9/07/2019

Euclides da Cunha - Anchieta (Ensaio)



Anchieta
O grande missionário reconcilia-nos com a Companhia de Jesus.
É o seu maior milagre.
Votada em parte é antipatia de uma forte corrente de sábios e pensadores, como um elemento dispersivo na solidariedade moral dos povos, a instituição, para eles irrevogavelmente condenada, tem, na história, na feição de José de Anchieta, talvez a sua feição mais atraente.
Combatente, na Europa, como centro de resistência do catolicismo ante a irrupção impetuosa da Reforma, combatente no Extremo Oriente ante as regiões seculares do paganismo, ela, ante as tribos ingênuas da América, foi humana, persuasiva, evangelizadora. Incoerente e sombria, pregando no século XVI, exageradamente, através da justificação singular da estranha teoria do regicídio de Mariana, a soberania do povo, e combatendo, aliada aos tronos, essa mesma soberania quando surgia triunfante no século XVIII; precipitando ora os reis sobre os povos, ora os povos sobre os reis; traçando, através da agitação de três longos séculos atumultuados, os meandros de espantosas intrigas — ela foi, na América, coerente na missão civilizadora e pacífica, seguindo a trajetória retilínea do bem, heroica e resignada, difundindo nas almas virgens dos selvagens os grandes ensinamentos do Evangelho. Não dispersou, uniu.
Ligou à humanidade, emergente da agitação fecunda da Idade Média, um povo inteiro — espíritos jungidos a um fetichismo deprimente, forças perdidas nas correrias guerreiras dos sertões...
E para esta empresa imensa teve entre nós uma alma simples, sem violentos ímpetos de heroicidade — amplíssima e casta — iluminada pela irradiação serena do ideal.
Daí todo o encanto que ressalta à simples contemplação da bela figura de Anchieta, entregue hoje à existência subjetiva da história, e cujo nome tem na nossa terra a propriedade de fundir todas as crenças e opiniões numa veneração comum.
E que em virtude de causas múltiplas, em que preponderam de um lado as condições do meio e de outro o próprio sentimento dos missionários, a Companhia de Jesus perdeu, no novo mundo, a feição batalhadora.
Longe das controvérsias irritantes que circulavam a dissolução do regime católico-feudal, os apóstolos que agiram fora da convulsão que abalava a Europa, com São  Francisco Xavier nas Índias e com Anchieta e Nóbrega no Ocidente, ao desdobrarem, diante do gentio deslumbrado, a significação divina da vida, num cândido misticismo, souberam fazer da humildade a forma mais nobre do heroísmo e venceram pelo incutir nas almas obscuras dos bárbaros todo o fulgor que lhes esclarecia as próprias almas.
E foram além na missão evangelizadora.
A nossa história o diz: depois do combate incruento à idolatria, depois da catequese das tribos, através de esforços que lembram os primeiros séculos da igreja, animou-os a preocupação capital de salvá-las da escravidão. A ambição extraordinária de audazes aventureiros exigia a força inconsciente do selvagem para as longas pesquisas nos sertões.
A história dolorosa das reduções jesuíticas terminada pelo sombrio epílogo de Guaíra, patenteia uma inversão singular de papéis: o missionário reagia à frente dos bárbaros arrancados às selvas, contra os bárbaros oriundos das terras civilizadas.
Desse conflito resulta, em muitos pontos, a feição verdadeiramente heroica do nosso passado.
Ora, os que arcavam, no Brasil, com esta missão múltipla e elevada, definem-se admiravelmente em Anchieta — um nome que é a síntese de uma época.
Grande homem, segundo a definição profunda de Carlyle, a sua história abrange um largo trecho da nossa própria história nacional.
Desde 1554, ao criar o terceiro colégio regular no Brasil, erigindo Piratininga, graças ao estabelecimento de um melhor sistema de proselitismo, esse centro diretor da larga movimentação das missões brasileiras, até 1597, ao expirar em Reritibá, rodeado pelos discípulos e pelas tribos catequizadas, a sua existência, dia por dia, hora por hora, constante no devotamento à mais sagrada das causas, irradia sobre uma época tumultuosa como uma apoteose luminosa e vasta.
Soberanamente tranquilo sobre a revolta das paixões, nada o perturbou — nem mesmo quando, colaborando diretamente para a organização futura da nossa nacionalidade, ele ligou a palavra ardente de apóstolos ao cintilar da espada heroica de Estácio de Sá ou impelindo ao combate os guaianazes leais, repelia as hordas ferozes dos tamoios que investiam contra São  Paulo.
Preso entre esses últimos, sob a ameaça persistente do martírio e da morte, a sua alma religiosa expande-se em poema belíssimo no qual a dicção aprimorada se alia à erudição notável. Seguindo ásperos itinerários nos sertões em busca do aimoré bravio, à amplitude do seu espírito não escapa a nossa natureza deslumbrante acerca da qual faz estudos, lidos mais tarde com surpresa por todos os naturalistas, que o proclamaram, pela pena de Auguste Saint-Hilaire, um dos homens mais extraordinários do século XVI. Por toda a parte, em todas as situações de uma carreira longa e brilhante, como simples irmão ou no fastígio do provincialado, enfeixando nas mãos poderes extraordinários, não há um salto, um hiato, um acidente ligeiro perturbando a continuidade da sua existência privilegiada de grande homem — útil, sincero e bom.
Fora longo e dificílimo traçá-la, palidamente embora.
Mais alto e com mais eloquência do que nós, fala este sentimento sagrado de veneração que pressentimos em torno, amplo, forte e generoso, inacessível às diversidades de crenças e sob cujo influxo se opera em nosso tempo a ressurreição do grande morto de há três séculos.
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EUCLIDES DA CUNHA

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