Os
românticos
Depois da independência
política, esforçaram-se os nossos avós por fazer a literária e artística.
Coincidindo o movimento, que aqui se operava, com a renovação romântica, vinda
através da Inglaterra e da Alemanha para a França, nada mais natural que nós,
já sob a fascinação da literatura francesa, procurássemos no Romantismo o
roteiro intelectual. Reagindo contra os remanescentes do estilo clássico, que
lhes relembrava, quando menos, os estreitos processos da metrópole,
entregaram-se confiantes os nossos escritores à nova corrente que, então,
entrava em sua fase mais brilhante. Voltaram-se para a terra natal, e, vendo a
sua enormidade inculta e desconhecida, procuraram fazer dela uma grande e nobre
nação. Entramos, pois, sob o influxo do Romantismo, no período autonômico da
nossa literatura.
Desprezados os nomes
de muitos poetas sem maior significação, veremos que a nossa poesia romântica
apresenta quatro feições distintas. Na primeira, depara-se-nos Gonçalves de
Magalhães; na segunda, Gonçalves Dias; na terceira, Álvares de Azevedo; na última,
Castro Alves. Gonçalves de Magalhães é geralmente considerado o pioneiro do
movimento romântico em nossa pátria. O aparecimento dos Suspiros Poéticos, em 1836, saudado por todos os críticos de
responsabilidade como obra original e vigorosa, marcou época em nossas letras.
A novidade de tal poesia não estava no calor do sentimento patriótico, pois,
desde a escola mineira, e porventura ainda mais longe, com Gregório de Matos e
Rocha Pita, muitas vozes nativistas ecoaram por aqui; não estava, também, no
acento religioso, já distinto em Souza Caldas, mas na íntima expressão de
ambos, com a predominância ora de um, ora de outro. A forma aparece, por igual,
mais variada, complica-se mais, apesar de guardar ainda um característico sabor
clássico, muito do agrado de Magalhães. Ele influiu na poesia nacional:
1º) — porque lhe deu
mais liberdade, maior movimento de ritmos e mais fantasia nos assuntos; 2º) — e
porque lhe introduziu um alto caráter religioso e patriótico, largo e eloquente.
Gonçalves Dias foi,
sem dúvida, a primeira voz definitiva da nossa poesia, aquele que nos integrou
na própria consciência nacional, que nos deu a oportunidade venturosa de
olharmos, rosto a rosto, o deslumbramento dos nossos cenários. Nesse homem
pouco vulgar palpita com inigualável intensidade a luz dos nossos horizontes, a
limpidez de nossos céus, e o sonoro fragor dos nossos rios. Ninguém, até ele,
mostrara em tão elevado grau essa compreensão da natureza, esse conhecimento
profundo e claro do seu papel na poesia. Há por toda a sua obra, acompanhando
as notas de bucolismo, ou as religiosas, ou as puramente descritivas, um idílio
permanente com a natureza, de que era ele enamorado, singular. Não se lhe
percebem as ruidosas proclamações patrióticas dos românticos da primeira hora;
não se lhe descobrem, também, as fastidiosas tiradas sobre a imortalidade da
alma, a existência de Deus, a perfeição da Igreja, e outras divagações
quejandas, muito estimadas do autor dos Cânticos
Fúnebres e dos seus epígonos. É como poeta da natureza que deve Gonçalves
Dias ser estudado, sem o que não conseguiremos apanhar-lhe a fisionomia
interior. O indianismo não foi mais que um resultado dos seus pendores, pois,
ele se aproveitou da vida selvagem para poder mostrar, em toda a sua pujança, a
luxuriante e colorida terra brasileira.
Com Álvares de
Azevedo, tomou a nossa poesia rumo diferente e matizes novos. A sua Lira dos Vinte Anos trouxe às nossas
letras o amargor irônico de Byron, a melancolia de Musset, a inquietação de
Shelley e Espronceda, e o pessimismo imaginativo de Leopardi. Os aspectos ruins
da vida, os vícios e as deformações de toda espécie, a atração pela carne, o
desejo lúbrico e desvairado irromperam de todos os carmes, como se a nossa
poesia estivesse entregue, momentaneamente, a angustiosos histéricos. Concorria
para agravar o mal, não só a novidade sedutora dos cantos, mas ainda a morbidez
ingênita dos cantores. Uns, por doenças físicas, outros por sofrimentos morais,
o certo é que todos os imitadores de Álvares de Azevedo mostraram-se fracos e
desalentados em face da vida, sem energias para o rude combate do mundo, em
constante conflito com o ambiente em que viveram, reagindo apenas com
imprecações e ameaças, sorrisos e suspiros, contra a onda temerosa que os
arrastava no seu torvelinho. A poesia da dúvida, ao mesmo tempo dolorosa e
irônica, elevou-a Álvares de Azevedo á mais alta intensidade, servindo-se para
isso de um estilo cheio de tons velados, e daquelas meias tintas tão do gosto
dos satanistas, como Baudelaire e Rollinat, aos quais, diga-se de passagem,
nada ficou devendo o nosso poeta. Êmulos de Álvares de Azevedo foram Laurindo
Rabelo, o poeta lagartixa, Junqueira
Freire, Casimiro de Abreu, lírico dos mais populares do Brasil, e Fagundes
Varela, um dos nossos melhores poetas descritivos, de larga e numerosa
inspiração.
Castro Alves
encontrou na campanha abolicionista a finalidade da sua ardente poesia; ele
possuía, além de admirável poder verbal, emoção agudíssima e fina
sensibilidade. Juntava, assim, as duas forças motrizes da poesia, isto é, a
eloquência, que pertence à imaginação, e a doçura que é fruto do sentimento.
Não podia deixar de ser, pois, como realmente o foi, um dos maiores caiadores
de símbolos, não só da nossa, senão até das letras portuguesas, muito embora
lhe saísse por vezes impura a dicção e abusasse constantemente das chamadas
licenças poéticas, que são o visgo onde a sua larga asa se despluma inutilmente.
Vibram-lhe nos poemas, cordas ignoradas de paixão e ternura, uma onda de
perfumes se desprende dos seus versos de amor, onde reponta um sainete de
fatalidade, próprio da mistura de raças, voluptuosas e sensuais. Quando deixava
falar o coração, simplesmente, de si para si, fundiam-se todas as arestas duras
numa perspectiva suavíssima, feita de tonalidades cambiantes, de macias sombras
e odoríferos vergéis. Nossas paisagens entremostravam-se, por um momento,
engalanadas de ramagens ricas e aromáticas, o corpo moreno das nossas mulheres
destacava-se das folhas reluzentes de orvalho dos espaçosos vales.
Quando, porém, sua
voz se elevava para reivindicar direitos oprimidos, como em Vozes d'África e no Navio Negreiro, para estigmatizar tiranias inglórias, como em Pedro Ivo e No Meeting do Comitê do Pão, ou para descrever a dureza de certos
preconceitos sociais, como em Ahasverus e
o Gênio, sua Musa era bem um incêndio em marcha, para empregar uma
expressão de Michelet.
O sucesso do seu
lirismo declamatório, empolado e brilhante, onde refulgem, de trecho a trecho,
imagens de uma formosura quente e arrebatada, tem as raízes no caráter
grandiloquente e enfático da cultura brasileira. Ele foi, e é ainda amado,
aqui, por várias razões de ordem moral, porquanto é, de certo modo, um genuíno
representante do nosso pendor para o excessivo, até para o extravagante.
Ao lado desses quatro
poetas de maior significação, poderemos mencionar Porto Alegre, autor do Colombo, largo poema em versos brancos,
onde há porções de real beleza; Francisco Otaviano de Almeida Rosa, em cuja
obra se encontram ainda ressaibos de classicismo, à maneira de José Bonifácio;
barão de Paranapiacaba, célebre por suas tradições, entre as quais avulta a das
Fábulas de La Fontaine; Antônio
Francisco Dutra e Melo, que foi também crítico perspicaz; Aureliano José Lessa,
lirista delicado; José Bonifácio, o moço, poeta eloquente; Bernardo Joaquim da
Silva Guimarães, colorista agradável e descritor elegante; José Alexandre
Teixeira de Melo, que versejou com sentimento, à feição de Casimiro de Abreu;
Pedro Luís Soares de Sousa, onde se encontram muitas notas particularmente caroáveis
aos condoreiros, aos quais, é mister dizer, precedeu de alguns anos; Trajano
Galvão de Carvalho, Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, Gentil Homem de
Almeida Braga, Melo Moraes Filho, todos bucolistas leves e agradáveis; Vitoriano
Palhares, cujo estro patriótico e inflamável faz lembrar o de Castro Alves;
Moniz Barreto, o repentista; Luís Gama, o endiabrado mestiço da Bodarrada, Bruno Seabra e Joaquim
Marinho Serra Sobrinho, que descreveram com chiste alguns aspectos do nosso
meio sertanejo os quais, em nada concorreram para imprimir feições novas à
Poesia no Brasil.
Os prosadores do
período romântico são dos mais notáveis da nossa literatura. Somente com Manuel
de Macedo e José de Alencar é que a prosa de ficção tomou fisionomia própria,
ganhou contornos definitivos, e avultou em nossas letras. Antes da Moreninha e do Guarani houve apenas tentativas mais ou menos felizes, corno as de
Teixeira e Sousa e Norberto Silva, todas mui louváveis, porém de apoucado
merecimento, se as considerarmos pelo seu valor literário. Manuel de Macedo foi
o verdadeiro fixador dos nossos costumes fluminenses e cariocas naquela época
ainda colonial na maioria dos seus aspectos. Ele compreendeu admiravelmente os
pendores da nossa alma popular, sentimental e piegas, e fez, com pequenas
intrigas ingênuas, à guisa de um Bernardim de Saint-Pierre atrasado e rústico,
a sua história íntima e simplória. Na imensa galeria dos seus personagens,
alguns, a exemplo do Moço Louro, e da
Moreninha, vivem na memória de todos
os brasileiros, embora os anos hajam decorrido às dezenas desde a sua ruidosa
aparição. Seu estilo, a não ser na poesia enfática e palavrosa, é correntio,
agradável, flui serenamente. Faltava-lhe apenas um certo colorido, mas é sempre
correto no desenho das criaturas e na descrição das paisagens, posto lhe não
seja castiça a dicção. Esse colorido, quem o teve por excelência foi José de
Alencar. O Guarani e Iracema, sem esquecer as Minas de Prata, são obras fundamentais
para quem quiser conhecer a história do nosso romance. Alencar possuía o gênio
do pitoresco. Seus romances de índole americana, incontestavelmente os melhores
que produziu, são verdadeiras epopeias, onde a urdidura da intriga é quase
sempre um pretexto para a pintura de uma série de quadros e painéis naturais,
de impressivo poder descritivo. Aprendemos com ele a ter estilo, isto é, a
considerar o romance como obra de arte, e não simplesmente como um
divertimento, um mero jogo de situações, mais ou menos possíveis, ou um punhado
de anedotas picantes. Se não bastassem as suas qualidades de lirista delicado e
imaginoso, Alencar teria ao menos influído pela riqueza da forma, antes dele
desconhecida em nossa prosa de ficção. Sucedendo a Macedo e Alencar, surgiram
Manoel de Almeida, autor das Memórias de
um Sargento de Milícias, onde se vislumbra um narrador sagaz do meio
popular no Rio de Janeiro; Bernardo Guimarães, pintor artificioso, mas
interessante, do ambiente sertanejo; Franklin Távora e Escragnole Taunay, ambos
notáveis por suas novelas de assunto nacional, das quais, O Cabeleira, do primeiro, e Inocência,
do último, deveriam ficar popularizadas em nosso país.
Entre os críticos,
publicistas e historiadores desse período, vale apontar Francisco Adolfo de
Varnhagen, Visconde de Porto-Seguro, um dos mais ativos pioneiros dos estudos
históricos e literários, e o maior escavador de arquivos de que há notícia no
Brasil; Pereira da Silva, cuja obra um tanto fantasista revela espírito
operoso; Sotero dos Reis, espécie de Quintiliano brasileiro, de muita lição e
pouco aprazimento para o leitor; Joaquim Norberto de Souza e Silva, esforçado
amigo das nossas tradições, e João Francisco Lisboa, o crítico mais sagaz e
agudo entre os seus contemporâneos.
Aos românticos
devemos, também, a criação do teatro nacional. Pode-se afirmar que ele surgiu
em 1838, com a tragédia Antônio José,
de Magalhães, e a comédia de Martins Pena, O
Juiz de Paz na Roça. Sobressaíram, no gênero, o já citado Martins Pena,
talvez o mais forte teatrólogo do tempo, França Júnior, Macedo, Alencar,
Agrário de Menezes, Pinheiro Guimarães, Augusto de Castro e Álvaro de Carvalho.
O teatro do romantismo é, porventura, até hoje, o mais característico da nossa
literatura, pelo menos o mais nacional, sem preocupações estritamente regionais,
e por isso, perfeitamente sincero e representativo.
---
RONALD DE CARVALHO
RONALD DE CARVALHO
Estudos
Brasileiros (1924)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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