O
texto, a seguir, foi extraído da revista "Kosmos", em sua edição nº
4, de abril do ano de 1909, portanto, um ano após a morte do nosso genial
Machado de Assis. Trata-se de uma crítica feita ao nosso romancista, de autoria
de um tal José Maria de A. Belo, cujo nome já se perdeu no trânsito da
história...
Segundo
um pensamento atribuído a Sibelius: “Não devemos dar demasiada atenção ao que
os críticos dizem. Nunca foi erguida uma estátua em honra de um crítico.” A
crítica do nosso José Maria parece exemplificar em perfeição esta importante
reflexão. Lá pela tantas diz ele do grande Machado de Assis: “Machado de Assis
não teve e nem terá nunca uma larga repercussão no nosso meio”. Incrível como a
crítica literária, às vezes tão burra e cega, só consegue enxergar o artista
pelo víeis restrito do seu tempo, sem aventar outras possibilidades. Hoje
Machado de Assis é a referência máxima de nossa literatura, sendo inclusive de
elevado prestígio nos âmbitos literários em todo o mundo. Mais adiante diz
ainda o mesmo crítico: “Machado de Assis não é nosso pois, não está na curva da
nossa evolução intelectual...” Como se pode notar Machado de Assis não fora
muito bem aceito por determinada elite tupiniquim, e sua condição social e
étnica explicam um pouco esta aversão ao nosso gênio literário.
Machado
é o nosso grande escritor e merece todos os méritos, pois, além de tudo,
tornou-se num maravilhoso exemplo de uma pessoa verdadeiramente batalhadora,
que lutou contra as intempéries da vida, que, no seu caso, era sua condição
social humilde, sua cor e sua doença, a epilepsia.
VIVA
MACHADO DE ASSIS!!!
Iba
Mendes (2010)
***
Machado
de Assis
Bem cedo, o grande
morto do ano passado vai sendo esquecido.
A última vez, que se
falou dele foi, parece-me, na bela conferência do Sr. Oliveira Lima, que o Jornal da Comércio nos deu
integralmente.
No entanto, ninguém
em nosso meio, como Machado de Assis, consegue despertar o interesse literário.
Nulo se o lê
impunemente; é uma figura estranha entre nós.
Normalmente, a
cultura brasileira não permitiria o seu aparecimento; ele paira numa esfera
superior ao seu tempo e à sua raça.
Como se tem dito mais
de uma vez, foi um grego ou um francês das antigas tradições, prendendo-se
através de Anatole France e de Renan ao grande século de Luís XIV.
A obra literária
representa, tanto quanto a personalidade do escritor, as ideias, os costumes,
as aspirações ambientes; aquele se torna, inconscientemente, o mais alto
expoente da inteligência e dos sentimentos do seu meio. Machado de Assis, não.
Isola-se dos seus, foge a corrente da literatura nacional; pelo seu refinado
intelectualismo, pela sua arte originalíssima é um produto esporádico, uma
espécie de anomalia.
Se não tem escolas
nem épocas literárias, a humanidade de seus livros não é propriamente uma
humanidade ideal sem limites geográficos ou históricos. Neles se retrata uma
sociedade, que já foi uma geração extinta, que nós, os novos, não conhecemos e
quase não compreendemos hoje.
Não quer isto dizer
que Machado de Assis tivesse sido um escritor de romances nacionais ou um
novelista indígena, no estreito ponto de vista de Macedo ou de Alencar.
O Brasil se resumia
para ele no Rio de Janeiro, onde, como todos os centros cosmopolitas, as
originalidades de raça se perdem, na imitação inconsciente das civilizações
modelares.
Assim pois, ele
colheu o homem na sua formação definitivas como um produto completo, de que não
quis conhecer os fatores.
O mundo físico quase
que não existe na sua arte; aproximando-se de Sthendal, neste ponto, o homem só
lhe valia como uma complicada máquina cerebral, que ele psicólogo sutil se
comprazia em movimentar.
Não foi um
romancista; os seus livros não são romances, na acepção nítida e moderna do
termo, depois de Flaubert e de Zola.
A ele, o senhor da
suprema harmonia no estilo, o mestre querido da medida e da sobriedade
literárias, faltava a lógica do conjunto, a arte, talvez um pouco mecânica, da
confecção externas como lhe faltou também o talento descritivo e o poder de
imaginação.
E preciso aceitá-lo,
tal qual se revelou, com os defeitos de suas virtudes.
Deixou-se influir
muita pela liberdade de forma de De Maistre e, mais ainda, dos humoristas ingleses
Sterne e Dickens foram de certo, seus ídolos literários.
Eu sei que a novela
romântica ou os romances lógicos, medidas e justos de Flaubert, Zola e Bourget
se tem tornado de uma banalidade fatigante, em França, sobretudo, onde os
psicólogos sutis de anomalias sentimentais se multiplicam espantosamente.
Os livros de Anatole
France demonstram a reação que se vai fazendo em bem da graça, da bula e da
sobriedade, que são os apanágios eternos do espírito francês.
Entretanto não creio
que “Thais” ou os “Contes de Jacques Tournebroche” representem a forma
definitiva e vitoriosa da literatura.
Na intensidade da
vida moderna, o intelectualismo se aniquila; a arte se torna, inevitavelmente,
utilitária e democrática.
O romance tende pois
a se resumir numa espécie de monografia científica, num estudo breve e incisivo
de patologia social ou humana.
Mas nós não passamos
pela fase primeira. Machado de Assis é pois, um prematuro na nossa evolução
literária e, sobretudo, um entranho.
Ninguém foi menos
nacional do que ele. Não sentiu nunca a influência deletéria, para a arte, da
natureza violenta dos trópicos.
De origem humilde,
mestiça e tipógrafo, jornalista e burocrata depois, dir-se-ia que se encerrava
em si mesmo, criando-se um mundo intangível e à parte. Sua timidez congênita
seu bom gosto inato salvaram-no.
Num país, em que o
estilo é a pompa, a adjetivação desvairada, a frase voluptuosa e quente, que
causam arrepios de volúpia e calafrios de gozo, foi um sóbrio e um harmônico.
Colocando-se alguém,
num ponto de vista de crítica dogmática não o compreenderia. Com a sua timidez,
no ambiente social, em que viveu, deveria ter feito uma literatura de
comendador solene e besta.
Mestre de sua língua
respirando a atmosfera envenenada por um século de romantismo, seria antes um
retórico genial ao modo de Rui Barbosa.
No encanto, nem uma
nem outra coisa. Mesmo nos seus primeiros livros, em “Helena”, em “Histórias
sem data”, ou em “Papéis avulsos”, eivados ainda de certas ficções românticas,
o artista impecável de “Brás de Cubas”, ou de Dom Casmurro, se revela já, na
ironia amarga e suave, simultaneamente, na psicologia aguda, na limpidez do
estilo e sobretudo na correção da língua.
O cético e o
humorista da “Teoria do medalhão”, e do “Alienista” valem bem o cético e o
humorista do “Brás Cubas”, que é, sem dúvida, a sua obra-prima.
Para conhecê-lo, é
suficiente talvez ler esse livro de ouro, relê-lo duas, três vezes nas
entrelinhas, nos capítulos, que não escreveu... enfim, nas suas sutilezas
todas, na sua ironia branda, no seu pessimismo, que ele embalde, tenta ocultar.
Não lhe esqueçamos o
fim: “não tive filhos, não transmitir a nenhuma criatura o legado de nossa
miséria...”
Como ele próprio o
diz, foi este o único saldo que Brás Cubas encontrou na morte ou no outro lado
do mistério.
Esta história singela
sem episódios românticos, espécie de diário de uma vida burguesa e vulgar é, no
fundo, um livro doloroso e triste, o livro de um descrente, quase uma apologia
da inércia.
É preciso censurá-lo
por isso? Não. Machado foi sincero, a sua filosofia, que, no dizer do Sr,
Oliveira Lima, consiste no modo de ver e compreender o universo, era aquela.
E quem poderá dizer
que não seja a verdadeira e negar a inanidade de todos os esforços a eterna
importância humana?
Spencer nos
“Primeiros Princípios”, depois da sistematização genial de urna filosofia viril
e triunfante, cabe na dúvida, que lhe é um desmentido, na descrença, que é uma
irmã da inércia.
Quando se lê Machado
de Assis, um pesar único se tem: o de não ter descido mais na análise de nossas
misérias, de não ter desnudado melhor a alma humana, que tão bem soube
conhecer.
Machado de Assis,
psicólogo de raça, não teve nunca esta grande vista de conjunto, este poder de
síntese e de generalização filosóficos, um pouco dogmáticas talvez, que constituem
o grande mérito de Zola, por exemplo. Sua crítica se contenta em ferir de leve;
não quis descer ao âmago das coisas.
Parece que o abismo
da alma humana lhe causa medo e que a animalidade nossa lhe produz um movimento
instintivo de poder delicado e feminismo.
Está no seu gênio de
tímido, de uma timidez sincera, senhora um pouco excessiva e que foi sempre um
braço característico de si. Já se disse algures que essa timidez era um produto
de sua vida banal de burocrata; traria assim para os seus livros um reflexo do
convencionalismo e de respeito às causas aceitas, às hierarquias sociais.
Foi um pouco injusta
a crítica; ela era orgânica. Se se lhe fosse buscar uma origem qualquer, seria,
decerto, no seu ceticismo, no seu desprezo de artista pela imbecilidade humana.
Com maior verdade se disse de Machado de Assis, que encontra um certo prazer em
zombar do seu leitor, Sente-se-lhe o riso mudo nas entrelinhas, não o riso
sarcástico e irreverente de Eça ou o ritus
amargurado de Schopenhauer; é antes um riso piedoso e condescendente de avô
cético...
A tolice nossa não
lhe causa os gritos de revolta, o desespero agressivo de Eça de Queirós; quando
muito, lhe faz aflorar um ligeiro sorriso. É um paralelo interessante a se
fazer, este, entre as dois maiores escritores da nossa língua. Dotados ambos de
igual poder de observação, no entanto, a diferença entre os seus temperamentos
e processos de artistas, é radical e profunda.
Eça, nervoso e
irreverente, iconoclasta por índole e pela educação, chicoteou impiedosamente
todo um povo, caricaturista genial de uma sociedade degenerada, não conhecem
limites à ironia, excedendo-se, por vezes, em prejuízo de sua impassibilidade
superior de artista.
O cretino ou o
imbecil lhe causam desespero e ódio. Temperamento de combate, violento e
implacável, senhor de uma língua, que foi sua unicamente, mais do que escreveu,
fotografou, mais de que romances de costumes, fez processos dessa sociedade de
Acácios, Pachecos e Gouvarinhos, que foi portuguesa e é nossa hoje. Elegante e
requintado, vivendo nas civilizações superiores do velho mundo, foi o maior
patriota do seu tempo. Regenerou pelo ridículo, destruiu um mundo pela ironia.
Machado de Assis, tão arguto e mais amargo do que seu confrade português, não
teria nunca esse jacobinismo destruidor, essa irreverência atrevida, que já
dizia João do Ega, é uma condição de progresso.
Ele fere, sem deixar
a chaga sangrenta da autor dos “Maias”; a sua ironia é como um estilete agudo,
que mal se sente. Faltava-lhe a ousadia de prosélito; não tentaria nunca
destruir a ordem das coisas, aceitando a imbecilidade ambiente com uma bonomia
de aparência ao menos.
Foi puramente,
absurdamente, um intelectual nesta terra em que o intelectualismo é uma palavra
vã, uma ficção para uso externo, nas conferências de um patriota, como o Sr.
Oliveira Lima, fazendo indiretamente uma piedosa propaganda de sua gente...
Em casa se pode ser
mais franco... Machado de Assis não teve e nem terá nunca uma larga repercussão
no nosso meio; sua obra foi superior á nossa cultura, estranha ao nosso gosto.
A nossa democracia,
niveladora e exagerada, é impiedosa para as coisas de espírito, como aliás a
são todas as democracias. Estigmatizadas de origem, com uma perniciosa educação
política, sem vida social, asfixiados, sob a violência da natureza, numa fase
ainda de formação e, assim, de imitação inconsciente, a nossa literatura tem de
ser o que é, genuíno produto de todos esses fatores, uma literatura incolor,
sem relevos, oscilando entre o indigenismo banal de Alencar e a obra vibrante,
porém desarmônica de Coelho Neto, como seus melhores tipos, de um lado, e o
plágio servil dos livros franceses, de outro lado.
Machado de Assis não
é nosso pois, não está na curva da nossa evolução intelectual, de que o gênio
do Sr. Rui Barbosa é o ponto supremo.
O outro ático, que se
lhe aproxima, o Sr. Joaquim Nabuco, explica-se. Viveu longe do nosso meio,
sentiu de perto o contágio indelével de Renan, é um filho direto da cultura
francesa. A campanha abolicionista, que o trouxe à rua a multidão ruidosa e
bárbara, não conseguiu aviltá-lo como artista, nobilitando-o, como homem.
Para ser justo,
poderia excetuar ainda, Raul Pompeia, o grande artista do “Ateneu”, talvez o
livro mais perfeito da nossa literatura, e hoje os senhores Graça Aranha e Euclides
da Cunha.
Mas esses dois
últimos representam outra corrente literária, a da preocupação social, dos
altos problemas da vida, invadindo a arte, mostrando-lhe a função futura e
nobilíssima; assim me não é permitido estudá-los aqui, de afogadilho, nos modestos
limites, que a mim próprio tracei. “Canaã” e, sobretudo, os “Sertões” são
livros de sábios e de sociólogos.
O Sr. Oliveira Lima
não disse essas coisas que todos nós sentimos.
Falando perante um
auditório estrangeiro, sua excelência quis mostrar Machado de Assis, em si
somente, através de seus livros e de sua vida íntima. Não lhe importou a
anomalia, que ele representa nas nossas letras.
Sobre o escritor
dificilmente algo se poderia dizer de novo, máxime depois dos estudos do
erudito Sr. José Veríssimo e da conferência do nosso digno diplomata.
Relendo-lhe a obra e
esta conferência, fui tentado a dizer as minhas impressões, todas pessoais, sem
pretensões a crítica dogmática, já se vê...
Eu sei bem que é uma
irreverência, quase uma afronta a sua memória sagrada a nós todos, mas ele,
que, como “Brás Cubas”, se encontra, agora, no outro lado do mistério, decerto,
me perdoará, na sua condescendência de sempre, embora lhe sinta o sorriso
cético e piedoso e mais este “incomensurável desdém dos mortos”...
---
JOSÉ MARIA DE
A. BELO
Revista "Kosmos", abril de 1909.
Revista "Kosmos", abril de 1909.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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