A situação de Portugal
Neste
pouco mais de século, que vai de 1497, com Vasco da Gama na Índia, a 1612, com
o termo do império comercial português no Oriente, tem relações muito
interessantes ao Brasil.
Dom
João II, com o Cabo de Boa Esperança dobrado, se morre onerado de dívidas, cujo
pagamento pediu ao sucessor, antevê a fortuna próxima das Índias. No testamento
pedia a Dom Manuel apartasse das rendas do Estado quatro milhões de reais,
anualmente, para amortização de débitos, alguns que vinham do pai, Afonso V.
Dom
Manuel embriaga-se com o Oriente e crê no otimismo de Afonso de Albuquerque: as
especiarias das Índias, deduzidos os soldos pagos, as perdas do mar e de
mercadoria, valiam um milhão de cruzados. Veja
Voss Alteza, se ha arvore que este fruyto daa cad ano, se merece sser bem
ortado e bem rregado e bem favorecido... Nam creo que na cristimdade avera rey
tam rico como Voss Alteza (Carta de I
de abril 1512). Contudo, as despesas excediam as rendas, tomava-se
emprestado, não havia nem dinheiro, nem mercadoria, vinha a queixar-se o
próprio Albuquerque, e Dom Manuel morre também endividado. Por testamento
instava ao filho vendesse ou empenhasse, faltando outros meios, joias, pratas,
móveis, o necessário para resgate do crédito.
Com
Dom João III, desde 1528, pelo menos, Portugal vende padrões de juros, que são
como títulos de empréstimo, apólices ou obrigações da dívida pública, diríamos
hoje, para pagar, em 30, a
Carlos V, o direito — “possível” — às Molucas; para o dote da infanta D.
Isabel, rainha de Espanha; para acudir aos gastos das armadas e das colônias.
Em vinte anos de reinado, confessa El-Rei: para Espanha, consórcios dinásticos,
1.400.000 cruzados; para despesas extraordinárias nas Índias, inclusive Maluco,
1.150.000 cruzados; para África, Mina e Brasil, 560.000 cruzados.
Total:
a quebra ou falência inevitável deu-se em 1560, cessando os credores
estrangeiros de ser pagos... Invocou-se, então, a doutrina da Igreja contra a
usura: servia para não pagar os juros vencidos, porém não impedia os novos
empréstimos a juros, prometidos, e depois condenados. Em 1549 acabara-se com a
feitoria de Flandres, há muito onerosa; em 1570 Dom Sebastião acaba com o
privilégio do comércio das Índias, por não dar já resultado... O Estado faz
contratos, e os contratantes, estrangeiros ricos, quebram, os Rott, Rovelasco,
Welsers, Höchstellers, Affaitatis...
Dom
João III que viveu sempre em aflições de
dinheiro (A. Pimenta, D. João III), morre na falência...
Dona Catarina continua, na pobreza, como, depois, Dom Henrique, sem remédio.
Entretanto, sobrevém o sonho heroico e dispendioso de Dom Sebastião, acabado em
ruína e dívidas. Os Filipes são concordes, sem jeito. Em 1585 o porto de Lisboa
é fechado aos hereges inimigos de Espanha: os Ingleses e Flamengos irão às
Índias tomar as colônias de Portugal, que Espanha, entretanto, não saberá
proteger. Prepara-se o custoso desastre da “Invencível Armada”, (1588), com
toda a frota portuguesa, contra a Inglaterra...
É
nessa disposição de falência e ruína, que Portugal empreende a colonização do
Brasil, tendo de vencer a ambição belicosa de Franceses, a inclemência dos
reinóis escravizando os índios que os Jesuítas protegem, tentando uma obra de
missões organizadas, moral e economicamente, que só no século XVIII e ao Norte
dará resultados sensíveis. Ao tempo das premências de D. João III, diz uma
folha feita pelo Conde da Castanheira, segundo refere Frei Luiz de Sousa, do
ano de 42: — No Brasil tem Vossa Alteza
gastado muyto dinheiro, e começou a gastar no anno de 1530. Mysterio foy grande
fazer-se a primeira despesa afim de coisa que o não merecia (isto é, sem lucro imediato) e
seguir-se della desarreigarem-se daquella terra os franceses, que já nella se
começavão a prantar e lançar raízes (e mais ainda se gastou para botar fora os
franceses, já estabelecidos). Gastava para povoar e defender, o que
não rendia...
É
nessa disposição de espírito, agoniado pela falência, repito, que Portugal a quarta parte nova os campos ara... (Lusíadas).
Por não sei que descuido esteve esta
terra por povoar, dirá na frase tão citada Frei Vicente do Salvador;
entretanto ele mesmo reconhece que há pouco que
se começou a povoar, já se hão despovoado alguns lugares: não foi descuido
senão falta de gente. Depois, o mesmo historiador nacionalista acusa o
Português de viver no litoral, a arranhar as praias, como caranguejos... Não é
bem assim: começa a transpor as baixadas e a penetrar no sertão, indo a
Piratininga, descendo pelo Tietê, indo ao vale do São Francisco, entradas e
bandeiras incipientes. E nas praias, em 1548, já há 16 vilas e povoados,
fortificados e defendidos contra os intrusos. Não há dinheiro, mas, para fundar
a Bahia, Tomé de Sousa gasta 300.000 cruzados ou mais de 60 mil contos de hoje.
Em
1583 já se calculam 25.000 brancos, 18.000 índios civilizados, 14.000 negros
cativos. Esse povoamento do Brasil pelos portugueses tem mesmo um aspecto
tocante, porque é feito até a contragosto, às vezes, de Portugal e do Brasil.
Simbólico será, no primeiro dia, isto que narrou Pero Vaz de Caminha: além destes
dois degredados, que aquy ficam, ficam mais dois grometes, que esta noute se
sairam d’esta naao no esquife em terra fogidos, os quaes nom vieram mais, e
cremos que ficaram aquy, porque de manhãa, prasendo a Deos, fazemos d’aquy nosa
partida (Alguns
documentos). Nas instruções à nau Bretoa, de 511, citadas, já se previne
contra a deserção de marujos.
Provisão
régia de 6 de março de 1565 impediu que as naus destinadas à Índia, que lá não
pudessem chegar, de modo algum arribassem ao Brasil, mas tornassem a Portugal,
além de outros motivos porque, dessas frequentes arribadas, resultava fugir a
gente de bordo para terra: marca a preferência dos portugueses pelo Brasil, à
Índia ou ao Reino. Prefiro crer no gosto da aventura, do que apenas no medo ao enjoo.
Passados três séculos e mais, não é a mesma coisa? Contra o interesse de
Portugal, que os preferiria nas suas colônias, eles aqui vêm, vencendo
obstáculos. Contra disposições legais do Brasil — quem o diria?! eles aqui vêm,
sem cartas de chamada, seja como for. É uma cegueira: só amor, que não tem
explicação, o explica.
A
princípio era só a exportação de pau-brasil, bichos raros, alguns índios
escravos; depois o pau-brasil continua — e vai até o fim do período colonial —
e já Gandavo, nesse século XVI, fala da grande quantidade de açúcares e do
infinito algodão: Alem das plantas que produzem de si estas fruitas, e
mantimentos que na terra se comem, ha outras de que os moradores fazem suas
fazendas, convem a saber, muitas canas de açucre, e algodoaes, que he a
principal fazenda que ha nestas partes, de que todos se ajudam e fazem muito
proveito em cada uma destas Capitanias, especialmente na de Pernambuco que sam
feitos perto de trinta ingenhos e na Bahia do Salvador quasi outros tantos,
donde se tira cada um anno, grande quantidade de açucares, e se dá infinito
algodam, e mais sem comparação, que em nenhuma das outras (História
da Província Santa Cruz). — O tabaco prosperou, exportado para a Europa e
principalmente para a África. O Rio de Janeiro exporta farinha de mandioca para
Angola.
Dominou
a todos o açúcar: em 1580 já o exportado orça por dois milhões e oitocentos mil
arrobas (P. de Almeida, História de Portugal). Simonsen insiste
sobre o papel decisivo que desempenhou o
açúcar na fixação do europeu no Brasil e na formação de nossos primeiros
capitais. Foi ele quem gerou os grandes problemas da mão de obra, cuja solução
imprimiu feição característica ao desbravamento das terras brasileiras com as
variadas consequências... A pecuária, mostra este historiador, o gado é
função do açúcar: o sertão ao serviço do litoral ou o litoral obrigando à
ocupação do sertão: o Brasil intercomunicante.
Ora
esse país que se viria a dizer “essencialmente agrícola”, arou-o Portugal, e
por engenhos fê-lo produtivo, povoando-o, defendendo-o, moralizando-o,
civilizando-o, quando não tinha recursos para si. O sonho da Índia passara, mas
o trabalho no Brasil continuou... Esse Brasil foi uma criação, contínua, de
Portugal. No romance simbólico de Alencar, o filho de Iracema é “filho da
dor”... O Brasil esquece, às vezes, o que custou: o pai andava pelos
expedientes da miséria, mas ao filho nada faltou para se defender, crescer e
prosperar.
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