O
historiador Alexandre Herculano
O amor da verdade é a principal
qualidade do historiador. Foi esta qualidade, associada a muitas outras, que
fez com que Herculano fosse um dos maiores historiadores do mundo. Eu não quero
dizer que ele não se enganasse, porque isso seria contrario à natureza humana;
não há ninguém infalível, a não ser o padre santo para os partidários do
neocatolicismo ou do catolicismo influenciado pela Companhia de Jesus. O que é
certo é que Herculano examinava com a mais profunda atenção tudo quanto
escrevia, empregava todos os meios de não falsear a história, tudo sacrificava
ao amor da verdade, fazia falar os fatos, não enchia a história de
generalizações falsas, intempestivas e absurdas; tudo quanto dizia firmava-se
em documentos que ele criticava com a maior severidade e de cuja autenticidade
estava profundamente convicto; não fazia sínteses que não se estribassem na
mais profunda e rigorosa análise. O mais analisado analista histórico que
Portugal tem produzido teve sempre receio de cair nessa laboração subjetiva,
falsa e imaginosa, que caracteriza muitos espíritos do século dezenove.
Quantas obras históricas se não têm
escrito, que, em vez da verdadeira filosofia da história, nos apresentam a
filosofia dos seus autores! Os trabalhos históricos de Herculano foram
incomparavelmente mais sintéticos do que tudo quanto no seu gênero se havia
escrito anteriormente em Portugal; mas, se a generalização filosófica não
existe neles mais copiosamente é porque ainda se não tinham realizado com a amplitude
indispensável as investigações eruditas sem as quais toda a filosofia da
história seria apenas um edifício sem base; é porque ainda escasseavam os
materiais suficientes para se poderem fazer em larga escala sínteses profundas,
exatas e rigorosas.
Quantas sínteses formuladas no século
dezenove não serão matéria de riso para o século vigésimo! Os escritores
gongóricos e nebulosos, que têm falsificado a história com sínteses falsas e
temerárias, parecem-se com aquele fidalgo da Mancha, chamado D. Quixote, que em
cada moinho de vento via um gigante, em cada rebanho um grande exército; no seu
furor de generalizar, os modernos gongoristas em cada fato veem uma lei.
Diz o Sr. Teófilo Braga que Herculano
não possuía disciplina filosófica; eu estou profundamente convicto do
contrário. Foi a disciplina filosófica que deu a Herculano o mais excelente
método no modo de escrever história; foi ela que fez com que o nosso grande
historiador procedesse sensatamente, começando pelo exame rigoroso dos
documentos, passando à análise exata e minuciosa dos fatos e por fim à
generalização filosófica, de que ele usou com a devida sobriedade. Os
historiadores que, em vez de ter o máximo rigor na investigação dos
acontecimentos, enchem a história de sínteses fantásticas e plagiadas, é que
revelam falta de disciplina filosófica.
O método seguido por Herculano está em
perfeita harmonia com as doutrinas de um dos maiores luminares da filosofia, o
grande Bacon, que sustentava que a generalização se devia fazer vagarosamente,
considerando as sínteses feitas à pressa como um grande obstáculo ao progresso
das ciências e uma causa poderosa da multiplicação das polêmicas.
Só um gênio histórico verdadeiramente
prodigioso como Herculano, poderia realizar em Portugal o que lá fora se fez
com muito mais elementos. O eminente historiador estava num país atrasadíssimo
em estudos históricos e filosóficos, num país em que uma parte do clero ora
roubava documentos ora se recusava energicamente a entregá-los, num país em que
os monumentos históricos dispersos pelas colegiadas e mosteiros desapareceriam
completamente se Herculano os não tivesse coligido. Pode alguém, diz Oliveira
Martins, avaliar o trabalho do obreiro sem ferramenta nem trabalho são?
O amor da verdade e da justiça
predominava de tal modo em Herculano que seria capaz de sacrificar-lhe todos os
outros afetos do seu coração; ele punha a verdade acima de tudo. Herculano
nunca teve em mira sacrificar a sua consciência ao serviço de qualquer seita ou
partido; no seu rigoroso espírito a paixão pela verdade estava acima da
religião e do patriotismo. A grande imparcialidade com que Herculano apreciava
não só os papas mas também aqueles homens a quem a igreja canonizou, mostra-nos
evidentemente que o espírito católico não sufocou nele a paixão mais nobre do
verdadeiro historiador, o amor da verdade. O seguinte trecho do segundo volume
da História de Portugal é uma prova
da veracidade da minha asserção:
"Ao passo que um homem de gênio,
Inocêncio, se assentava no solo pontifício para manter a ação da hierarquia
sacerdotal, surgiam da obscuridade outros dois homens que haviam de hastear de
novo a bandeira da abnegação e fazer abraçar pelos seus sectários a rigorosa
pobreza repelida das congregações monásticas, instituindo em frente delas as congregações
mendicantes. Ninguém ignora os nomes destes dois indivíduos: Francisco de Assis
e Domingos de Gusmão: aquele, humilde mas abastado burguês italiano que, depois
de convertido ao misticismo, seguia com tanto ardor a vereda da mortificação
como antes seguira a espaçosa estrada dos deleites; este, nobre e altivo
espanhol, já revestido de dignidades eclesiásticas e que se arrojara à grande
empresa da reforma sem perder os caracteres da sua raça. Austero e inflexível,
homem cujos avós pelejaram sempre contra os sarracenos com o ferro numa das
mãos e o facho do incêndio na outra, dir-se-ia que mal sabe combater de diverso
modo os que não creem como ele. A sua exaltação religiosa é intolerante: a luz
suave do Evangelho não pôde vê-la senão reflexa na espada polida, senão retinta
em sangue. O gemido do herege no patíbulo é para ele um hino ao manso cordeiro
do Calvário: para ele o algoz exerce um sacerdócio."
Neste eloquentíssimo paralelo, um dos
mais concisos, enérgicos e claros de todas as literaturas, mostra-nos Herculano
a profunda diferença que houve entre os fundadores das duas ordens dos
franciscanos e dominicanos. O fanatismo do terrível São Domingos de Gusmão foi
por ele estigmatizado num estilo vigorosamente poético; o fato da igreja ter
posto este homem feroz, cruel e sanguinário no número dos santos não impediu
Herculano de pintá-lo com toda a fidelidade.
É de admirar que, referindo-se o
eminente historiador a estes dois vultos da igreja, não fizesse a mais leve
menção do santo mais popular para os portugueses, de Santo Antônio, que não só
pertenceu à ordem franciscana mas também viveu no reinado de D. Afonso II e
cuja glória o clero português quase que olvidou durante séculos deixando-o
envolto na lenda milagreira e chegando apenas a ocupar-se dos seus escritos e a
enaltecer a sua influência social quando pretendeu fazer manifestações
reacionárias e jesuíticas. Estou pro- fundamente convicto de que, se o grave
historiador, apesar de ser eminentemente cristão e patriota, não se ocupou do
referido santo, é porque, relativamente a esta glória nacional, não encontrou
nos cartórios que tão ativamente revolveu documentos que satisfizessem o seu
espírito extremamente severo e rigoroso. Aquele grande filósofo, a quem o Sr.
Teófilo Braga chama católico ferrenho, punha sempre o amor da verdade acima do
próprio catolicismo. Até no modo de considerar a religião cristã se revela a
poderosa autonomia da sua vasta e profunda inteligência. Com que energia não
combateu Herculano as ambições clericais, a política da igreja! O catolicismo,
que ele apreciava não só poeticamente mas também debaixo do aspecto prático,
não o impediu de tirar conclusões, como pretende o autor da História do romantismo. O espírito de
Herculano era ainda mais positivo do que o de alguns positivistas que se deixam
seduzir pelas miragens da sua imaginação e muitas vezes da imaginação alheia.
--
DIOGO ROSA
MACHADO
"Alexandre
Herculano, Conferência Pública realizada no Ateneu Comercial de Lisboa", 15
de Julho de 1900.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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