Nas ondas com Virgílio Várzea
Assim
cumprimentei o sol, nesta manhã, que é de domingo. Hoje, quando os de vida
simples, como eu, deixam os lençóis, às sete horas, põem logo o nariz na
gelosia entreaberta, a espiar o tempo. Já ninguém se confia nele. Parece que o
Sr. tempo se fez político.
Em
domingo, então, é quase certo tê-lo carrancudo e cinzento, quando não o temos a
nos pregar partidas, todo alegre de azul e de sol para, num momento, se
transformar em vaza-barris. Ainda bem que hoje não lhe passou pela fantasia a
perversidade de nos iludir e debicar. Surgiu claro, cantante e fresco como convém
a um domingo... que se presa.
Não
é que o chuveiro mais ou menos abundante me estrague a missa. Há não sei
quantos anos que perdi este habito de homem crente e morigerado. Mas, como não
sou ferozmente egoísta, penso nos outros, em particular numa certa vizinha a
quem o bom Deus mimoseou com um palminho de cara perturbadora e umas finas
ironias de melro aos meus cabelos brancos. E, senhores, a certa vizinha, de que
lhes falo, em domingos de sol, vai à missa como vai por domingos de chuva, e
compõe-se com tal jeito e arte que é um gosto vê-la por aí, tic-tac, como uma
elegante d'Auteil, ou de Longchamps, a deslumbrar moços e velhos, entre os quais,
está este seu criado Matias.
E
como o sol brilhava, puxei para a janela a minha pobre, cômoda, respeitável
poltrona, e saí, mentalmente, a passeio. Sabem por onde?... Pelo mar. É sério,
pelo mar. Apanhei sobre a pilha de livros ultimamente recebidos, um que me atraiu.
Era um novo livro de Virgílio Várzea, que tem por título Nas Ondas.
Viajei,
por tanto. O título do livro bem o indica, mas, sobre o título, o fato de ser
obra do Várzea prova que o passeio marítimo, que mentalmente dei, foi como se
eu tivesse vivido longos anos em tombadilhos e por praias, porque Virgílio Várzea
tem a magia de por os seus leitores no cenário, no ambiente, na trama das suas
emocionantes narrativas; é um artista raro, que sabe se apoderar dos que o leem
e sabe comovê-los.
Como
todos os livros de Virgílio Várzea este é feito com o paciente cuidado de um
analista da alma humana e de um descritivo naturalista, à maneira dos que
pertenceram a uma geração em que a literatura era um culto. Virgílio está ainda
na posse absoluta deste culto, onde é sacerdote máximo. Lê-lo, meus senhores, é
um supremo gozo... e saibam que o gozo da leitura vai, hoje em dia, se tornando
raridade, tão difícil é a gente aventurar-se ao que nos dão em artigo
modernismo... Quem abre um livro, neste tempo, está sempre a contar com a lata
de chouriços, de que falava o Sr. Ramalho Ortigão.
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Revista “Fon-Fon”, de 23 de julho de 1910
Revista “Fon-Fon”, de 23 de julho de 1910
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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