dois estádios, sob todas as suas formas, da mais tangível à mais
abstrata, desde uma arquitetura original, em que passa do bizantismo pesado
para o gótico ligeiro e deste para a harmonia retilínea das fachadas gregas —
ao temperamento emocional e franco, a um tempo infantil e robusto, paciente
ensofregado, em que se misturam uma incomparável ternura e uma assombradora
crueldade.
Polida demais
para o caráter asiático, inculta demais para o caráter europeu — funde-os. Não
é a Europa, e não é a Ásia: é a Eurásia desmedida, desatando-se, do Báltico ao
Pacifico, sobre um terço da superfície da terra e desenrolando no complanado
das estepes o maior palco da história.
A Rússia veio
ocupá-la retardatária.
Nasceu quando
os demais povos renasciam. Tártara até o século XV, apareceu — engatinhando
para o futuro balbuciante na sua língua sonora e incompreendida — quando a
Europa em peso, num repentino refluxo para o passado, ia transfigurar-se entre
os esplendores da Renascença e iniciava os tempos modernos, deixando-a, a
iniciar, tateando e tarda, a sua longa Idade Média, talvez não terminada.
Mas aí está a
sua força e a garantia de seus destinos. Ninguém pode prever quanto se
avantajará um povo que, sem perder a energia essencial e a coragem física das
raças que o constituem, aparelhe a sua personalidade robusta, impetuosa e
primitiva, de bárbaro, com os recursos da vida contemporânea.
E nenhum
outro, certo, no atual momento histórico, talvez gravíssimo — porque devem
esperar-se todas as surpresas deste renascer do Oriente, que o Japão comanda —
é mais apto a garantir a marcha, o ritmo e a diretriz da própria civilização
européia.
Há quem negue
isto. No último número, de junho, da North American Review, Carl Blind,
nome que se ajusta bem a um deslumbrado diante do grande plágio do Japão —
negando ao império moscovita o papel de campeão da raça ariana contra o perigo
amarelo, esteia-se numa sabidíssima novidade: o russo é duplamente mongólico:
é-o pela circunstância inicial de o constituírem as tribos khazares e turanas,
e pelo fato acidental da conquista tártara, no século XIII, dos netos de Gengis
Khan.
Atraído pela
simplicidade deste argumento, conclui que não pode ser uma barreira ao
pan-mongolismo um povo tão essencialmente asiático.
Mas se esquece
de que o russo é, antes de tudo, o tipo de uma raça histórica. Turano pelo
sangue, transmudou-se, em quinhentos anos de adaptação forçada, sob o
permanente influxo do Ocidente.
A sua melhor
figura representativa é a daquele original e inquieto Pedro, o Grande,
perlustrando a Europa toda num perquirir incansável, que o arrebatava das
escolas para os estaleiros, dos estaleiros para as oficinas, das oficinas para
os salões, entre os filósofos, entre os mestres e artífices, entre os cortesãos
e os reis, observando, indagando e praticando, imperador, aprendiz e discípulo,
bárbaro perdidamente enamorado da civilização, propelido por uma ânsia
inextinguível de saber e iniciar-se em todos os segredos da existência nova,
que anelava transplantar ao seu povo ingênuo, grandioso e robusto...
Sabe-se quanto
foi longa a tarefa.
Durante todo
este tempo, não rebrilha o mais apagado nome eslavo. Houve as tormentas sociais
do século XV com a renascença literária e a renascença religiosa; houve o
deslumbramento do período clássico, e a renovação filosófica subsequente, e o
cataclismo revolucionário; por fim, de par com o desafogo franco das ciências,
o alvorecer encantador do romantismo.
A mesma
Turquia teve no renascimento a sua idade de ouro, na corte do magnífico
Solimão, onde imperava absolutamente o místico Baki, "o sultão da poesia
lírica".
A Rússia, não.
Na sua iniciação demorada, impondo-lhe o abandono da originalidade de pensar e
sentir pela imitação e pela cópia obrigatórias, quedou pouco além das rudes
rapsódias heroicas dos kalmukos.
Apareceu de
golpe, já feita, e foi um espanto. Na região tranquila das ciências e das
artes, parecia reproduzir-se a invasão da "Horda Dourada" dos
mongóis. De um lado, Wronsky, uma espécie de Átila da matemática,
convulsionando-a com a sua alucinação prodigiosa de gênio, ora transviado nos
maiores absurdos, ora nivelado com Lagrange na interpretação positiva do
cálculo; e de outro lado, Pouchkine, prosador e poeta, imprimindo no verso e na
novela o vivo sentimentalismo e a energia e as esperanças do seu país. Então, o
poder assimilador do gênio eslavo ostentou-se em toda a plenitude; e, pouco
depois, a nação, educada pela Europa, aparecia-lhe com uma originalidade
inesperada, apresentando-lhe aos olhos surpreendidos e aos aplausos que
rebentaram, espontâneos, com Turguenieff, com Dostoiévski, com Tchkkorf e com
Tolstoi, esse naturalismo popular e profundo repassado de um forte sentimento
da raça, que tanto contrasta com a organização social e política da Rússia.
Estava feita a
transformação: as gentes, constituídas de fatores tão estranhos, surgiram
revestidas das melhores conquistas morais do nosso tempo. Mostra-o essa mesma
literatura, onde vibra uma nota tão impressionadora dramática e humana.
Qualquer romance russo é a glorificação de um infortúnio. Quem quer que os
deletreie variando vontade de autores e de assuntos, deparara sempre a dolorosa
mesmice da desdita invariável, trocados apenas os nomes aos protagonistas:
todos humildes, todos doentes, todos os fracos: o mujique, o criminoso
impulsivo, o revolucionário, o epiléptico incurável, o neurastênico bizarro e
louco. Desenvolvendo este programa singular e inexplicável, porque, segundo
observa Talbot, não há país que possua menor número relativo de degenerados, o
que domina o escritor russo não é a tese preconcebida, ou o caráter a explanar
friamente, senão um largo e generoso sentimento da piedade, diante do qual se
eclipsam, ou se anulam, o platônico humanitarismo francês e a artística e seca
filantropia britânica.
Nada mais
expressivo no trair a alma nova de uma raça do mesmo passo em conflito com a
retrógrada organização social, que a comprime, e com o utilitarismo absorvente
destes tempos. Conforme um acerto de F. Loliée, o que caracteriza esta
mentalidade é a preocupação superior dos fatos morais, o eterno problema
altruísta, para que tendem todos os impulsos individuais ou políticos, através
de uma análise patética dos menores abalos da natureza humana e visando,
essencialmente, no franco estadear dos males profundos da Rússia, estimular as
suas grandes aspirações e a sua marcha para o direito e para a liberdade. O
próprio niilismo, com as suas mulheres varonis, os seus pensadores severos, os
seus poetas sentimentais e ferozes, e os seus facínoras românticos — um
desvario dentro de um generoso ideal — reponta às vezes nesta crise, como a forma
tormentosa e assombradora da justiça.
No conflito o
que se distingue bem é o choque inevitável das duas Rússias, a nova, dos
pensadores e artistas, e a Rússia tradicional dos czares; o recontro do ária e
do kalmuko.
Daí a sua
fisionomia bárbara, porque é incoerente e revolta, surgindo numa profusão
extraordinária de vida, em que os velhos estigmas ancestrais, cada vez mais
apagados, mal se denunciam entre os esplendores de um belo idealismo cada vez
mais intenso e alto...
***
Mas daí também
a sua missão histórica neste século. Conquistada pelo espírito moderno, a
Rússia tem, naqueles estigmas remanescentes, admiráveis recursos para a luta
que nesta hora se desencadeia no Extremo Oriente. O seu temperamento bárbaro
será o guarda titânico invencível, não já de sua civilização, mas também de
toda a civilização europeia.
O conceito é
de Havelock Ellis: o centro da vida universal dos povos tende a deslocar-se
para o Pacífico circundado pelas nações mais jovens e vigorosas da terra — a
Austrália, o Japão e as Américas.
Ali a Rússia
não tem apenas o privilégio de ser a única representante da Europa, senão o de
ser a única entre as nacionalidades que, por um longo contacto com a barbaria,
pelo hábito de vencer e dominar os impérios orientais tipicamente bárbaros e por
conservar ainda vivazes os atributos guerreiros do homem primitivo — está mais
bem aparelhada a constituir-se o núcleo de resistência do "bloc"
ocidental contra a ameaça asiática.
E
inevitavelmente — quaisquer que sejam os prodígios dos bravos generais e dos
bravíssimos almirantes japoneses — a civilização seguirá para aquele novo mundo
do futuro — que margeará o Pacífico — tomando uma passagem no Transiberiano...
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