Homens
e fazendas
É
a expressão de Couto, no Soldado: este Reyno está tão desfeito de homens e fazendas, como se
diria, em vulgar, pouca gente e tão poucos recursos... Por esse tempo era
Portugal escassamente habitado. As pestes, em terra, e os desastres, no mar,
foram sempre desbarato de homens. Quando as navegações começaram, o mar
disputou à terra ser-lhes o túmulo: João de Barros chegou a dizer fora o Oceano a principal sepultura dos portugueses,
depois que começaram seus descobrimentos (Décadas). Em casa, ficava
pouca gente. Em 1527 um censo dá 280.528 fogos, o que a quatro habitantes por
lar, daria, ao país, 1.122.112 almas. Se calcularmos que metade eram mulheres,
(deviam ser, mas não eram: sempre sobraram em Portugal, dada a emigração: além
disto, 20% daqueles lares eram de viúvas...) metade da outra metade menores até
quinze anos e maiores de sessenta, ficam apenas 280 mil homens válidos. Estes
ficavam presos ao reino, a maior parte agricultores, homens de jorna,
marítimos, pescadores, soldados, funcionários, clero, nobreza, enfermos e
inúteis ou parasitas, que sobram em todas as sociedades. Só as ordens
monásticas ocupariam perto de 10.000 homens, feita a proporção de Espanha, que
não era mais piedosa, de 1 homem, para cada 30, ocupado no serviço divino.
Deduzido tudo, que ficaria para as Navegações? Elas obrigavam, além dos
marinheiros que as faziam, às guarnições, que mantinham entrepostos e
conquistas. Sá de Miranda lamentava: ...ao
cheiro desta canella, o Reyno nos despovoa (As obras, 1614, Carta). Isso os que partiam: os que
chegavam, se chegavam à aventura, era metade e às vezes metade da metade...
Em
1436 o Infante Dom Pedro, em sessão do Conselho, que deliberava a expedição
contra Tânger, dizia: Posto que
passassees e tomassees Tanger, Alcácer, Arzila, quereria, senhor, sabeis que
lhes faziees; porque povoarde las com Regno tam despovoado e tam minguado de
gente, como he este vosso, he impossivel (Ruy de Pina, Crônica
de El-Rei Dom Duarte). Daí valerem-se, para soldados e navegantes,
até de criminosos e homiziados, a quem perdoavam as culpas: Paulo da Gama,
irmão de Vasco da Gama, assim foi. El-Rei não podia remir pecados, como o Pontífice
fizera aos Cruzados, mas agraciava aos que embarcassem. Se havia necessidade de
gente e mais gente para as armadas, as fortificações, as feitorias... E os que
iam, atraídos pela ambição ou pela aventura, deixavam claros sensíveis ao
trabalho de mantença da comunidade.
Os
escravos foram, pois, bem-vindos. Desde o tempo de Dom Henrique que fora achada
a justificativa: ficava-se com o trabalho servil deles, mas salvava-se-lhes a
alma. E, depois, civilizava-se o bárbaro, como, outrora, o alarve. Mas a Espanha
também precisava deles e Portugal fornecia-lhos, negócio imediatamente mais
rendoso, embora os campos, insupridos, ficassem sem braços. Na Lisboa de 1552
um décimo da população, de cem mil almas, era de escravos: a impressão de
Clenardo exagerou, em 35: parecia que eram mais numerosos que os forros. Esse
comércio de escravos, que às vezes apenas transitavam pelo reino, foi anterior
e geral, e veio do Oriente a Inglaterra: os ingleses chegaram a vender
compatriotas... Portugal não inventou a escravidão e foi humano com ela,
obrigado a sofrê-la.
Inaugurara
um sistema original de colonização que nem os povos antigos, nem os
contemporâneos, ou os sucessores, imitaram: o povoamento. Fenícios e Romanos
tiveram núcleos coloniais insulados, nas populações autóctones; Ingleses e
Holandeses têm colônias fechadas, e limitadas, nos países dominados: as gentes
aborígenes trabalham, enquadradas pelos colonizadores, que as exploram, e
vivem, entretanto, à parte. A Espanha mesma não se parece: foi antes
conquistadora, e, às vezes, exterminadora: o México, ainda hoje, tem apenas um
décimo de hispano-americanos, para noventa por cento de índios e mestiços.
Varnhagen que, à germânica, é pela exterminação dos outros bárbaros, diz que ao
norte os nossos selvagens não desapareceram, porque foram assimilados. Portugal
colonizou, povoando. Para o grande mundo que descobriu, como bastar? Povoar,
explorar o solo e a floresta, plantar canaviais na Madeira, disseminar por toda
parte espécies e frutas exóticas, misturando a flora e a fauna, (os portugueses
foram os uniformizadores mais eficazes da terra, promovendo a troca das
utilidades), soltar ovelhas nos Açores desocupados, encher de proveitos todo o
mundo ainda traficar, pelejar, manter o adquirido, como fazê-lo, sem gente para
tanto?
A
Índia, finalmente achada, realizava longínquo ideal. Ideal custoso. Gente
aguerrida, industriosa, pugnaz e de outra fé. Para chegar lá, um sorvedouro de
dinheiro e de homens. As naus, que começaram modestas, chegaram a hũa grande
vila,
comparou o Padre João de Lucena: represente
cada hum a si mesmo & pese bē consigo que coisa he hua nao de India posta a
vela com seis centas, oito centas & ás vezes mais de mil pessoas dentro em
si, homēs, molheres, mininos, livres, escravos, nobres, povo, mercadores,
soldados, gente do mar... A viagem, quando muyto boa, nem pede menos de cinco
meses: em os quais nam ha necessidade nem trabalho, nem perigo, que se nam
corra, & padeça; na desigualdade dos tempos, nas calmarias de Guiné, nas tormentas
do Cabo, na corrupçam dos mantimentos na linha, no aperto contino dos
gasalhados, nas postemas, nas febres, nas modorras, na perpetua sombra e
presença da mesma morte (História da Vida do B. Francisco de Xavier, 1600). Só o
que custava em dinheiro, — uma tal nau andava por 20 mil cruzados ou 4 mil
contos nossos! Muitas não aguentavam duas viagens inteiras; dez era vantagem.
Estas naus carregavam mercância de 50 mil cruzados ou 10 mil contos atuais. E
como se perdiam naus carregadas ou imprestáveis! Figueiredo Falcão (Livro...
da fazenda e real patrimônio... de Portugal, 1859) diz que, de 1497 a 1612, foram do reino
às Índias 806 embarcações: volveram 425; arribaram 10, perderam-se 66, tomadas
por inimigos 4, queimaram-se 6, ficaram na Índia 285. O Estado admitia
particulares nas Armadas, que negociavam por conta própria, apenas em Lisboa
sob a intervenção da Casa da Índia. Por isso tudo, disse Diogo do Couto: “escassamente podia armar quatro naus para a
carreira de Índia" (Décadas).
O
dinheiro era também escasso, como a gente. A monarquia sob os de Aviz era de
príncipes endividados, desde Dom João I: quando vieram os descobrimentos para
obter os resgates era preciso mercadoria e, para esta, dinheiro. O que se
apurava era pouco e ia-se ao estrangeiro para compras indispensáveis. Das
coisas necessárias para a Índia, dizia o Soldado
Prático, o principal he levar dinheiro e tres vezes, dinheiro, e entretanto
Afonso de Albuquerque escrevia a Dom Manuel: he necessario
que o trato comercial de cá se comece com cabedal e mercadorias de lá e eu não
vejo as mercadorias; as feitorias estão varridas... Vossa Alteza não tem
mercadorias (Alguns documentos). Nem mercância, nem dinheiro: nem
troca, nem compra. Isto a Índia, cujo comércio era rendoso e fora a riqueza de
Venezianos: que fazer com o Brasil que não produzia nada ou pouco mais de nada?
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