Lobato
diante da morte
A sala de espera do quarto do
sanatório onde se achava Lobato no dia seguinte àquele em que ocorreu a
primeira manifestação do acidente vascular cerebral, estava cheia de parentes e
amigos, ansiosos pela saúde periclitante. Entro no quarto, onde numa atmosfera
de paz e calma repousava Lobato, tendo ao lado apenas sua inseparável e
dedicada esposa. Faço correr o zipe da janela existente na parede lateral da tenda
de oxigênio, em que ele estava usando desde a véspera, e procuro observar por
ela o estado do doente. Abrem-se as pálpebras com o ruído, e por entre a
floresta cerrada das sobrancelhas, dois olhos vivos, brilhantes de curiosidade,
procuram se orientar e descobrir, na semiobscuridade do ambiente, o significado
daquela situação.
— “Quando foi que morri?”, pergunta
ele calmamente. Procuro responder, enquanto coloco o aparelho para medir a
pressão arterial, mas ele continua observando a presença não reconhecida:
— “A única coisa que não estou
entendendo é esta sua cara aí. Afinal estou morto ou não?”
Fiquei em dúvida se Lobato brincava ou
falava seriamente. Apesar de saber que em numerosas circunstâncias dramáticas
de sua vida cheia de aventuras, nos momentos mais inesperados, ele resolvia uma
situação com uma pilhéria, pareceu-me que em face da morte tal coisa não se
poderia esperar. Lembremos que desde a véspera, há mais de 24 horas, Lobato
estava em estado de coma, praticamente alheio à vida. Retomando a consciência
num ambiente escuro, tendo por cima e pelos lados, cobrindo completamente o
leito as paredes da tenda de oxigênio, a ideia de que realmente estava morto
deve ter surgido em sua imaginação. Confesso que fiquei um tanto abalado com a
curiosidade serena com que Lobato fez estas perguntas, como quem está
procurando simplesmente se informar sobre o seu paradeiro, sentindo-se num
local desconhecido. Somente bem mais tarde, quando tomei conhecimento da carta
escrita a seu amigo Godofredo Rangel, foi que descobri que há já algum tempo
Lobato alimentava uma curiosidade extraordinária no sentido de descobrir o que
havia “do lado de lá”. Percebi então que aquela pergunta tinha sido feita
seriamente, e que a aparente irritação com que ele tomou consciência da
presença do médico, era realmente a irritação de quem parece ter encontrado a
solução de um problema e sente-se subitamente frustrado.
Ele amava a vida entretanto. Nos dias
seguintes, à medida que ia melhorando, com que entusiasmo ele acompanhava os
progressos diários da recuperação. Com que insaciável curiosidade se informava
sobre os aspectos tão curiosos de seu quadro clínico. Lembro-me por exemplo o
dia em que ele começou a receber as aplicações de ionização transcerebral e
descobriu que seu cérebro transformara-se em uma espécie de laboratório, em que
se processava a eletrólise do sal terapêutico. “Veja Purezinha”, comentava ele,
animado, com a esposa, “veja o que estes homens descobrem!”
É difícil resumir para um leitor leigo
o quadro clínico de Monteiro Lobato. O “icto cerebral” que o acometeu, ocorreu
em consequência de um espasmo vascular localizado no córtex do lobo occipital.
Dele não resultou qualquer paralisia ou distúrbio da consciência. Restou
entretanto uma sequela que é bastante rara na patologia neurológica: uma
alexia, sem o menor componente afásico, apresentando entretanto uma agrafia bem
nítida. Estranha esta coincidência. Um cérebro como o de Lobato atingido
exclusivamente em duas funções que eram nele tão extraordinariamente
desenvolvidas: a leitura e a escrita. Nos primeiros dias após o “icto” as
manifestações aléxicas eram bem nítidas. O doente enxergava perfeitamente,
podia acompanhar com o dedo o contorno das letras impressas na capa de um de
seus livros mais queridos. Não era capaz, entretanto, de relacionar os símbolos
gráficos com o seu significado. “Estranho isto”, dizia ele, “estou como se
tivesse acabado de entrar no grupo escolar”... Como é possível que eu não saiba
o que está escrito neste livro!” Com a escrita o mesmo se verificava. Era capaz
de realizar uma cópia servil, sendo incapaz de realizar a transposição de uma
grafia em letra de forma para a manual.
Tudo isto pode levar a crer que fosse
enorme seu desespero em face desta situação. Poucas vezes entretanto o
encontrei irritado com sua moléstia. É verdade que a recuperação foi se fazendo
tão rapidamente, que o doente sentindo os seus progressos diários, sabia que a
cura estava próxima, como de fato se deu em duas semanas aproximadamente.
Muito raramente tenho encontrado,
mesmo em publicações especializadas, a descrição de um quadro de alexia tão
puro como o que apresentou Lobato. As letras transformaram-se em traços sem
qualquer sentido simbólico. Certas vezes, algumas palavras de uso mais
automático, transpunham a barreira e eram lidas ou escritas, surgindo na
consciência acompanhadas de exclamações de entusiasmo verdadeiramente infantil.
“Quando é que vou passar para o segundo ano?” perguntou-me ele um dia, rindo
daquela maneira espontânea e contagiante. Recordo-me do dia em que fiz um teste
para averiguar a percepção do sentido de uma história em quadrinhos.
Entreguei-lhe um livro de W. Busch e pedi que me contasse a história. O doente,
solícito e interessado, foi acompanhando, quadro por quadro, descrevendo a
sequência da historieta. Ao terminar, o espírito irreverente de Lobato fez o comentário.
“Mas que historinha mais idiota, doutor, não tem aí alguma coisa melhor?”
Consciente como estava do desenvolvimento favorável que ia tomando a
recuperação, parecia querer aproveitar a singular experiência que estava tendo
de aprender a ler e escrever por uma segunda vez. Quando conversei mais tarde
com ele, depois de completamente restabelecido, sobre o que sentia quando não
podia ler ou escrever, fez-me considerações extraordinariamente interessantes,
impossíveis de serem desenvolvidas em uma revista leiga, que constituem uma
notável contribuição para a teoria exposta por H. Jackson sobre os distúrbios
da linguagem.
Curado Lobato da sequela resultante do
primeiro “icto”, apresentou-se então o problema de prevenir um seguinte, que
poderia ser fatal, como infelizmente o foi. Apesar de perfeitamente consciente
de que sua vida pendia por um fio, ele recusava-se a aceitar qualquer
prescrição que o privasse do contato com os amigos que tanto apreciava, ou de
trabalhar horas a fio, como o fez nos últimos tempos, pondo em ordem sua vida
antes de deixá-la. Certo dia em que chamava sua atenção, ele me respondeu
incisivamente: “Olhe, doutor. Perca a esperança. Você acha que eu quero viver
mais alguns anos, para ficar preso em casa, comendo arroz cozido em água, sem
poder sair ou conversar quanto eu quero?”
Lobato viveu como quis até o seu
último dia. O segundo ataque cerebral fulminou-o instantaneamente. Quando
cheguei à sua casa naquela fria madrugada de domingo, ele já estava morto, com
uma estranha expressão de calma e serenidade na face.
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ANTÔNIO BRANCO
LEFÈVRE
Revista
"Fundamentos", setembro de 1942.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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