O
grande missionário reconcilia-nos com a Companhia de Jesus.
É
o seu maior milagre.
Votada
em parte é antipatia de uma forte corrente de sábios e pensadores, como um
elemento dispersivo na solidariedade moral dos povos, a instituição, para eles
irrevogavelmente condenada, tem, na história, na feição de José de Anchieta,
talvez a sua feição mais atraente.
Combatente,
na Europa, como centro de resistência do catolicismo ante a irrupção impetuosa
da Reforma, combatente no Extremo Oriente ante as regiões seculares do
paganismo, ela, ante as tribos ingênuas da América, foi humana, persuasiva,
evangelizadora. Incoerente e sombria, pregando no século XVI, exageradamente,
através da justificação singular da estranha teoria do regicídio de Mariana, a
soberania do povo, e combatendo, aliada aos tronos, essa mesma soberania quando
surgia triunfante no século XVIII; precipitando ora os reis sobre os povos, ora
os povos sobre os reis; traçando, através da agitação de três longos séculos
atumultuados, os meandros de espantosas intrigas — ela foi, na América,
coerente na missão civilizadora e pacífica, seguindo a trajetória retilínea do
bem, heroica e resignada, difundindo nas almas virgens dos selvagens os grandes
ensinamentos do Evangelho. Não dispersou, uniu.
Ligou
à humanidade, emergente da agitação fecunda da Idade Média, um povo inteiro — espíritos
jungidos a um fetichismo deprimente, forças perdidas nas correrias guerreiras
dos sertões...
E
para esta empresa imensa teve entre nós uma alma simples, sem violentos ímpetos
de heroicidade — amplíssima e casta — iluminada pela irradiação serena do
ideal.
Daí
todo o encanto que ressalta à simples contemplação da bela figura de Anchieta,
entregue hoje à existência subjetiva da história, e cujo nome tem na nossa
terra a propriedade de fundir todas as crenças e opiniões numa veneração comum.
E
que em virtude de causas múltiplas, em que preponderam de um lado as condições
do meio e de outro o próprio sentimento dos missionários, a Companhia de Jesus
perdeu, no novo mundo, a feição batalhadora.
Longe
das controvérsias irritantes que circulavam a dissolução do regime
católico-feudal, os apóstolos que agiram fora da convulsão que abalava a
Europa, com São Francisco Xavier nas
Índias e com Anchieta e Nóbrega no Ocidente, ao desdobrarem, diante do gentio
deslumbrado, a significação divina da vida, num cândido misticismo, souberam
fazer da humildade a forma mais nobre do heroísmo e venceram pelo incutir nas
almas obscuras dos bárbaros todo o fulgor que lhes esclarecia as próprias
almas.
E
foram além na missão evangelizadora.
A
nossa história o diz: depois do combate incruento à idolatria, depois da
catequese das tribos, através de esforços que lembram os primeiros séculos da
igreja, animou-os a preocupação capital de salvá-las da escravidão. A ambição
extraordinária de audazes aventureiros exigia a força inconsciente do selvagem
para as longas pesquisas nos sertões.
A
história dolorosa das reduções jesuíticas terminada pelo sombrio epílogo de
Guaíra, patenteia uma inversão singular de papéis: o missionário reagia à
frente dos bárbaros arrancados às selvas, contra os bárbaros oriundos das
terras civilizadas.
Desse
conflito resulta, em muitos pontos, a feição verdadeiramente heroica do nosso
passado.
Ora,
os que arcavam, no Brasil, com esta missão múltipla e elevada, definem-se
admiravelmente em Anchieta — um nome que é a síntese de uma época.
Grande
homem, segundo a definição profunda de Carlyle, a sua história abrange um largo
trecho da nossa própria história nacional.
Desde
1554, ao criar o terceiro colégio regular no Brasil, erigindo Piratininga,
graças ao estabelecimento de um melhor sistema de proselitismo, esse centro
diretor da larga movimentação das missões brasileiras, até 1597, ao expirar em
Reritibá, rodeado pelos discípulos e pelas tribos catequizadas, a sua
existência, dia por dia, hora por hora, constante no devotamento à mais sagrada
das causas, irradia sobre uma época tumultuosa como uma apoteose luminosa e
vasta.
Soberanamente
tranquilo sobre a revolta das paixões, nada o perturbou — nem mesmo quando,
colaborando diretamente para a organização futura da nossa nacionalidade, ele
ligou a palavra ardente de apóstolos ao cintilar da espada heroica de Estácio
de Sá ou impelindo ao combate os guaianazes leais, repelia as hordas ferozes
dos tamoios que investiam contra São
Paulo.
Preso
entre esses últimos, sob a ameaça persistente do martírio e da morte, a sua
alma religiosa expande-se em poema belíssimo no qual a dicção aprimorada se
alia à erudição notável. Seguindo ásperos itinerários nos sertões em busca do
aimoré bravio, à amplitude do seu espírito não escapa a nossa natureza
deslumbrante acerca da qual faz estudos, lidos mais tarde com surpresa por todos
os naturalistas, que o proclamaram, pela pena de Auguste Saint-Hilaire, um dos
homens mais extraordinários do século XVI. Por toda a parte, em todas as
situações de uma carreira longa e brilhante, como simples irmão ou no fastígio
do provincialado, enfeixando nas mãos poderes extraordinários, não há um salto,
um hiato, um acidente ligeiro perturbando a continuidade da sua existência
privilegiada de grande homem — útil, sincero e bom.
Fora
longo e dificílimo traçá-la, palidamente embora.
Mais
alto e com mais eloquência do que nós, fala este sentimento sagrado de
veneração que pressentimos em torno, amplo, forte e generoso, inacessível às
diversidades de crenças e sob cujo influxo se opera em nosso tempo a
ressurreição do grande morto de há três séculos.
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EUCLIDES DA CUNHA
EUCLIDES DA CUNHA
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