A
Língua Portuguesa e os seus mistérios
Poderia, sob o ponto de vista
glotológico ou mais de acordo com o fenômeno linguagem propriamente dito,
empilhar aqui uma série de argumentações fortemente apoiadas por uma lista de
autores de todo o gênero e encarando o problema sob todas as suas variadas
faces; porém desejo me limitar tão somente à explicação e a um ligeiro
desenvolvimento da tese de um escritor português, note-se bem, português, Jaime
de Magalhães Lima, em interessante livro que tem o sugestivo título A língua Portuguesa e os seus mistérios.
Façamos um ligeiro exórdio antes de
entrar na matéria para melhor compreensão da tese e do seu valor.
Nós, quando lemos qualquer coisa (em
uma língua que nos é familiar, bem entendido) pensamos que nos estamos detendo
em palavra por palavra ou mesmo em sílaba por sílaba. É um grande engano. Se
fizermos uma experiência, isto é, se, lendo, pousarmos o nosso olhar em cada
palavra ou em cada sílaba, apuraremos que gastamos um tempo enorme para chegar
ao fim da página. O que resulta da observação?
Resulta, que, lendo uma língua
familiar, nós, por uma palavra como que sentimos ou adivinhamos as outras ou,
por uma sílaba, sabemos qual a palavra que ela inicia. Deste modo chegamos
mesmo a abranger frases inteiras num único golpe de vista ou num incompleto e
rapidíssimo golpe de vista.
Este fenômeno da visão se repete, de
modo perfeito, completo, com a audição. Quando nós ouvimos alguém que fala a
nossa língua ou uma língua que nos é familiar, o nosso ouvido, — como se dá com
os olhos na leitura — não detém ou não acompanha cada som em separado.
Basta-lhe um conjunto de sons, uma soma de sons para compreendermos tudo.
Se ouvimos uma língua que não
conhecemos bem, temos sempre a impressão de que estão falando muito depressa e
pedimos, então, para que falem mais devagar, para podermos entender. É que não
podemos apreender pela soma, pelo conjunto de sons, precisando que seja
separada, por assim dizer, parcela por parcela, som por som...
Conseguintemente, desde que dois povos
que falam a mesma língua não se compreendem rapidamente pelo conjunto de sons
que cada um emite ou que cada indivíduo de cada nacionalidade emite — eles
deixam de falar a mesma língua. Mudada, pois, a tonalidade de uma língua ela se
torna outra.
Com uma série de doutos argumentos e
uma grande erudição, Jaime de Magalhães Lima, o grande escritor português,
desenvolve a sua tese de maneira a elucidar a questão de um modo decisivo.
Os povos, diz ele em uma das suas
brilhantes páginas "não falam a mesma língua somente porque usam o mesmo
vocabulário e por ele se compreendem; ainda que esse vocabulário possa
reduzir-se ao rol de inconsciente volapuque
(língua artificial criada em 1879 pelo padre alemão Martin Schleyer), tão
usados pelas bastardias literárias modernas e tão querido do tráfego mercantil
das alfândegas, nem assim falarão a mesma língua os que o aproveitam. Por baixo
de um nivelamento e identificação meramente superficiais, os caracteres étnicos
renovam-se com uma persistência invencível e guardarão no canto da fala a sua
expressão mais profunda".
***
Jaime de Magalhães Lima entra
diretamente na questão da língua do Brasil ou do fenômeno de diferenciação da
linguagem entre o Brasil e Portugal.
O Brasil — diz ele — "o Brasil,
por exemplo, que mais de perto nos toca, será, na realidade, um país cuja
independência se avigora dia a dia, à medida que a acentuação da sua fala se
define e se torna orgânica".
E precisa, de modo completo a questão:
"Um português, conversando com um brasileiro, se possui sensibilidade e
ouvido não muito obtuso, logo verificará que a compreensão da palavra exige
certo esforço de atenção, perfeitamente
igual ao que qualquer outra língua estrangeira lhe demanda, e apenas menos
imediatamente perceptível para nós por um parentesco de linguagem que atenua o
desacordo e o reduz ao mínimo".
Este período de Jaime de Magalhães
Lima já é decisivo, mas, melhor ainda, ele põe o problema no seu justo termo no
período seguinte: "A desafinação (entre a língua brasileira e a língua
portuguesa) é, porém, manifesta e arrepia e cansa os nervos; ninguém, a não ser
aqueles que por inveterada incúria atropelam todas as línguas e se servem sem
constrangimento de toda a gíria moderna, cosmopolita ou pouco menos, — ninguém
que esteja habituado a pensar na sua língua e isento da vulgaríssima inanidade
de dizer sem pensar, ninguém de maior idade em tal matéria dirá que os nossos
sentidos e a nossa alma estão prontos a lidar indiferente com o português e o brasileiro".
Está aí de modo perfeito o fenômeno da
diferenciação da língua brasileira da língua portuguesa no próprio fenômeno da
linguagem.
Mas, Jaime de Magalhães Lima não se
detém somente neste fenômeno da linguagem em si mesmo, porque se alça ao
fenômeno político invencível para concluir: "Embora à estreiteza de
patriotismos, tão acanhados quanto despóticos, — repugne reconhecer que os
filhos, por serem diversos dos pais, não deixaram por isso de ser bons e
amados, prolongando na independência, que a sua condição lhes outorga, a
nobreza e as virtudes herdadas, e até pela própria independência e pela beleza
e dignidade que ela importa, honrando aqueles de quem descendem, e assim
orgulham os ter por filhos, no fundo desse fenômeno multiplicação e
diferenciação paralela de uma língua, não podemos deixar de pressentir e
admirar a riqueza de possibilidades congênitas que lhe permitem sobreviver
rejuvenescida, em vez de se afundar e perder no surdo labor de adaptação às
exigências do novo ambiente".
Não pode haver nada mais terminante,
mais claro, mais preciso, mais verdadeiro do que o contido nestes períodos de
Jaime de Magalhães Lima.
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OTO PRAZERES
OTO PRAZERES
Revista
"Cultura Política", julho de 1941.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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