História de uma entrevista
No
décimo terceiro volume das obras completas de Lobato, dedicado a prefácios e
entrevistas, a primeira que aparece entre estas últimas tem uma história, e é a
que se propõe aqui relatar.
A
colocação inicial do documento no referido livro já demonstra a importância que
lhe emprestava o próprio autor. Realmente, foi a mais importante entrevista
concedida pelo anti-imperialista do "Escândalo do Petróleo", não somente
no sentido jornalístico como, principalmente, na configuração do pensamento
político do famoso escritor, coisa que muita gente negava existir, ele
inclusive, em meio de tiradas irônicas ou pessimistas.
Como
motivo de sensação jornalística, deve ser recordado que a entrevista apareceu
em plena agonia do DIP, — enquanto a guerra atingia também ao seu fim — e
ajudou muito em acabar com o monstrengo do Estado Novo, que tanto sofrimento
causara a escritores e jornalistas, especialmente a Lobato, como é sabido. Pela
primeira vez em sua existência, o "Diário de S. Paulo", que a
publicou, foi reimpresso uma semana depois, para atender a numerosos pedidos.
Deve ter sido um fato inédito na história da imprensa brasileira. Vários outros
jornais, sem ser da "cadeia associada", reproduziram-na. Em diversas
cidades do interior, foi também impressa em folhetos, como resultado de coletas
populares, feitas espontaneamente, em demonstrações irreprimíveis de entusiasmo
pelas palavras corajosas que continha.
Em
março de 1945, época em que se lutava pela reimplantação da democracia em nossa
terra e, sobretudo, pela anistia aos presos políticos, sugeri ao editor Artur
Neves que conseguisse de Lobato uma entrevista sobre problemas políticos. A
hora era propícia para ele falar e a ideia foi aceita.
Quando
recebi a entrevista escrita (Lobato escrevia as suas entrevistas de maior
responsabilidade, pelo receio quase pânico de que o seu pensamento fosse
deturpado pela negligência ou incompetência dos repórteres...) tinha em mãos
uma verdadeira "bomba". Fazia a apologia do regime socialista contra
a ordem capitalística. Considerava Prestes um dos maiores brasileiros e que
pagava há longos anos no cárcere o "crime" de ser patriota, de lutar
pelo progresso e pela democracia. "É graças aos comunistas que hoje
apodrecem nas cadeias que a realização do sonho socialista se aproxima",
constatou, considerando dialeticamente os efeitos da brutal reação.
"A
nossa ordem social baseia-se na miséria", foi outra de suas verificações,
analisando a situação dos trabalhadores do campo e das cidades e pra acabar com
esse estado de coisas foi "que o sonho socialista surgiu". Tratou,
também, da inflação monetária — e da mentira ditatorial estadonovista — e os
profundos reflexos da crise que se daria com a deflação, com os efeitos da
segunda grande guerra mundial, prevendo, com razão, que na Europa e na Ásia
haveria a passagem da "Ordem Social Capitalista para a Ordem Socialista,
mais ou menos como a Rússia".
Falou
com simpatia da experiência da U.R.S.S.: — "O que a Rússia fez nesta
guerra, e o que está fazendo na ciência, na educação e em todos os setores da
vida humana é o maior dos milagres modernos — e essa vitória da experiência
russa, meu caro, não pode mais ser oculta aos olhos de todos os países: está aí
a crise do mundo. Não há país que vagamente não queira experimentar em sua
carne a experiência que o russo fez a princípio com dor, finalmente com sucesso
pleno. E como hão de os privilegiados do mundo — a 1% — conter os desejos, os
ímpetos, a avalanche dos 99% da humanidade?" Muitos atribuem ao padre
Saboya de Medeiros, o título de "grande eleitor" de José Maria
Crispim, o deputado federal mais votado nas eleições de dezembro de 1945, por
causa da rumorosa sabatina radiofônica em que o trêfego jesuíta não conseguiu
levar a melhor sobre o dirigente comunista. Entretanto, se alguém merece esse título
— além da força de organização do P.C.B. e do próprio povo paulista — é Lobato.
Foi companheiro de prisão de Crispim e fez dele na entrevista os maiores
elogios — "modesto operário — mas, que alma grande, que imenso coração,
que nobilíssima inteligência!"
"Tomem
nota — afirmou ainda — desse nome. Será um dos grandes nomes do dia de amanhã —
e eu aqui declaro que perto dele me sinto tremendamente pequenininho..."
Nove
meses depois, de fato, Crispim era o primeiro mandatário do povo paulista na
Assembleia Constituinte Nacional.
Ao
final, não resistiu aos seus pendores de livre pensador e passou uma grande
descompostura no Papado, vaticinando que Pio XII viria ainda um dia exilado
para morar em luxuoso hotel no Brasil.
Levei
as sensacionais declarações para o jornal e houve receio de publicá-las.
Fizeram mil consultas, a entrevista andava de mão em mão, de um chefe para
outro, e acabou sumindo misteriosamente da mesa de um colega, que fora
encarregado de fazer o "tró-ló-ló-ló" de apresentação.
Fiquei
desolado com o desaparecimento e o mesmo aconteceu a Artur Neves. Nem ele nem
eu estávamos com coragem de comunicar a Lobato o estranho ocorrido. Além do
mais, eu nem conhecia o criador de Jeca Tatu, e não estava disposto a levar um
estrilo lobatiano, na emergência de ir conhecê-lo pessoalmente; para avisar de
coisa tão desagradável. Neves encheu-me de coragem. Fosse em casa de Lobato,
explicasse o que sucedera e talvez (se ele estivesse de bom humor...) acederia
em reconstituir a grande entrevista. Iria apenas preveni-lo da visita, sem
dizer o motivo, mas, com o seu feitio diplomático, prometeu preparar o espírito
do escritor para me receber sem pedras na mão e palavras duras contra a
covardia e os interesses subterrâneos de certa imprensa.
Na
tarde de domingo em que bati à porta da casa da Aclimação, onde então morava o
escritor, e dona Purezinha fez-me entrar na sala, devia mostrar na fisionomia
toda a inquietude dos moleques das histórias do pai de Narizinho Arrebitado,
após as suas terríveis trampolinagens.
—
Dr. Lobato, sou fulano de tal e venho lhe dizer que aconteceu uma grande
desgraça! — explodi numa enfiada, quando ele avançava por uma porta, sorrindo,
de mão estendida.
Estacou.
Deu-me a mão, enquanto com a outra fazia sinal para que me sentasse na poltrona
defronte à janela, com um ar chocarreiro, interrogativo, ao mesmo tempo que
tomava lugar na cadeira de balanço próxima.
Disse-lhe
tudo, com um tom bastante infeliz, mas muito sincero e convincente. Não veio o
esperado estouro. Pelo contrário, muito amável, compreendendo a situação, logo
prometeu fazer a reconstituição da entrevista, convencido de que lhe falava a
verdade.
E
dentro em pouco, "puxava" prosa em torno dos assuntos que focalizara
na entrevista. Fez de tal forma, que me senti animado a dar opinião sobre este
ou aquele ponto, pedindo ou sugerindo que atenuasse esta ou aquela verrina,
como a referência ao papa, lembrando os desgostos que sempre produz a discussão
do problema religioso em forma prematura ou apressada. A todos os reparos, ele
respondia com bonomia, fazendo rápidos e contundentes comentários, ou
concordando sorrindo, lembrando sempre "causos". A verdade é que dois
trabalhadores intelectuais confraternizavam-se na prosa longa: um famoso
escritor, de cabelos encanecidos, firme e atento aos problemas da nossa gente e
de nossa terra, e um humilde repórter, feliz por haver conseguido a sua maior
entrevista.
Dois
dias depois a cópia ou reprodução prometida estava na redação, escoimada pelo
próprio Lobato dos pontos que feria demais a sensibilidade secretarial (como
por exemplo a história da mudança do papa para o Brasil e a pressão dos
imperialistas norte-americanos para que não vendêssemos café para a União
Soviética) e desta vez, com a ajuda de Olinto de Castro, que fez os
sub-títulos, aventurei-me a fazer o "nariz de cera" de apresentação.
Quando o dirigente comunista Ventura, falando em majestoso comício na praça da
Sé em prol da anistia de Prestes e demais presos políticos anti-fascistas, dias
após, citando palavras de Lobato naquela entrevista, o jornalista compreendeu
que poderia ter orgulho do trabalho que prestara para a concretização de uma
justa aspiração do povo, pela paz mundial, pela liberdade, pelo progresso e
pela democracia em nossa pátria.
Jeca
Tatu estava transformado em Zé Brasil.
---
M. TULMANN NETO
M. TULMANN NETO
Revista "Fundamentos", outubro
de 1946.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba
Mendes (2016)
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