O
crítico e ensaísta Paulo Prado
A morte de Paulo
Prado já está recolocando em debate os ensaios concisos e saborosos com que
firmou seu nome na literatura brasileira. Naturalmente muito se dirá em louvor
do estilista quase britânico pela elegância sóbria, muito se discutirá a sua
famosa tese de brasileiro triste, produto das famigeradas três raças
melancólicas, uma vencida pela saudade e as duas outras ainda mal libertadas da
escravidão.
Menos, porém, muito
menos se comentará o que de mais sério e perspicaz escreveu, seus estudos de
história paulista. O tino político, que o levava não raro a profetizar com
amargura, e a tendência para a análise do passado, que o induzia a um recatado
orgulho de sua terra e de sua gente, casaram-se com felicidade nos ensaios de Paulística. Um pensamento enxuto e sagaz
enche o pequenino volume bem mais sólido e definitivo que o poema sarcástico do
Retrato do Brasil.
No prefácio à segunda
edição de Paulística, a presença da
política se impôs como consequência dos acontecimentos que acabavam de ocorrer
em São Paulo. A revolução de 1932 levara-o a preocupar-se com o problema da
unidade nacional que lhe parecia, então, mais ameaçada pelo unitarismo inovador
do que pelo regionalismo tradicional. Há nesse prefácio duas partes distintas:
uma explicativa do fenômeno separatista e outra que aponta o remédio ao mal.
Uma de diagnose, outra de terapêutica. A primeira é a melhor, realista e viva
na pintura ora pitoresca ora melancólica das diferenciações regionais. A
segunda é apenas de uma lógica que seduz à primeira vista; mas não convence
quando se penetra mais fundo no problema. Com efeito, o simples respeito à
autonomia dos Estados não parece solução suficiente para uma perfeita harmonia
nacional, da mesma forma que unia legislação unitarista não alcança, por si só,
o fim almejado de uma consciência coletiva sólida. O erro de Paulo Prado nesse
prefácio, algo "datado" em nossa época, é o mesmo do Retrato do Brasil e de mais alguns
ensaios seus: o menosprezo ao condicionamento econômico. Paulo Prado sempre se
prendeu demasiado à psicologia, quando muito acertando, na explicação das
situações brasileiras, o auxílio da antropo-geografia. Na realidade nem mesmo à
psicologia social se apegava, mas é de sua própria classe e banhada por uma
fantasia dolente, quase poética. Por isso prefiro seus estudos de Paulística (à exceção do prefácio). Aí
consegue a objetividade de que carece alhures, entra no âmago do assunto, com a
cautela de um desconfiado cientista. Porém com a elegância a mais.
De todos esses estudos destaca-se um acerca do "Caminho do Mar" e a gente de serra acima. A psicologia do paulista se apresenta explicada pelo isolamento geográfico, numa síntese clarividente que se ameniza da saudade do autor pela paisagem primitiva, com pinheiros e ipês cedendo lugar aos arranha-céus. A tese já não era nova no momento de Paulística, mas o ensaio reunia à precisão sociológica uma emoção concentrada que lhe emprestava sabor inédito. Tal como Gilberto Freire, Paulo Prado sabe não se esterilizar na pesquisa. Não lhe basta o documento insípido e morto; anima-o com hipóteses, arranca-lhe todas as possibilidades.
Outro estudo de Paulistica, merecedor de quentes
entusiasmos, é o que versa a história dos Pires e Camargos. Assunto
debatidíssimo e nada esclarecido, Paulo Prado lhe dá novo interesse. Se não
clareia perfeitamente as trevas das datas erradas e dos casos mal contados de
pais a filhos, aventa pelo menos as soluções racionais e humanas. Também diante
de outros problemas da história paulista tem Paulo Prado uma atitude solerte.
Coloca-se sempre com desenvoltura na melhor perspectiva e encara os fatos com
aguda penetração. Assim, por exemplo, na questão da contribuição judaica para a
etnia paulista, defendendo a importância dela e justificando-a com sobeja
argumentação.
À exceção de umas
tantas páginas que se poderiam chamar "de atualidade" e que por isso
mesmo se tornaram ilegíveis, como insuportáveis se fazem os vestidos fora de
moda, todos os ensaios de Paulística
se leem hoje com o interesse da primeira leitura. Não foram ultrapassados, não
envelheceram. Nem na apresentação nem no estilo. Alguns há que poderiam
citar-se como modelos de composição em virtude de sua homogeneidade, de seu
equilíbrio eloquente.
A morte de Paulo
Prado vai ainda reavivar os debates que ultimamente se abriram em torno da
Semana de Arte Moderna. A coisa começou com a série de testamentos da velha
geração e se continuou com as plataformas
dos novos.
De Paulo Prado não se
poderia falar sem pelo menos distinguir a sua participação no movimento de
1922. Foi não só um dos animadores corajosos dos moços, mas ainda o crítico
lúcido de nossos entusiasmos e de nossas timidezes.
Por detrás daquela
máscara de pudor, muito paulista, daquela reserva, daquela discrição, havia uma
sensibilidade atilada. Foi um moderno por tudo isso, e, mais ainda que pela
intuição artística, pela fome de saber e de estudo com que ultrapassou seus
companheiros de jornada e chegou antes de muitos deles aos dias atuais. Pelo
espírito, pela forma, pelo conteúdo, Paulo Prado foi um homem sempre presente
em todas as gerações contemporâneas.
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SÉRGIO MILLIET
SÉRGIO MILLIET
Revista
"Letras Brasileiras", fevereiro de 1944.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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