A
Gente
No
dia 23 avistaram os navegantes sete ou oito homens, depois mais dezoito ou
vinte. Nos dias seguintes muitos, que vieram às naus.
A
feiçam deles he seerem pardos, maneira d’avermelhados, de boos rostros e boos
narizes bem feitos; amdam nuus, sem nenhuũa cobertura; nem estimam nenhuma
coussa cobrir, nem mostrar suas vergonhas, e estam açerqua disso com tanta
inocência como teem em mostrar o rostro; traziam ambos os beiços de baixo
furados e metidos por eles senhos osos d’oso bramcos de compridam de huũa maão
travessa e de grossura de huum fuso d’algodam, e agudo na ponta coma furador. Amdavam
hy outrros quartejados de cores, saber, deles ameetade da sua própria cor, e
ameetade de timtura negra maneira de zulada, e outros quartejados d’escaques.
Aly amdavam antr’eles tres ou quatro moças bem moças e bem jentis, com cabelos
muito pretos compridos pelas espadoas, e suas vergonhas tam altas e tam
çaradinhas, e tam limpas das cabeleiras, que de as nos muito bem olharmos nom
tinhamos nenhuũa vergonha...
Amdava (um) todo per
louçaynha, cheo de penas pegadas pelo corpo, que parecia aseetadado coma Sam
Sebastiam; outros traziam carapuças de penas amarelas, e outros de vermelhas, e
outros de verdes; e huũa daquellas moças era toda timta de fundo a cima daquela
tintura, a qual certo era também feita e tam arredomda, e sua vergonha que ela
nom tinha, tam graciosa, que a muitas molheres de nossa terra veendo lhe taaes
feições fezera vergonha, por nom terem a sua com eela. Nenhuũ deles nom era
fanado, mas todos asy coma nos...
A
impressão era, ou foi, simpática: inocência, curiosidade, boa índole. As
mulheres, pela privação deles, e pela nudez delas, “bem moças e bem gentis”,
diz Pero Vaz, mui fermosas, que nam ham
nenhuũa inveja às da rua Nova de Lixbôa virá a dizer Pero Lopes, alguns
anos mais tarde (Diário da Navegação, 1927). Também elas se agradaram
dos Europeus: o romance exótico da colonização vai começar. “Iracema” será um
símbolo. Vão nascer os mamelucos, os maiores inimigos da raça primitiva...
Os
descobridores não podiam saber mais. Porém, os que vieram depois, sobretudo os
Jesuítas, grandes amigos deles, que conviveram com eles, para os educarem, e
aproveitarem, na civilização, têm depoimentos cruéis. Diz Nóbrega (Cartas do
Brasil,): É gente que nenhum
conhecimento tem de Deus. Gente tão inculta... regendo-se todos por inclinações
e apetites sensuais, que está sempre inclinada ao mal, sem conselho, nem
prudência. Têm muitas mulheres e isto pelo tempo em que se contentam com elas e
com as dos seus, o que não é condenado entre eles. Fazem guerra, uma tribo a
outra, a 10, 15 e 20 léguas, de modo que estão todos entre si divididos. Se
acontece aprisionarem um contrário na guerra, conservam-no por algum tempo,
dão-lhe por mulheres suas filhas, para que o sirvam e guardem, depois do que o
matam, com grande festa e ajuntamento dos amigos e dos que moram por ali perto
e se deles ficam filhos, os comem, ainda que sejam seus sobrinhos e irmãos,
declarando às vezes as próprias mães que só os pais e não a mãe, têm parte
neles.
(As mães não são mais do que uns sacos, em respeito aos pais, em que se criam
as crianças... virá a testificar Anchieta — Informações — nas Cartas, etc.). É esta a coisa
mais abominável que existe entre eles. Se matam a um na guerra o fazem em
pedaços e depois de moqueados os comem com a mesma solenidade; e tudo isto
fazem com um ódio cordial que têm um ao outro e nestas duas coisas, isto é,
terem muitas mulheres e matarem os inimigos consiste toda sua honra... Não se
guerreiam por avareza porque não possuem mais de seu do que lhes dão a pesca, a
caça e o fruto que a terra dá a todos, mas somente por ódio e vingança sendo
tão sujeitos a ira que se acaso se encontram em caminho logo vão ao pau, a
pedra ou à dentada e assim comem diversos animais, como pulgas e outros como
este, tudo para se vingarem do mal que lhes causam...
E
por aí além. Outros depoimentos não faltam e não apenas de Jesuítas. Gabriel
Soares fala dos Aimorés: Não vivem
estes bárbaros em aldeias, nem casas como o outro gentio, nem há quem lhas
visse nem saiba nem desse com elas pelos matos, até hoje; andam sempre de uma
para outra pelos campos e matos, dormem no chão sobre folhas; e se lhes chove
arrumam-se ao pé de uma árvore, onde engenham as folhas por cima, quanto os
cobre, assentando-se de cócoras; e não se lhes achou outro rastro de gazalhada.
Não costumam estes alarves fazer roças nem plantar mantimentos... Vivem de
frutos silvestres e caça, de saltear toda a sorte de gentio... comem carne
humana por mantimento não por vingança como os outros... (Tratado).
Outro
Jesuíta, Antônio Blásquez, depõe de suas casas, dos que as têm: São suas casas
escuras, fedorentas e afumadas, em meio das quais estão uns cântaros como meias
tinas, que figuram as caldeiras do inferno. Em um mesmo tempo estão rindo uns e
outros chorando, tão de vagar que se lhes passa uma noite em isto sem lhe ir
ninguém à mão. Suas camas são umas redes podres com a ourina, porque são tão
preguiçosos que, ao que demanda a natureza, se não querem levantar. E dado caso
que isto bastara para imaginar em o inferno... (Cartas Avulsas). Outro padre, ainda, visita aldeia já meio
civilizada, cujos moradores tinham tornado da guerra, trazendo despojos dos
vencidos: vi que daquela
carne (humana) cozinhavam em
um grande caldeirão e ao tempo que cheguei atiravam fora uma porção de braços,
pés e cabeças de gente, que era coisa medonha de ver-se e seis ou sete
mulheres, que com trabalho se teriam em pé, dançavam ao redor, espevitando o
fogo, que pareciam demônios no Inferno (Azpilcueta Navarro, in: Cartas Avulsas).
E
não só Jesuítas, de moral estrita, repito: todos os contemporâneos: Sam muy
deshonestos e dados a sensualidade e assim se entregam aos vícios como se
nelles não houvera razão de homens (Gandavo, História
da província Santa Cruz, edição do Anuário do Brasil, 1924). Gabriel Soares
depõe: São muito
afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta e o que
serve de macho se tem por valente e conta esta bestialidade por proeza e nas
suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem,
como mulheres públicas.
Todos,
todos os depoimentos: para finalizar a do boníssimo Anchieta: todos eles se
alimentam de carne humana e andam nus (Cartas); copiosíssima
libação de vinhos, que fabricam de raízes; as mulheres andam nuas e não
sabem se negar a ninguém mas até elas mesmas cometem e importunam os homens,
jogando-se com eles nas redes porque têm por honra dormir com os Cristãos; não
se pode nem se deve prometer deles coisa que haja de durar; os ensinados...
tornam-se aos costumes de seus pais. Rui Pereira conta nas Cartas
Avulsas,
o retorno à barbárie de toda uma aldeia se foram fugindo todos pelo sertão...
Portanto,
sem dúvida, dos últimos povos da terra, na escala sociológica. Nômades quase,
sem agricultura, nem criação, sem propriedade, nem governo, nem religião,
pequena mentalidade sem progresso. La Condamine iria a dizer deles que
envelhecem sem deixar de ser crianças — antropófagos, sensuais, intemperantes,
perdidos pelas florestas... tais foram os selvagens do Brasil.
Entretanto,
por uma contradição bem humana, a imaginação dos viajantes e a das viagens, por
antítese à Europa, arranjou — e com selvagens do Brasil — a lenda do “bom
selvagem” e a da “idade de ouro”... Montaigne conta que viu Tabajaras, levados
a Ruão e até entrevistou um, que lhe fez a crítica da monarquia dinástica e da
sociedade capitalista... Ronsard, informado pelo “douto Villegaignon”, a quem
se refere, diz deles, os índios do Brasil: Ils vivent maintenant en leur âge
doré... Vivez joyeusement je voudrais vivre ainsi.
Este
“bom selvagem” falsificado no século XVI (1560) dará com o romantismo nascente
no fim do século XVIII e começo do XIX, a volta à natureza, à primitividade,
portanto, desfazendo o Contrato
Social, para obter a
“igualdade” de Rousseau, a Revolução Francesa e o romantismo literário de
Chateaubriand, — exótico com Atala e os Natchez, — “revolução
literária das letras”.
Tal
falsificação produziu aqui o romantismo literário de José de Alencar: o Guarani é um gentleman abnegado; a Iracema é um divino
amor de mulher; os Timbiras, de Gonçalves
Dias, são cavalheiros andantes, “senhores em cortesia”... E produziu a
falsificação patriótica do selvagem Brasileiro, oposto, como símbolo, ao
“maroto”, o Português colonizador, e o negro Africano, cuja servilidade ajudou
a fazer o Brasil. A mestiçagem destas duas raças está e estará, por muito tempo
ainda fazendo a independência do Brasil, com a glorificação do “bom selvagem”,
a falsificar e engrandecer, esquecendo os Europeus, e escondendo os Africanos,
exaltados os Americanos, que entretanto destruíram, e se destruíram... O que
eles foram porém, esses aborígenes, dizem-no os cronistas contemporâneos, todos
os Jesuítas, os Gabriel Soares, Gandavo, Hans Staden... que os trataram.
Dizem-no os nossos contemporâneos que os estudaram objetivamente, os Couto de
Magalhães, Rondon, Roquette Pinto, Salesianos e Beneditinos da neo-catequese:
depois de os exterminarmos, vem-nos, não a penitência, a falsificação romântica
pretendidamente patriótica...
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