O Corvo, de Edgar Allan Poe
Tradução: Francisco Versaci (1948)
Em certa meia-noite — assim triste e sombria,
Enquanto, fatigado e fraco, eu refletia,
Curvado sobre um raro e sedutor volume
Que encerrava doutrina olvidada e sem lume;
Estava eu prostrado e quase adormecido,
Quando se fez ouvir, de súbito, um ruído,
Como se houvesse alguém, perdido na hora morta,
Alguém batendo leve e brandamente à porta.
“— Decerto — murmurei — está nos meus umbrais
Um visitante e já me está batendo à porta;
É só isso e nada mais”.
Ah! eu me lembro, sim, com clareza lembro:
Era no frio atroz dum glacial dezembro.
Na lareira do quarto, a brasa, em agonia.
Um fantasma no chão claramente imprimia.
Desejei febrilmente o fulgor da alvorada.
Mas debalde tentei enganar-me com o nada
Dos livros; enganar a mágoa aterradora,
A saudade brutal que sinto de Lenora!
Dessa que tinha em si os brilhos virginais
E os anjos a chamar sempre: Lenora,
E nome aqui não tem mais.
E o suave rumor da seda purpurina,
O triste rugitar que se ergue da cortina,
Fez-me todo tremer, encheu-me de terrores
Fantásticos, que nunca eu sentira em tais cores...
Assim, para aquietar a célebre batida
Do coração, — de pé, balbucio em seguida:
“— É visita, por certo, e bate à porta agora,
Alguém que proteção à minha porta implora.
É visita, — quem sabe? — alguém que a horas tais
Um calmo, um doce abrigo à minha porta implora;
É só isso e nada mais".
Minha alma, a se sentir mais forte nesse instante,
As dúvidas afasta, e não mais vacilante:
“— Senhor — disse, afinal — que aí 'stais, ou senhora,
Na verdade, o perdão este aqui vos implora;
Mas o fato é que estava a dormir levemente
E de leve quem bate, o que dorme não sente;
Apenas vos senti bater, nesta hora morta,
Bater tão devagar, tão debilmente à porta,
Quase, quase não cri que aí vós me esperais".
E, às escâncaras deixo inteiramente a porta:
Treva — treva e nada mais.
Da noite enquanto sondo a escuridão profunda
Um misto de interesse e de temor me inunda;
A dúvida me faz sonhar num mundo meu
Uns sonhos que mortal nenhum já conheceu;
O silêncio era fundo, o sossego feral.
E de vida qualquer nem um leve sinal;
A palavra exprimida, a palavra sonora,
Foi somente a palavra em sussurro: “Lenora!”
E o eco murmurou, como não vi jamais,
Logo depois de mim, a palavra: Lenora!
Sim! foi isso e nada mais.
Volto, e de novo ali, já do quarto na calma
— E em chamas, dentro em mim, inteiramente a alma, —
Percebo novamente uma leve batida,
Mas desta vez mais forte, e assim mais bem ouvida.
“— Pertinho da janela algo existe — murmuro —
Algo sucede ali, é certo, eu asseguro:
Deixem ver, quero ver qual o motivo sério
Que está nesse lugar, vejamos o mistério;
Sim, deixemos ficar — por uns momentos reais —
Mais calmo o coração; solvamos o mistério...
— É o vento e nada mais".
Então quando a janela abri, num só repente,
Esvoaçando em tumulto, agitado e fremente,
Penetra um corvo ali, majestoso, nessa hora,
Um corvo semelhante aos cultuados outrora.
Não fez sequer, a menor reverência,
Nem sequer um minuto ali fez permanência;
Com ar de Grão-Senhor ou quiçá de Senhora,
Na parte superior do quarto pousa agora,
De Palas sobre o busto, acima dos umbrais;
— Na parte superior de minha porta agora
Empoleirou-se e nada mais.
Esta ave negra, então, a divertir meu sonho,
Meu triste aspecto muda em semblante risonho,
— Pela grave expressão e severa postura,
Por um todo brutal que lhe veste a figura. —
“— Embora tenhas tu a crista assim cortada,
Certamente — disse eu — não tens medo de nada;
Horrendo corvo, já da velhice ao açoite,
Que és desde o litoral, errante, noite a noite,
Queres dizer quais são teus nomes senhoriais?
Qual é teu nome lá na vil Plutônia Noite?
Disse o Corvo: "Nunca mais".
Bastante me admira ouvir esta ave rude
Assim calma falar, sem que a feição lhe mude;
Contudo, na resposta, o que dela me vinha
Quase nada talvez de importância continha;
Pois não podemos crer, não, absolutamente,
Exista nesta vida alguém, qualquer vivente,
Que outrora tenha visto — e já agora o conforta
O fato de ter visto uma ave em sua porta
Pousada nas feições dum busto, esculturais,
Ave ou fera, — pousada acima de sua porta
Com tal nome: "Nunca mais".
Pousado o corvo ali, solitário, indolente,
No sossegado busto, a proferir somente,
A pronunciar somente aquela expressão calma,
Como se nela encerrasse inteiramente sua alma...
Nada mais, depois disso, aquela ave serena
Pronunciou, nem sequer fez vibrar uma pena,
Até que murmurei, como que num gemido:
“— Tantos amigos, sim, tantos tenho perdido
Mas assim como vós, Esperanças, voais,
Este amigo amanhã também terei perdido”.
Disse o corvo: "Nunca mais”.
A resposta que deu, com habilidade tanta,
No sossego dali, é tudo o que me espanta.
E eu disse: "Deve ser reserva, com certeza,
O que lá proferiu — ou quiçá toda a presa
— Herança do saber dum amo desgraçado,
A quem sempre cruel seguia um duro fado,
Cada vez mais feroz, cada vez com mais brilho,
Que até nos cantos seus um molesto estribilho,
— E da Esperança até nos cantos funerais, —
Havia um já tristonho, importuno estribilho
Que era: “Nunca — nunca mais".
Mas o corvo inda faz com que fique risonha,
Torna alegre outra vez a minha alma tristonha;
A cadeira estofada eu fiz girar, sem custo,
Em frente da ave, em frente à porta, em frente ao busto.
E então, a mergulhar por cima do veludo,
Dispus-me a desvendar — ligando tudo, tudo
O que de imaginoso eu tivesse nessa hora
A ver se decifrava o que essa ave de outrora,
Agourenta, escarnada e de feições brutais,
Queria lá dizer — fatal ave de outrora —
Sempre a grasnar: "Nunca mais”.
Nisso pus todo o empenho em conjetura grave,
Sem palavra qualquer dirigir, àquela ave,
Cujo olhar chamejante e num incêndio perfeito,
Eu sentia queimar bem no fundo — em meu peito.
Isto e mais empenhei prá solver tudo aquilo
Tendo o crânio encostado, em sossego, tranquilo,
No coxim de veludo onde o crânio se arrima,
Indo a luz a cair firmemente por cima.
Mas onde, no veludo, a luz cai — qual jamais —
Ela — sobre o coxim em que a luz cai por cima,
Não deitará — nunca mais!
Mais denso então se torna o ar: julgo que assoma
Dum turíbulo oculto, ali, sublime aroma,
Turíbulo por mãos de serafins fremido,
Cujos passos no chão fazem leve ruído.
“— Miserável! teu Deus — exclamei, furioso —
Nestes anjos te manda assim brando repouso,
Repouso e lenitivo à lembrança opressora
Dessas recordações — saudades da Lenora!
Sim! bebe, bebe, sorve agora estes reais
Lenitivos; esquece a sumida Lenora!"
Disse o Corvo: "Nunca mais".
“Profeta! exclamo então — gênio inteiro do mal!
Sim! Profeta! — ave embora ou vivente infernal! —
Ou venhas tu aqui do Tentador mandado
Ou de tormenta vil sobre a terra atirado,
— E triste, embora tu, de coragem coberto
Na encantada região, neste lugar deserto,
Nesta casa onde o Horror frequentemente mora, —
Dize a mim, sem má fé, dize a este que implora:
Um bálsamo não há nas terras orientais?
Em Galaá? — Responde a este que te implora!”
Disse o Corvo: "Nunca mais".
"Profeta! — esbravejei — gênio inteiro do mal!
Sim! Profeta! — ave embora ou vivente infernal!
Pelo Céu que de nós bem por cima se estende
E o Deus amado a quem cada um de nós se rende,
A minha alma, de dor já plena, dá teu voto:
Se nesse Éden distante, e longínquo, e remoto,
É dado inda estreitar uma virgem que agora
É santa, e anjos lá chamam sempre — Lenora;
Sentir dela, outra vez, os brilhos virginais,
Dessa que os anjos chamam sempre — Lenora!"
Disse o Corvo: "Nunca mais".
“Haja aqui nosso adeus, nesses termos somente,
Ave ou Diabo! — clamei, a me erguer de repente;
Regressa ao temporal, à tempestade que erra,
Retoma à escuridão da vil Plutônia Terra!
Sai daqui! — De meu lar não reste nesta calma
Negra pluma que lembre a mentira de tua alma!
Abandona meu ermo — esta paragem morta!
Retira-te do busto acima dessa porta!
Arranca o bico teu, que fere qual jamais
Meu coração, e vai prá longe desta porta!”
Disse o corvo: “Nunca mais".
E o corvo sem mover-se, ainda está sentado,
Ainda está pousado, ainda empoleirado
De Palas no alvo busto, assim de uma cor morta
De palidez mortal — bem por cima da porta;
E seus olhos contêm a aparência medonha,
A aparência brutal de um demônio que sonha;
E a luz — enquanto a luz em cima dele jata,
Espalhada no chão a sombra lhe retrata;
Mas minha alma, do fundo aí dessas fatais,
Destas sombras cruéis, que o soalho retrata
Não se erguerá — NUNCA MAIS!
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