O forasteiro
que rio último quartel do século XVIII demandasse os povoados de Minas Gerais,
ereto da noite para o dia na extensa zona do distrito Diamantino, sentia a
breve trecho o mais completo contraste entre a aparência singela daqueles
modestos vilarejos e as gentes que neles assistiam.
Entrava pelas
ruas tortuosas e estreitas, ora marginando as lezírias dos córregos em
torcicolos, ora envesgando, clivosas, pelo viés dos pendores, ladeadas de casas
deprimidas de beirais desgraciosos e saídos; percorria-as calcando um áspero
calçamento de pedras malgradadas; desembocava num largo irregular onde avultava
a picota do pelourinho, ameaçadora e solitária; deparava mais longe duas ou
três pesadas igrejas de taipa; e, certo, sentiria crescer a desoladora saudade
do torrão nativo se naquele curto trajeto não se lhe antolhassem
singularíssimos quadros.
Surpreendiam-no,
empolgantes, o excesso de vida daqueles recantos sertanejos e o espetáculo
original da Fortuna domiciliada em pardieiros.
E se
conseguisse abarcar de um lance a multidão doudejante e inquieta, que atestava
as vielas e torvelinhava nas praças, teria a imagem estranha de uma sociedade
artificial, feita de elementos díspares transplantados de outros climas e mal
unidos sobre a base instável, dia a dia destruída, ruindo solapada pela
vertigem mineradora — da própria terra em que pisavam.
Acampado nos
cerros, o povo errante levava para aqueles rincões — escalas transitórias
ocupadas à ventura — todos os hábitos avoengos que não afeiçoavam ao novo meio.
E estadeava todos os seus elementos incompatíveis fortuitamente reunidos, mas
repelindo-se pelo contraste das punições e das raças: — dos congos tatuados que
moirejavam nas lavras, com a rija envergadura mal velada pelas tangas estreitas
ou rebrilhando, escura, entre os rasgos das roupas de algodão; aos
contratadores ávidos e opulentos, passando por ali como se andassem nas cidades
do reino, entrajando as casacas de veludo, de portinholas e canhões dobrados,
abertas para que se visse o colete bordado de lantejoulas, descidas sobre os
calções de seda de Macau atacados com fivelas de ouro. A grenha inextricável do
africano xucro contrastava com a cabeleira de rabicho, empoada e em volta de
um cadarço de gorgorão rematando numa laçada, do peralvilho rico; a alpercata
de couro cru estalava rudemente junto do sapato fino, pontiagudo, cravejado de
pérolas, do reinol casquilho, graciosamente bamboleante com o andar que
ensinavam os "mestres de civilidade"; o cacete de guarda-costas
vibrava próximo do bastão de biqueira de ouro, finamente encastoado; e o facão
de cabo de chifre, do mateiro, fazia que ressaltassem, mais artísticos, os
brincos de ourivesaria dos floretes de guarnições luxuosas dos fidalgos
recém-vindos.
Ia-se de um
salto de uma camada social a outra.
Parecia não
haver intermédios àquela simbiose da Escravidão com o Ouro, porque não havia
encontrá-los mesmo no agrupamento incaracterístico, e mais separador que
unificador, dos solertes capitães-do-mato, dos meirinhos odientos, dos
bravateadores oficiais de dragões, dos guarda-mores, dos escrivães, dos
pedestres e dos exatores, açulados pelas ruas, farejando as estradas e as
picadas, perquirindo os córregos e os desmontes, em busca do escravo;
filando-se às pernas ágeis dos contrabandistas; colados no rastro dos
contraventores; e espavorindo os faiscadores pobres, inquirindo, indagando,
prendendo, intimando e, quase sempre, matando...
Sobre tudo
isto dois tremendos fiscais que a Corte longínqua despachara apercebidos de
faculdades discricionárias: o Ouvidor da comarca e o Intendente dos diamantes.
Tinham a
tarefa fácil de uma justiça que por seu turno se exercitava entre extremos,
monstruosa e simples, mal variando nos "termos de prisão, hábito e
tonsura"; oscilando em mesmices torturantes, da devassa ao pelourinho, do
confisco à morte, dos troncos das cadeias aos dez anos de degredo em Angola.
E que a terra
farta, desentranhando-se nos minérios anelados, não era um lar, senão um campo
de exploração predestinado a próximo abandono quando as grupiaras ricas se
transmudassem nas restingas safaras, e fossem avultando, maiores, mais solenes
e impressionadoras, sobre a pequenez dos povoados decaídos, as Catas silenciosas
e grandes montões de argila revolvidos tumultuando nos ermos à maneira de
ruínas babilônicas...
***
Mas fora da
mineração legal adscrita na impertinência bárbara dos alvarás e cartas régias;
trabalhada de fintas, alternativamente agravada pelo quinto e pela captação
exaurida a princípio pelos contratadores e depois pela extração real,
estendera-se intangível, e livre, e criminosa, irradiante pelos mil tentáculos
dos ribeirões e dos rios, desdobrando-se pelos tabuleiros, ou remontando às
serras, a faina revolucionária e atrevida dos garimpos.
Despejados dos
arraiais; esquivos pelas matas que varavam premunidos de cautelas porque não
raro no glauco das paisagens coruscavam, de golpe, os talins dourados e os
terçados dos dragões girando em sobrerrondas céleres; caçados como feras — os
garimpeiros, incorrigíveis devassadores das demarcações interditas, davam o
único traço varonil que enobrece aquela quadra.
Vinham de um
tirocínio bruto de perigos e trabalhos, nas velhas minerações; e, únicos
elementos fixos numa sociedade móvel, de imigrantes, iam capitalizando as
energias despendidas naqueles assaltos ferocíssimos contra a terra.
Desde as
primitivas buscas pelos leitos dos córregos, dos caldeirões e das itaipavas,
com o almocafre curvo ou a bateia africana, na atividade errante das
faisqueiras; aos trabalhos nos tabuleiros, arcando sob os carumbés refertos ou
vibrando as cavadeiras chatas até aos lastros ásperos dos nódulos de hematita
das tapanhuacangas; às catas mais
sérias, às explorações intensas das grupiaras pelos recostos dos morros
que broqueados de cavas circulares e sarjados pelas linhas retilíneas e
paralelas das levadas, desmantelados e desnudos, tornavam maiores as tristezas
do ermo; e, por fim, à abertura das primeiras galerias acompanhando os veios
quartzosos, mas sem os resguardos atuais, tendo sobre as cabeças o peso
ameaçador de toda a massa das montanhas — eles percorreram todas as escalas da
escola formidável da força e da coragem.
Vibraram
contra a natureza recursos estupendos.
Abriram canais
de léguas ajustados às linhas das cumiadas altas; e adunando a centenas de
metros de altura, em vastos reservatórios, as águas captadas, rompiam-nos.
Ouviam-se sons das trompas e buzinas prevenindo os eitos de escravos derramados
nas encostas, para se desviarem; e logo após uma vibração de terremoto, um como
desabamento da montanha, a avalancha artificial desencadeada pelos pendores,
tempesteando e rolando — troncos e galhadas, fraguedos e graieiros,
confundidos, embaralhados, remoendo-se, triturando-se, descendo
vertiginosamente e batendo embaixo dentro dos amplos mundéus onde
acachoava o fervor da vasa avermelhada lampejante das palhetas apetecidas...
Desviavam os
rios; invertiam-lhes as nascentes, ou torciam-nos cercando-os; e, por vezes,
alevantavam-nos, inteiros, sobre os mesmos leitos. Todo o Jequitinhonha, adrede
contido e alteado por uma barragem, derivou certa vez por um bicame colossal,
de grossas pranchas presas de gastalhos, deixando em seco, poucos metros
abaixo, o cascalho sobre que fluía há milênios...
E ali embaixo,
centenares de titães tranquilos, compassando as modinhas dolentes com o soar
dos almocafres e alavancas, labutavam, cantando descuidados, tendo por cima o
dilúvio canalizado...
Assim foram
crescendo...
De sorte que
quando a metrópole, exagerando a antiga avidez ante a fama dos novos
"descobertos", se demasiou em rigores e prepotências para tornar
efetivo o monopólio da extração, isolando aquela zona de todo o resto do mundo,
dificultando as licenças de entrada e os passaportes, multiplicando registros e
barreiras, extinguindo os correios, e tentando mesmo circunvalar as
demarcações, não lhe bastando o permanente giro das esquadras de pedestres,
baldaram-se-lhe em parte os esforços ante os rudes caçadores furtivos da
fortuna, inatingíveis às fintas, às multas, às tomadias, aos confiscos, às
denúncias, às derramas; e que aliados aos pechelingueiros vivos, aos tropeiros
ardilosos passando entre as patrulhas com o contrabando precioso metido entre
os forros das cangalhas, aos comboieiros que enchiam os cabos ocos das facas
com as pedras inconcessas, ou aos mascates aventureiros intercalando-as nos
remontes dos coturnos grosseiros — estendiam por toda a banda, até ao litoral,
a agitação clandestina, heroica e formidável.
"Desaforados
escaladores da terra!..." invectivavam as ríspidas cartas régias,
delatando o desapontamento da Corte remota ao pressentir escoarem-se-lhe as
riquezas pelos infinitos golpes que lhe davam nos regimentos aqueles
adversários.
E armou contra
eles exércitos.
Bateram
longamente os caminhos as patas entaloadas dos corpos de dragões.
Adensaram-se
em batalhões as patrulhas errantes e dispersas dos pedestres; e avançaram ao
acaso pelas matas em busca dos adversários invisíveis.
Os garimpeiros
remontavam às serras: espalhavam-se em atalaias; grupavam-se em guerrilhas
diminutas; e por vezes os graves intendentes confessavam aos conselhos de
ultramar a "vitória de uma emboscada de salteadores".
Finalmente se
planearam batalhas.
Rijos
capitães-generais, endurados nas refregas da Índia, largaram dos povoados ao
ressoar das preces propiciatórias e sermões, chefiando os terços aguerridos, e
arrastando penosamente pelos desfrequentados desvios as colubrinas longas e os
pedreiros brutos.
Mas roncearam,
inutilmente, pelos ermos.
Enquanto à
roda, desafiando-os, alcandorados nos itambés a prumo; relampeando no
súbito fulgir das descargas, das tocaias; derivando em escaramuças pelos
telhados dos montes; arrebentando à boca das velhas minas em abandono, de
repente escancaradas numa explosão de tiros — os "desaforados escaladores
da terra", os anônimos conquistadores de uma pátria, zombavam
triunfalmente daqueles aparatos guerreiros, espetaculosos e inofensivos.
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