Discurso do Sr. Múcio Leão
A
exemplo do que acaba de fazer o Sr. Cassiano Ricardo, também eu desejo trazer à
Academia o meu depoimento acerca do que poderíamos chamar o caso Monteiro
Lobato.
De
há muito era o nome do autor de "Urupês" citado, nas conversas
acadêmicas, como o de um dos escritores brasileiros mais dignos de figurar nos
quadros da Academia. Refiro-me, é claro, a um grupo que para aqui entrou posteriormente
a 1930, grupo em que posso citar os nomes dos senhores Cassiano Ricardo,
Ribeiro Couto, João Neves da Fontoura, Barbosa Lima Sobrinho, Manuel Bandeira,
Alceu Amoroso Lima, Clementino Fraga, Viriato Correia, Oliveira Viana, Menotti
Del Picchia, tantos outros, dos quais tive sempre ocasião de ouvir que não
compreendiam estar Monteiro Lobato fora da Academia, alguns deles, num belo ato
de modéstia, chegavam mesmo a confessar que se sentiam mal em pertencer a uma
instituição de ordem literária a que não pertencia o autor de
"Negrinho". Que viam em Monteiro Lobato os acadêmicos que assim
pensavam? Viam o mestre da arte do conto no Brasil de hoje, viam o criador de
"Colcha de Retalhos", de "Bocatorta" e de "Engraçado
Arrependido". Viam o renovador de tantas idéias, o debatedor dos assuntos
nacionais, que tem dispersado uma útil atividade em tantas colunas de jornais e
de revistas. Viam o reformador da língua brasileira, o homem que escreve em um
estilo tipicamente brasileiro... Mas não era somente isso que no Sr. Monteiro
Lobato viam aqueles que desejavam trazê-lo para o nosso grêmio. Esses viam
nele, também, o escritor de talento que por duas vezes viera bater às portas da
Academia, sendo por duas vezes repelido. Viam o escritor ilustre que aqui
viera, em 1921, solicitar os sufrágios acadêmicos e que daqui saíra com a
amargura de haver recebido, em um terceiro escrutínio, um simples voto e em um
primeiro escrutínio nenhum voto; o escritor eminente que cinco anos depois
voltara a solicitar à Academia a sua inscrição, para daqui sair com outra nova
amargura — a de chegar a receber, num quarto escrutínio, apenas dois votos...
Viam, ainda, no Sr. Monteiro Lobato, o homem de ação, o homem de atitudes
pessoais, firmes, o combatente do campo das idéias. Viam nele a vítima de
vários sofrimentos de natureza particular, como esse que lhe motivou, há dois
ou três anos, a perda de dois filhos estremecidos. Em síntese: os acadêmicos,
que desejavam trazer para o nosso grêmio o Sr. Monteiro Lobato, simbolizavam
nele todos os homens de real mérito que se encontram fora da Academia, todos os
que, por um motivo ou outro, para aqui não lograram vir. E era essa a imensa
significação que iria ter, aqui dentro e fora daqui, uma candidatura do autor
de "Urupês", provocada por nós, levantada por nós, tornada vitoriosa
por nós.
Essas
foram, durante longo tempo, as cogitações dos acadêmicos que desejavam ver
entrar em nossa instituição o Sr. Monteiro Lobato.
Ao
Sr. Cassiano Ricardo, como o amigo mais íntimo do Sr. Monteiro Lobato, como seu
companheiro na Academia Paulista de Letras, foi por esse grupo dada, explícita
ou implicitamente, a missão de obter do autor de "Urupês" a
aquiescência para uma possível indicação sua a uma candidatura à Academia.
Acabou de ouvir a casa, no depoimento do Sr. Cassiano Ricardo, como este nosso
ilustre colega se desincumbiu dessa missão, e como logrou obter
do escritor paulista consentimento para o movimento, que era dos seus amigos
aqui dentro, mas que era também da pura consciência acadêmica, pois havia,
irmanados no gesto, até mesmo acadêmicos que nunca tiveram ocasião de se
avistar com o Sr. Monteiro Lobato.
Quando
ocorreu a vaga de Alcides Maia pareceu ao grupo a que me refiro que era a
ocasião propícia para o movimento que havia de trazer à Academia o Sr. Monteiro
Lobato. Tratava-se da substituição de um autor de gênio também nitidamente
brasileiro, muito preocupado com os problemas das origens e da formação
brasileira, o criador de um estilo de seiva fundamentalmente regional. O Sr.
Monteiro Lobato havia de ter grande satisfação em assumir na Academia uma
cadeira em que fora precedido por um homem do fúlgido espírito de Alcides Maia,
uma cadeira que teve como fundador um grande romancista como Aluísio Azevedo,
uma cadeira que tem como patrono um poeta preocupado com os assuntos
brasileiros, como é Basílio da Gama, o autor do "Uraguai".
Levada
ao Sr. Monteiro Lobato a comunicação de que havia, a nossa ver, chegado o
momento de sua candidatura, mandou ele ao Sr. Cassiano Ricardo, ao Sr. Olegário
Mariano (que ele sabia fazer questão de ser o primeiro signatário de sua
indicação) e a mim próprio, um telegrama de aceitação do movimento em seu
favor. O telegrama, que está em minhas mãos, traz a data de 11 de setembro e
diz o seguinte: "Diante da iniciativa que, conforme vocês
me comunicam, partiu de numerosos acadêmicos e amigos, não poderei esquivar-me
da honrosa lembrança do meu nome para a vaga de Alcides Maia. Abraços. —
Monteiro Lobato."
Era,
como se vê, a completa autorização para que pudéssemos levar avante o movimento
em favor da sua candidatura.
Foi
nesse momento que os jornais de São Paulo e do Rio começaram a publicar
entrevistas com o Sr. Monteiro Lobato, entrevistas em que, com a sua malícia e
a sua graça, o escritor dizia coisas realmente deliciosas acerca da nossa
instituição. Em uma dessas, por exemplo, assegurava ele que a seu ver a
Academia era uma lata. Mas acrescentava que a tiara dos papas também é outra
lata. Ora, ficando por ele colocada no mesmo nível da tiara dos papas, a
Academia não ficava mal... Viu o Sr. Monteiro Lobato que a Academia teve o
espírito de não se zangar com a sua malícia — e os dez acadêmicos que desejavam
fazer a indicação de seu nome mantiveram-se firmes nesse propósito. Disse eu
que a Academia teve o espírito de não se zangar com estas perfídias e poderia
acrescentar que ela soube conservar a inspiração de independência, que lhe era
necessária para levar até ao fim o propósito de fazer a indicação do nome do
Sr. Monteiro Lobato.
Sim,
porque a independência não reside apenas naqueles que fazem praça de recusar as
honrarias que lhe são oferecidas. A independência estava, no caso, naqueles que
sabiam que, acima das malícias que o Sr. Monteiro Lobato vinha, em suas
entrevistas, fazendo contra a Academia, se encontrava a conveniência de
recebermos em nosso grêmio um escritor autêntico, um escritor que tem vivido toda
a sua vida dedicada à criação de uma formosa obra literária.
Mas,
por outro lado, estávamos informados de que o Sr. Monteiro Lobato, nas conversas
em que mantinha com os repórteres, ia um pouco adiante nas suas afirmativas. Um
deles informou a um companheiro nosso que o escritor estava disposto mesmo a
recusar, à última hora, a sua indicação...
Assim
informados, os que desejavam fazer a indicação do nome do Sr. Monteiro Lobato
trataram de tomar as providências necessárias para evitar uma decepção maior...
Pelo
Regimento atualmente em vigor, o processo eleitoral da Academia divide-se em
dois momentos: no primeiro — que vigora durante o primeiro mês, a partir da
declaração de abertura da vaga a inscrição é espontânea por parte dos
candidatos, no segundo — que se prolonga durante o segundo mês — a inscrição é
feita pela própria academia, mediante indicação subscrita por dez acadêmicos.
Recebendo qualquer indicação nesse período, cabe ao presidente da Academia
transmitir a informação ao candidato apresentado; a este, no prazo máximo de
dez dias, cabe responder ao presidente da Academia, dizendo se aceita ou não a
sua indicação, e se deseja ou não concorrer à vaga.
Em
data de 6 do corrente, findou o primeiro mês depois da declaração de se
encontrar vaga a cadeira de Alcides Maia. Começou, pois, no dia 7, a vigorar o
segundo período — destinado à apresentação das candidaturas por parte da
Academia. Nesse mesmo dia, dava entrada na Secretaria da casa o seguinte
documento: Indicação — De acordo com o
Art. 18 § 1º, do Regimento Interno indicamos para a vaga do nosso querido e
saudoso companheiro Alcides Maia o nome do Sr. Monteiro Lobato. Sala das sessões,
7 de outubro de 1944. Assinado: Olegário Mariano, Menotti Del Picchia, Viriato
Correia, Manoel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Cassiano Ricardo, Múcio Leão, Oliveira
Viana, Barbosa Lima Sobrinho, Clementino Fraga.
Em
data de 9 do corrente, o presidente da Academia escreveu ao Sr. Monteiro Lobato
uma carta, na qual lhe dava conta da indicação do seu nome. Estava assim
redigida:
"Rio
de Janeiro, 9 de outubro de 1944.
Ilustre
amigo Dr. Monteiro Lobato.
Tenho
o prazer de comunicar-lhe que, em documento apresentado à Presidência da
Academia Brasileira de Letras, em data de 7 do corrente e subscrito pelos senhores
Olegário Mariano, Menotti del Picchia, Viriato Correia, Manuel Bandeira, Alceu
Amoroso Lima, Cassiano Ricardo, Múcio Leão, Oliveira Viana, Barbosa Lima
Sobrinho e Clementino Fraga, foi o nome de Vossa Excelência indicado para a
substituição do nosso saudoso e querido companheiro Alcides Maia. De acordo com
o regimento em vigor, cabe-me trazer a Vossa Excelência esta comunicação.
Ainda
de acordo com o regimento, a inscrição de Vossa Excelência se tornará efetiva,
nos termos do art. 18, parágrafo 1º, mediante carta que Vossa Excelência dentro
de dez dias terá a bondade de enviar a esta Presidência, dizendo que aceita a
indicação e que deseja portanto concorrer à vaga.
Queira
receber os protestos de minha grande estima e sincera admiração.
Assinado:
Múcio Leão. Presidente da Academia Brasileira de Letras."
Em
carta aberta, dirigida ao presidente da Academia, e publicada nos jornais de
São Paulo, ontem, 11 do corrente, o Sr. Monteiro Lobato respondeu a essa
comunicação nos seguintes termos:
"São
Paulo, 11 de outubro de 1944.
Sr.
Múcio Leão.
D.
D. Presidente da Academia Brasileira.
Acuso
o recebimento da carta de 9 do corrente, na qual me comunica que em documento
apresentado à Academia Brasileira, subscrito por dez acadêmicos, foi meu nome
indicado para a substituição de Alcides Maia; e que nos termos do regimento
devo declarar que aceito a indicação e desejo concorrer à vaga.
Esse
gesto de dez acadêmicos do mais alto valor intelectual comoveu-me intensamente
e a eles me escravizou. Vale-me por aclamação — honra com que jamais sonhei e
está acima de qualquer merecimento que por acaso me atribuam. Mas o regimento
impõe a declaração do meu desejo de concorrer à vaga, em luta com outros nomes
que se apresentem — e isso me embaraça. Já concorri às eleições acadêmicas nos
bons tempos em que alguma vaidade ainda subsistia dentro de mim. O perpassar
dos anos curou-me e hoje só desejo do mundo o esquecimento de minha insignificante
pessoa. Submeter-me, pois, ao regimento seria infidelidade para comigo mesmo —
duplicidade a que não me atrevo.
De
forma nenhuma esta recusa significa desapreço à Academia, pequenino demais que
sou para menosprezar tão alta instituição. No ânimo dos dez signatários não
paire a menor suspeita de que qualquer motivo subalterno me leva a este passo.
Insisto no ponto para que ninguém veja duplo sentido nas razões de meu gesto.
Não é modéstia, pois não sou modesto; não é menosprezo, pois na Academia tenho
grandes amigos e nela vejo a fina flor da nossa intelectualidade."
É
apenas coerência: lealdade para comigo mesmo e para com os próprios
signatários; reconhecimento público de que rebelde nasci e rebelde pretendo
morrer. Pouco social que sou, a simples ideia de me ter feito acadêmico por
agência minha me desassossegaria, me perturbaria o doce mecanismo ledo e cego
em que caí e me é o clima favorável: a idade.
Do
fundo do coração agradeço a generosa iniciativa; e em especial agradeço a
Cassiano e Menotti o sincero empenho demonstrado em me darem tamanha prova de
estima. Faço-me escravo de ambos. E a tudo atendendo, considero-me eleito — mas
numa nova situação de academicismo: o acadêmico de fora, sentadinho na porta do
Petit Trianon, com os olhos reverentes pousados no busto do fundador da casa e
o nome dos dez signatários gravados indelevelmente em meu imo. Fico-me na
soleira do vestíbulo. Mal comportado que sou, reconheço o meu lugar, bom
comportamento acadêmico lá de dentro, me dá aflição...
Peço,
senhor presidente, que transmita aos dez signatários os propósitos de minha
mais profunda gratidão e aceite um afetuoso abraço deste seu admirador e amigo.
— Monteiro Lobato."
Cabe,
entretanto, aqui uma observação oportuna — a de que a indicação do Sr. Monteiro
Lobato, não tendo ainda sido levada ao conhecimento do plenário, ainda não está
feita: encontra-se num trâmite inicial.
Realmente,
como já disse, acima, o Presidente da Academia estava informado, por parte de
pessoas do círculo íntimo do Sr. Monteiro Lobato, de que o escritor muito provavelmente
iria procurar causar um vexame à Academia, recusando-se a aceitar a sua
candidatura, depois da indicação apresentada.
Sendo
assim, a mesa da Academia tomou uma precaução que lhe pareceu aconselhada pela
prudência: a de comunicar a indicação ao Sr. Monteiro Lobato em primeiro lugar,
deixando para depois a comunicação à Academia. Assim levarão a plenário, simultaneamente,
as duas notícias: a da indicação do nome do Sr. Monteiro Lobato como candidato
à vaga de Alcides Maia e a da aceitação da indicação por parte do escritor.
Viram
os senhores acadêmicos, porém, que a carta do Sr. Monteiro Lobato vale como uma
definitiva recusa a qualquer candidatura na Academia. Declara-se ele
"embaraçado" para aceitar a concorrência no pleito, que a letra
regimental lhe impõe. E acrescenta: "Submeter-me, pois, ao regimento,
seria infidelidade para comigo mesmo — duplicidade a que não me atrevo".
Vê-se,
assim, como o Sr. Monteiro Lobato conseguiu ser fiel ao propósito que
(anunciavam alguns dos seus amigos) era, desde o princípio, o seu: o de simular
aceitar a indicação, para recusá-la depois, de feita, ocasionando, com isso, um
vexame à Academia.
Infelizmente
para ele, na pressa de atender ao seu desejo de castigar a nossa instituição, o
escritor se precipitou um pouco. Para que o seu gesto tivesse completo êxito —
um êxito que chamaríamos espetacular, se quiséssemos usar uma palavra de tão
eloquente força no terreno das notícias de sensação era imprescindível que a
indicação tivesse sido feita. Seria recusada então. E isso era uma coisa sem
dúvida fenomenal.
Mas
para que a indicação tivesse sido feita, era necessário, não apenas que ela
houvesse "sido apresentada à presidência da Academia" (como eu dizia
na carta que ao Sr. Monteiro Lobato escrevi); isso era um mero caminho do
expediente da casa. Era preciso, sim, que ela houvesse sido levada ao
conhecimento do plenário, que ela houvesse sido aceita pelo plenário.
Isso,
entretanto, não aconteceu. A indicação não foi ainda apresentada — e não passa,
por isso, até agora, de um mero propósito de indicação.
Ora,
a Academia acabou de ouvir as palavras de um dos subscritores da indicação, o
Sr. Cassiano Ricardo, e viu que Sua Excelência retira o seu nome do documento.
Vários outros acadêmicos que subscreveram — a começar pelo que está fazendo a
presente exposição — retirarão as suas.
Já
agora — retiradas as assinaturas do Sr. Cassiano Ricardo e a minha própria — o
documento conteria apenas oito subscritores.
Não
está, portanto, nos termos regimentais a indicação do Sr. Monteiro Lobato, que
devia ser lida na sessão de hoje. Portanto, essa indicação não chegou a ser
feita.
É
esse o depoimento pessoal que, em minha qualidade de um dos subscritores da
indicação em favor do Sr. Monteiro Lobato em minha qualidade também de
presidente da Academia Brasileira de Letras, me cabia trazer aos colegas.
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